Caso Moro-Bolsonaro: Os dois corpos do rei e a criminalização do STF

Por Lenio Luiz Streck, Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira e Diogo Bacha e Silva, em ConJur

Se até remédio é utilizado como querela política, não seria de se esperar outra atitude em relação à decisão judicial do Supremo Tribunal Federal. O ministro Celso de Mello, em decisão monocrática nos autos do Inq 4.831, caso Moro-Bolsonaro, levantou o sigilo e permitiu a divulgação integral, ressalvadas as menções a Estados estrangeiros, do conteúdo do vídeo da reunião ministerial ocorrida em 22/04/2020 no Palácio Planalto, assim como a de gravação do vídeo da reunião.[4] O vídeo é um conteúdo essencial assinalado pela defesa do ex-Ministro da Justiça Moro como provas substanciais de eventual ingerência do presidente Bolsonaro na Polícia Federal.

Após a divulgação do vídeo, sentindo os efeitos políticos, o presidente Bolsonaro realiza uma postagem no Twitter em que divulga o artigo 28 da Lei 13.869/2019, Lei de Abuso de Autoridade, como suposta referência ao cometimento de uma infração penal pelo ministro Celso de Mello na decisão monocrática.[5]

O artigo 28 da Lei de Abuso de Autoridade traz a seguinte redação: “Divulgar gravação ou trecho de gravação sem relação com a prova que se pretenda produzir, expondo a intimidade ou a vida privada ou ferindo a honra ou a imagem do investigado ou acusado”.

Entender a aplicação desse dispositivo depende da compreensão do contexto em que fora promulgada a lei de abuso de autoridade e os fatos que motivaram a criminalização da conduta da divulgação de gravação ou trecho sem relação com a prova que se pretende produzir com o objetivo de exposição da privacidade, violação a honra do investigado. Trata-se de um novel tipo penal que, na justificativa do projeto de lei, mereceu a atenção o fato de que diversas autoridades investigadoras utilizavam as redes sociais e os meios de comunicação para induzi-las à formação da culpa antecipada, antes da conclusão da investigação.[6]

Essa tipificação é uma proteção em favor do investigado contra o lavajatismo impregnado nas práticas processuais-penais nos últimos anos, cujo modus operandi consiste na utilização das mídias para a formação da culpa antecipada, com a divulgação seletiva das interceptações telefônicas de forma ilegal, de tal forma a molda a opinião pública e, assim, reverberar no processo penal. É a síntese da prática do então juiz Moro no caso da divulgação ilegal da interceptação telefônica de Lula e Dilma.

O bem jurídico tutelado pelo artigo 28 da Lei 13.869/2019 é o espaço privado constitucionalmente protegido da pessoa humana, sua intimidade, privacidade, honra e imagem (artigo 5º, inc. X da CF/88). Por tal razão, o núcleo do tipo penal acima mencionado é o ato de divulgação indevida feita a terceiros ou para a mídia de gravações obtidas como prova, em investigação preliminar ou ação penal. É bem de ver que, no caso das gravações telefônicas, já há tipificação penal no artigo 10 da Lei 9.296/96. A criminalização, assim, não é da conduta de gravação ou obtenção da prova ilícita, mas a divulgação da mesma.

Contudo, o tipo objetivo exige, ainda, o fato de que a divulgação não tenha relação com a prova que se pretenda produzir, agindo a autoridade pública em desvio de finalidade. Desse modo, a própria gravação é utilizada de forma a agredir a tutela constitucional da personalidade do indivíduo. O dolo do agente público é específico, conforme o exige o tipo penal, sendo que a conduta vedada é aquela que visa atingir a privacidade, a intimidade, a honra e a imagem do indivíduo, investigado ou não.

Ora, o tipo penal não se aplica quando a gravação seja de conhecimento público ou captadas em público ou mesmo quando divulgadas pelo próprio investigado.

Em primeiro lugar, no caso da decisão do ministro Celso de Mello deve-se entender que o mesmo não “divulgou” o conteúdo da reunião ministerial, mas sim realizou o levantamento do sigilo para assegurar a paridade de armas no processo penal. Além do mais, como conceber que uma reunião dita ministerial, isto é, uma reunião oficial em que pretendia discutir questões relacionadas ao exercício do poder público estivesse abrangida pela proteção constitucional do espaço privado?

Na reunião ministerial não estão presentes a pessoa, o indivíduo, mas sim o cargo público. Ali não estava Bolsonaro, Paulo Guedes, Weintraub, Salles, Damares, Moro, mas o presidente da República, o ministro da Economia, da Educação, do Meio Ambiente, da Justiça.  O conteúdo discutido naquela reunião — e em todas as outras que estão sendo debatidos as funções do cargo ocupado – é público, portanto constitucionalmente ao abrigo da exigência republicana de que o exercício do poder político é público, isto é, submetidos ao escrutínio da população, exceto quando houver autorização legal para que a publicidade seja parcial.

Não esqueçamos dos dois corpos do rei
É importante ressaltar a distinção que deve haver entre o indivíduo e o cargo, a privacidade da pessoa e a publicidade do cargo, naquilo que Ernest Kantorowicz desenvolveu como a teoria dos dois corpos do rei. Não é que, por exemplo, o Presidente ou Ministro de Estado não tenha uma esfera privada juridicamente protegida. Mas, o que é bastante óbvio em uma Res Publica, o exercício das funções relacionadas ao cargo público deve ser submetida ao controle da população, daí se exigindo a necessária publicidade dos atos dos poderes públicos.

Seria crível pensar que a proteção constitucional da privacidade e da intimidade se aplicasse a uma reunião privada com os amigos, nunca em uma reunião oficial onde se discutiram – ou ao menos assim pretenderam — questões relacionadas ao Estado.

Não é porque a reunião não foi aberta ao público em geral que a mesma está sob o signo da privacidade, mas pela razão de que o exercício do poder público deve sempre estar à luz do dia do escrutínio do povo em um Estado Democrático de Direito, valendo lembrar o caso Watergate, United States v. Nixon (418 US 683, 1974), na qual a Suprema Corte impediu a utilização do privilégio executivo para atos que, em tese, poderiam caracterizar delitos, mesmo em comunicações internas da Presidência.

Além do mais, as autoridades públicas presentes na reunião ministerial não só sabiam de antemão da gravação, daí não decorrer qualquer ilicitude na obtenção das imagens e na obtenção de eventual prova de crimes, já que, embora não prevista originalmente, aplicar-se-á a teoria do encontro fortuito de provas no caso de eventual crime contra honra cometido pelo Ministro da Educação Weintraub.  

Se, então, houve alguma violação à honra e à imagem, certamente não o foi dos ministros presentes que, pela gravação, apenas confirmaram aquilo que a sociedade já sabia, que eram incapazes de manter a mínima “liturgia” do cargo mesmo em reuniões oficiais. Isto deve ser dito. E estamos sendo inclusive generosos, face ao ambiente em que se encontravam os presentes, já que “diga-me com quem andas e ….”.

Não se pode de forma alguma equiparar uma reunião ministerial com um encontro entre amigos, embora essa reunião do dia 22/04/2020, mesmo em plena pandemia e na maior dificuldade social deste século, mais lembrasse uma algazarra entre amigos sem qualquer organização mínima. Sim, porque já havia milhares de mortos e o que mais se ouviu foi um conjunto de palavrões contra os adversários. De Covid só se falou “como vamos nos aproveitar da pandemia”, como disse o ministro do Meio Ambiente.

Todavia, não podemos perder de vista que essa insinuação do Bolsonaro tem um objetivo jurídico-processual específico. A tentativa, aqui, é imputar um possível delito ao ministro Celso de Mello como estratagema processual para subsidiar um pedido de suspeição do relator.

A tentativa de imputação criminal ao julgador é um conhecido mecanismo processual de burla ao princípio do juiz natural. Tal expediente é amplamente conhecido do Supremo Tribunal Federal que, inclusive, prevê no artigo 281 do RISTF que será ilegítima a arguição de suspeição, quando provocada pelo excipiente, regra idêntica prevista também no art. 145, §2º, inc. I do Código de Processo Civil.

Referida manobra além de atentar contra o juiz natural desvela uma verdadeira má-fé processual do investigado. A ideia de que a decisão judicial do ministro Celso de Mello teria veiculado um crime pode ser analogamente comparada à fé na cloroquina contra o coronavírus. Somente uma opinião, sem nenhum fundamento. Sua utilização, no entanto, pode levar a posterior responsabilização, inclusive criminal. 

E, numa palavra: somente um salto triplo carpado pós-hermenêutico é que poderia dar ensejo a invocação do artigo 28 da Lei do Abuso. Salto inclusive mal sucedido. Chamem o departamento médico!


[4] Decisão disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/decisao4831.pdf, acesso em 25 de maio de 2020.

[5] Veja a postagem em: https://www.poder360.com.br/governo/bolsonaro-rebate-stf-cita-abuso-de-autoridade-e-vai-a-ato-contra-congresso/

[6] “[…]o  uso  abusivo  dos  meios  de  comunicação  ou  de  redes  sociais  pela autoridade  encarregada  da  investigação  que  antecipa  a  atribuição  de  culpa,  antes  de concluída a investigação e formalizada a acusação.O  anteprojeto  não  proíbe  a  divulgação  da  investigação,  permitindo  que  o  seu encarregado  preste  contas  do  que  foi  feito  e  porque  o  foi,  como  mecanismo  de indispensável transparência” Justificativa do Projeto de Lei do Senado 85/2017. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/diarios/ver/20918?sequencia=1, acesso em 25 de maio de 2020.

Foto: Adriano Machado /Reuters

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