Basta de remédios que são novos venenos. Por Gilvander Moreira [1]

Muitas crises estão afetando as pessoas e todos os outros seres vivos que habitam nossa Casa Comum, o planeta Terra. A crise ecológica já acendeu o sinal vermelho há muito tempo. “O mundo está em chamas”, já dizia, ainda no século XVI, Teresa de Jesus, espanhola e freira carmelita, uma das três mulheres consideradas doutoras pela Igreja. O que acontece é que do século XVI para cá, o modo de produção industrial e os estilos de vida impostos pelo modelo capitalista e tecnocrático têm agravado, em progressão geométrica, os problemas socioambientais no Planeta e contribuído para aprofundar a injustiça socioambiental. “Não brinque com fogo”, dizia a mamãe Leontina. Tornou-se urgente interrompermos a espiral de autodestruição da humanidade e de todo o planeta Terra.

Com o auxílio dos omissos, dos cúmplices e dos coniventes, o capitalismo e os capitalistas causaram – e continuam aprofundando – a maior crise ecológica de todos os tempos.  As mineradoras com suas máquinas pesadas, cada vez mais potentes, como dragões cuspindo fogo, dizimam milhões de nascentes d’água pelo mundo afora e seguem demolindo montanhas, removendo terra e minerais diversos e em seu lugar deixando profundas crateras. Grandes empresas do agronegócio ampliam as monoculturas de eucalipto, de soja, de café e de cana, para citar apenas algumas e, assim, deixam um rastro de destruição nunca antes visto. O esgotamento dos solos férteis e a poluição ou mau uso das águas representam riscos para a segurança e soberania alimentar da humanidade. A devastação dos biomas – Cerrado, Mata Atlântica, Amazônia, Caatinga, Pantanal e Pampas – gera processos de desertificação de territórios cada vez maiores. Megaempresas do hidronegócio transformaram a água em mercadoria. Um litro de água em alguns lugares, como aeroportos, custa um absurdo. No mercado internacional água vale muito mais que o minério e, mesmo assim, contraditoriamente, a ganância cega dos capitalistas não os deixa perceber que biomas preservados nos oferecem gratuitamente safras infinitas deste líquido vital – fonte de vida – enquanto que o minério só é extraído uma única vez e, para sua retirada, se promove a devastação das nascentes.

Nesse contexto dramático, que interpela a consciência de todas as pessoas de boa vontade, faz-se necessário resgatar a profecia do Concílio Vaticano II e a Opção da Igreja afrolatíndia pelos Pobres e pelos Jovens. Imprescindível ouvirmos os clamores de todos os seres vivos injustiçados, entre os quais encontra-se a Terra, as nascentes e toda a biodiversidade. Não podemos tardar mais em levar a sério o testemunho e os ensinamentos do papa Francisco na Exortação Apostólica A Alegria do Evangelho, nos seus Discursos aos Movimentos Sociais e na Encíclica Laudato Si’ (Louvado Sejas!), sobre o cuidado da Casa Comum.

O cap. IV da Exortação apostólica do papa Francisco A Alegria do Evangelho (Evangelii Gaudium, em latim)trata da Dimensão Social e Econômica da Fé Cristã. Prestemos atenção a algumas afirmações do papa Francisco: “Se a dimensão social da evangelização não for devidamente explicitada, corre-se o risco de desfigurar o sentido autêntico e integral da missão evangelizadora” (EG n. 176). É traição ao Evangelho de Jesus Cristo pensar que a fé cristã diz respeito apenas à dimensão espiritual do nosso ser e existir.O papa Francisco puxa a orelha dos espiritualistas, moralistas e fundamentalistas que deturpam a missão da Igreja. Diz ele em alto e bom tom: “Prefiro uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas estradas, a uma Igreja enferma pelo fechamento e a comodidade de se agarrar às próprias seguranças. Não quero uma Igreja preocupada com ser o centro, e que acaba presa em um emaranhado de obsessões e procedimentos” (EG n. 49).

Além de ser pobre e para os pobres, a Igreja sonhada e gestada por Francisco deve ter a coragem de denunciar o atual sistema econômico, “injusto na sua raiz” (EG n. 59). Como disse , a Igreja “não pode nem deve ficar à margem da luta pela justiça” (EG n. 183). “Saiam para missão transformadora!” é a essência da mensagem que o papa Francisco está enviando aos bispos, padres e membros das comunidades cristãs, desde o início do seu pontificado. Saiam das suas cômodas estruturas eclesiais burguesas e do caloroso círculo dos convencidos, anunciem o Evangelho nas periferias das cidades, aos marginalizados pela sociedade, aos pobres, aos injustiçados!

Às questões sociais, o papa Francisco dedica o segundo e o quarto capítulos da Exortação Apostólica A Alegria do Evangelho. Critica o “fetichismo do dinheiro” e “a ditadura de uma economia sem rosto e sem um objetivo verdadeiramente humano“, versão nova e implacável da “adoração do antigo bezerro de ouro“. Francisco critica o atual sistema econômico: “esta economia que mata” porque prevalece a “lei do mais forte” e promove a cultura do “ser humano descartável” que criou “algo novo” e dramático: “Os excluídos, mais do que ‘explorados’, são considerados resíduos, ‘sobras’” (EG n. 53). Enquanto não se resolverem radicalmente os problemas dos pobres, renunciando “à autonomia absoluta dos mercados e da especulação financeira e atacando as causas estruturais da desigualdade social – insiste –, não se resolverão os problemas do mundo e, em definitivo, problema algum“, alerta o papa Francisco. Ele também indica que as raízes dos males sociais estão na “desigualdade social”.

A Igreja não pode ficar indiferente a tais injustiças. Papa Francisco diz profeticamente: “A economia não pode mais recorrer a remédios que são um novo veneno, como quando se pretende aumentar a rentabilidade reduzindo o mercado de trabalho e criando assim novos excluídos” (EG n. 204). Na Encíclica Laudato Si’, o Papa Francisco dedica muitas páginas à denúncia da “nova tirania invisível, às vezes virtual” em que vivemos, um “mercado divinizado“, onde reinam a “especulação financeira“, a “corrupção ramificada“, a “evasão fiscal egoísta” (Laudato Si, n. 56).

Diante das revelações da reunião ministerial estarrecedora, já em meio à pandemia, ocorrida dia 22 de abril de 2020, em Brasília, fica claro que a intenção do presidente e de ministros não é a preservação da vida. Antes, sim, querem a garantia de privilégios de cunho pessoal e corporativo, a continuidade de um projeto de saque dos bens naturais e do entreguismo do patrimônio público via privatizações ou concessões de empresas públicas como, por exemplo, o Banco do Brasil tal como citado pelo ministro da economia na referida reunião. Ficou claro o discurso de ódio e de insensibilidade diante do povo que está submetido às agruras da pandemia, o saque de direitos e de uma política econômica que privilegia os interesses dos banqueiros. Posturas odiosas e execráveis foram vomitadas e recheadas por 37 palavrões proferidos na reunião, 29 deles pelo presidente que, inclusive, ameaçou de forma clara e evidente trocar a chefia da Polícia Federal para barrar investigações de familiares e amigos. Também nos saltou aos olhos os dizeres estarrecedores de vários ministros, entre os quais o Ministro Ricardo Salles, que, na prática, atua contra o Meio Ambiente. Para espanto de todo o povo, Salles disse: “A oportunidade que nós temos, que a imprensa está nos dando um pouco de alívio nos outros temas, é passar as reformas infralegais de desregulamentação, simplificação, todas as reformas …”

Podemos notar que a má intenção do Ministro em pôr em prática seu projeto de morte está sustentada em duas muletas: a primeira é aproveitar da comoção nacional causada pela pandemia do novo coronavírus, que ocupa boa parte dos noticiários, para avançar com a devastação do meio ambiente; a segunda é aproveitar de um momento de excepcionalidade do direito que deveria garantir o direito à Vida, para exatamente ferir de morte as condições de vida, exigindo uma desregulamentação infralegal, com potencial de comprometer a existência das atuais  e futuras gerações. Não satisfeito, o ministro deixou as pessoas de boa vontade e as instituições democráticas estarrecidas, ao bradar seu plano macabro para devastar o meio ambiente em conluio com os grandes interesses econômicos:

“Então, […] porque só fala de Covid e ir passando a boiada e mudando todo o regramento e simplificando normas. […]. Agora é hora de unir esforços pra dar de baciada a simplificação.

O Ministro do Meio Ambiente quer aproveitar o momento de luto e atenção da imprensa à pandemia para acentuar seu projeto de morte: saquear os bens naturais que são necessários para garantir as condições de vida do povo e de toda a biodiversidade. Essa postura do antiministro do Meio Ambiente é gravíssima e intolerável, pois revela falta de ética, falta de transparência, interesses sombrios e incompatibilidade moral para ocupar um cargo tão importante para o presente e futuro do povo brasileiro e de toda sociobiodiversidade. “Mudar e simplificar” quais regras para favorecer quem? O que a opinião pública não deve saber? O antiministro Ricardo Salles foi condenado judicialmente em primeira instância por improbidade administrativa quando era secretário de Meio Ambiente do Estado de São Paulo.

O Ministro da Educação, Abraham Weintraub, na prática, ministro contra a Educação, afirmou durante a repugnante reunião ministerial: “Odeio o termo povos indígenas, odeio esse termo, odeio. Odeio povos ciganos”, bradou o ministro cuspindo ódio. E se referiu aos ministros do Supremo Tribunal Federal chamando-os de vagabundos chegando a dizer “eles devem ser presos”.

As falas e posturas vergonhosas e repugnantes na reunião ministerial apenas evidenciam o que já era ressaltado por muitas pessoas: a insensibilidade do desgoverno federal com o direito à vida. Não dá mais para tolerar as políticas neoliberais que, na prática, são recolonizadoras e também não dá mais para tolerar quem privatizam a fé cristã, amputando a dimensão social do Evangelho de Jesus Cristo. A questão religiosa está umbilicalmente ligada aos projetos políticos fascistas e devastadores de direitos e destruidores do meio ambiente, pois normalmente quem, religiosamente, é intimista, fundamentalista e moralista, é também apoiador do desgoverno federal. Enfim, quem privatiza a fé cristã para promover a opressora teologia da prosperidade persegue também quem luta pela superação dos desmandos políticos da necropolítica.[2] Por isso, basta de remédios que são novos venenos, sejam eles na religião ou na política.

Notas:

[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG.

[2] Gratidão à Carmem Imaculada de Brito, doutora em Sociologia Política pela UENF, que fez a revisão deste texto.

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