Os riscos da vigilância na pandemia: do controle biopolítico dos corpos à prisão dos estímulos na psicopolítica. Entrevista especial com Rafael Zanatta

Sob o argumento da necessidade de monitoramento do distanciamento social, autoridades passam a defender a emergência de um controle que pode abrir precedentes para vigilância cada vez maior sobre as pessoas

Por: João Vitor Santos, em IHU On-Line

Neste cenário de pandemia, está claramente provado que o isolamento social é a melhor forma de frear a propagação da covid-19. No entanto, mesmo em Estados em que se assimila essa perspectiva, a ineficiência em assegurar formas de as pessoas continuarem em casa assume arroubos totalitários de controle. Um deles é o uso de tecnologias a partir da telefonia móvel para vigiar o deslocamento das pessoas.

Para o pesquisador Rafael Zanatta, é preciso cuidado nessas formas de monitoramento porque dados gerados pelas pessoas podem ser usados como poder num contexto político. “Toda a decisão do uso dessas ferramentas requer uma cautela muito grande no que diz respeito à limitação temporal, ou seja, de utilizar esses dados tão somente por um período da pandemia”, observa. E acrescenta: “é necessário uma explicitação da finalidade, que deve ser específica e restrita à relação de saúde e monitorada por uma autoridade sanitária. Ainda é preciso estar atento ao ciclo de vida desse dado e, o mais importante, são necessários mecanismos de transparência”.

Na entrevista a seguir, concedida via WhatsApp para a IHU On-Line, Zanatta analisa o controle que vem sendo feito no Brasil e também as outras formas desenvolvidas em países asiáticos. Ele também reconhece que toda essa atmosfera lembra o controle biopolítico dos corpos. Mas, para o especialista, a questão ainda vai além. “E aí não mais na perspectiva de um controle disciplinar dos corpos com regras constantes sobre como se comportar, sobre o normal e o anormal, sobre a possibilidade de punição mediante privação da liberdade, construção de hospícios, prisões etc., mas de uma coisa muito interessante da psicopolítica”, observa.

Essa psicopolítica é mais profunda e não faz somente um controle, mas, através de estímulos, ou ‘pequenos empurrões’, coloca o agir humano como numa esteira. Assim, mais do que controladas, as pessoas agem quase que como marionetes, tendo seus desejos e necessidades sob controle. “É essa penetração da ideologia neoliberal de que todo sujeito precisa assumir o controle da produtividade por conta própria e vai se tornando um indivíduo que permanentemente está preocupado com o trabalho, com a produção e com a mensuração de suas atividades”, acrescenta. “Por isso, acaba embarcando de vez no uso desses aplicativos e da conectividade ubíqua, que também é passível de influência em razão da economia política dos dados pessoais que gera”, completa.

São, por exemplo, as rotas que o Waze nos ‘sugere’ e que acabamos acatando. Ou, ainda, a necessidade de levantarmos da cadeira e darmos alguns passos conforme orienta nosso aplicativo de saúde e atividade física. Zanatta explica que todos os dados gerados pelos usuários são significativos e passam a ser usados como controle. E nesse contexto de pandemia, em que somos forçados ao distanciamento físico, ficamos ainda mais dependentes e mediados por esses dispositivos e, além disso, outros são introjetados sob o argumento de que é preciso proteger nossa saúde. “O grande problema é isso virar uma espécie de trunfo, um argumento que é colocado à mesa como vitorioso, independentemente do tipo de consequência ou do impacto que isso possa causar às liberdades civis”, adverte.

Rafael Zanatta é coordenador de pesquisas do Data Privacy Brasil, Organização Não Governamental que se dedica à intersecção entre tecnologias, direitos fundamentais e proteção de dados pessoais. Também é doutorando pelo Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo – USP, onde desenvolve pesquisas sobre regulação e proteção de dados pessoais. Possui mestrado em Direito e Economia Política pela Universidade de Turim, na Itália, e em Direito pela USP, onde foi coordenador do Núcleo de Direito, Internet e Sociedade. Foi aluno do curso Privacy Law and Policy da Universidade de Amsterdam, na Holanda, e da Escola de Governança da Internet do Comitê Gestor da Internet e, ainda, líder de projeto do InternetLab.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como, diante da pandemia de covid-19, os debates sobre o rastreamento humano são atualizados? Qual a situação do Brasil?

Rafael Zanatta – O que temos visto, com base no nosso projeto que deu origem ao Relatório Privacidade e Pandemia, com as recomendações sobre como usar os dados de forma adequada no combate à pandemia, é que a covid-19 nos joga num debate central sobre os limites das tecnologias que são muito precisas na capacidade de identificação de indivíduos. E isso especialmente quando tratamos de tecnologias que são capazes de rastrear os contatos que se teve com outras pessoas por meio dos smartphones – aliás, os smartphones se tornaram hoje um dispositivo em que esse rastreamento é plenamente possível em razão das capacidades técnicas de um celular, de emissão de frequência por bluetooth e por códigos que podem ser embutidos em diversos aplicativos.

O grande debate, hoje, sobre rastreamento de contato, é se é plenamente possível fazer esse tipo de rastreamento totalmente descentralizado, sem um servidor unificado, com capacidade de processamento de dados pelos próprios dispositivos conectados e de forma a ter uma anonimização que gere um registro mínimo de informações pessoais. Ou seja, não há uma identificação do nome da pessoa, nem do Device ID [aplicativo para sistema operacional Android que permite obter e compartilhar informações importantes sobre dispositivos com o sistema do Google], do registro único do dispositivo e nem do IMEI [International Mobile Equipment Identity, um número de identificação global e único para cada telefone celular].

O que sabemos, de todo modo, na comunidade técnica de proteção de dados pessoais, é que mesmo havendo um processo de rastreamento de contato por mensagens embaralhadas, com a produção de um identificador aleatório com chaves criptografadas, há vulnerabilidades, há possibilidade de reidentificação fazendo com que aquele dado volte a ser um dado pessoal. O que temos visto da própria comunidade médica e dos cientistas é um pedido de cautela. O nosso próprio relatório recomenda fortemente isso, uma cautela e adoção de pelo menos dez princípios básicos relacionados à proteção de dados pessoais, caso o gestor opte por implementar algo desse tipo.

No Brasil

Não é o que está acontecendo ainda no Brasil, porque o que tem acontecido aqui são parcerias para a produção de mapas de calor com base em informações do consumidor de serviços de telecomunicações, por meio de Estação Rádio Base. É o registro de onde a pessoa está, de que antena está mais próxima durante a noite e, durante o dia, se verifica aleatoriamente se aquele mesmo número está com outra proximidade, perto de outra antena. Daí se poderia inferir que aquela pessoa se locomoveu, saiu de seu raio domiciliar.

Outra forma de como esse controle está sendo feito aqui é através de projetos de empresas que estão construindo índices de aglomeração ou de dispersão com base na análise de informação sobre o dispositivo celular coletada por meio de aplicativo. Esse aplicativo tem um código que gera a informação de onde a pessoa está e a proximidade com outros aparelhos – também tecnologia bluetooth – e gera uma porcentagem de aglomeração ou dispersão de pessoas.

Cuidados necessários

Toda a decisão do uso dessas ferramentas requer uma cautela muito grande no que diz respeito à limitação temporal, ou seja, de utilizar esses dados tão somente por um período da pandemia. Além disso, é necessária uma explicitação da finalidade, que deve ser específica e restrita à relação de saúde e monitorada por uma autoridade sanitária. Ainda é preciso estar atento ao ciclo de vida desse dado e, o mais importante, são necessários mecanismos de transparência e de apresentação para a comunidade sobre como aquela tecnologia funciona. O ideal é que se coloque essa tecnologia em formato aberto, colaborativo e editável pela comunidade técnica.

Falta de transparência

Esses cuidados, essas recomendações, estão em nosso relatório. Mas, nesse ponto, o Brasil derrapa muito porque todas as principais iniciativas de colaborações feitas, não de rastreamento de contato, mas de produção de análise cartográfica ou de produção de índices, não tiveram sua documentação técnica apresentada ao público. Por isso estão agora sofrendo ações judiciais que estão pedindo justamente que o governo apresente os documentos técnicos e os instrumentos metodológicos revelando como esses índices são construídos e quais os tipos de dados que são tratados.

Uma premissa fundamental desse debate é justamente termos a abertura desses documentos, é ter a possibilidade de discutir as metodologias. No Brasil, nem esse passo foi dado, não há uma conscientização plena sobre esse elemento ser uma premissa. Ainda temos muito a avançar nesse sentido.

IHU On-Line – Por que o rastreamento via dados de telefonia móvel, posto em uso como medida para monitorar o distanciamento social, abre uma série de riscos para a sociedade e a individualidade?

Rafael Zanatta – O rastreamento de dados de telefonia móvel, se for utilizado de forma a coletar simplesmente uma amostragem aleatória do número da pessoa que é aplicado num “hackeamento” – não é um número de telefone da pessoa, mas é feito um “embaralhamento” desse número numa sequência alfanumérica – e coleta tão somente esse dado da Estação Rádio Base durante a madrugada e aleatoriamente durante o dia, com uma base amostral, representa uma técnica de baixo risco. Agora, fazer algo mais sofisticado, como a utilização compulsória de um aplicativo de saúde que coletasse permanentemente os dados de geolocalização e os dados de identificação do aparelho, abre um registro de monitoramento constante e padrão de localização. Dessa forma há, especialmente, a construção de perfis.

Por exemplo, cidadãos próximos a uma mesquita podem ser facilmente catalogados como pertencentes a um grupo religioso e étnico. Pessoas que frequentam determinada área comercial como bares e locais de festa podem ser catalogadas e perfilizadas como grupos sociais pertencentes a um certo tipo de prática. Pode-se ter também a possibilidade, inclusive, de construção de perfis até mesmo de grupos políticos. Basta fazer uma inferência com mapas de localização de pontos de encontro, sedes de partidos políticos ou de movimentos sociais. Nesses casos, evidentemente, dados sensíveis estariam sendo tratados de forma absolutamente desproporcional, o que abriria a possibilidade de um risco autoritário muito forte, tal como já apontado por muitos filósofos desde que esta discussão começou, lá em fevereiro.

O filósofo sul-coreano Byung-Chul Han refletiu sobre esse tema, sobre a possibilidade dessa guinada autoritária dos países asiáticos diante do cenário da pandemia. O próprio Yuval Noah Harari, historiador israelense muito conhecido, também colocou como ponto central no debate sobre a covid-19 o fato de que nós não podemos abrir este tipo de brecha: a possibilidade de um legado permanente de vigilância e controle no qual uma situação econômica muito instável como a nossa abre um precedente muito grande para a utilização indevida desses dados.

Existem vários paralelos históricos que nos fazem pensar isso. Por exemplo, durante a segunda guerra mundial, a prefeitura de Amsterdã tinha um monitoramento muito preciso do censo populacional, dos telefones públicos próximos a certas casas e a identificação precisa do número de pessoas que habitavam ali, e inferiam a religião da pessoa sabendo onde ela trabalhava e qual igreja ela frequentava. Esses dados foram todos utilizados depois da invasão nazista para justamente acelerar o processo de perseguição da população e comunidade judaica e o envio dessas pessoas para campos de concentração. Esse é um exemplo histórico muito recente.

Discussão levada ao STF

Bruno Bione, advogado especializado no tema e cofundador do Data Privacy Brasil, lembrou desse caso da história recente na sustentação oral que fez no Supremo Tribunal Federal – STF. Ele atuava no caso da Medida Provisória que visava o repasse de dados de telefonia móvel para o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE [por MP, o governo buscava essa parceria com as empresas de telefonia], que foi barrada pelo Supremo.

Casos como o dessa MP trazem à tona a possibilidade de retorno a episódios históricos que pareciam muito distantes num contexto democrático, mas que agora se mostram como possíveis. Estamos a muitos poucos passos de chegar a esse tipo de situação em que os arranjos sociotécnicos permitem algum tipo de perfilização e perseguição muito eficiente por parte de quem está no governo, no poder. Esse é hoje um ponto crucial para o debate da ciência política.

IHU On-Line – A pandemia está inaugurando uma nova fase da biopolítica com o surgimento de mais dispositivos de controle? Por quê?

Rafael Zanatta – O debate sobre qual é a configuração desse tipo de biopolítica, de um controle dos corpos e das subjetividades de uma perspectiva disciplinar, como havia colocado Michel Foucault há décadas e que tem sido debatida por um grupo muito grande de filósofos contemporâneos, agora traz um pouco mais de saliência. Não é necessariamente uma fase, propriamente dita, da biopolítica, mas uma transformação muito significativa da possibilidade e da eficiência das técnicas de modulação de comportamento por meio, inclusive, desses dispositivos tecnológicos. E aí não mais na perspectiva de um controle disciplinar dos corpos com regras constantes sobre como se comportar, sobre o normal e o anormal, sobre a possibilidade de punição mediante privação da liberdade, construção de hospícios, prisões etc., mas de uma coisa muito interessante da psicopolítica.

Psicopolítica, termo usado por Byung-Chul Han, é essa penetração da ideologia neoliberal de que todo sujeito precisa assumir o controle da produtividade por conta própria e vai se tornando um indivíduo que permanentemente está preocupado com o trabalho, com a produção e com a mensuração de suas atividades. Por isso, acaba embarcando de vez no uso desses aplicativos e da conectividade ubíqua, que também é passível de influência em razão da economia política dos dados pessoais que gera. Ou seja, é aquilo que se transformou até num campo de estudos da psicologia: a captologia. Brian Jeffrey Fogg, psicólogo famoso dos Estados Unidos que cunhou esse termo, a define como a ciência que estuda tecnologias de persuasão, tecnologias que vão gerar microincentivos e promover engajamento constante das pessoas.

Hoje, podemos reconhecer isso muito facilmente, por exemplo, nas recomendações de rota que recebemos no Waze, nos lembretes e sinais permanentes dos dispositivos de exercícios físicos como os de corrida. Aliás, enfim, em todos aplicativos de celular que promovem esses microempurrões que fazem com que você tenha a sensação de que a ação é sua, de que foi motivado, mas que na realidade existe toda uma arquitetura de sistema e um design programados para que você cumpra aquela tarefa.

‘Nenhum dado é insignificante’ e ainda exerce controle

E, nesse cenário em que todos precisam estar no Twitter, no Instagram, no Facebook, usando os aplicativos recém-lançados e tendo esse controle individual, tem-se uma amplitude gigantesca dos processos de coleta de dados e da possibilidade de que as técnicas estatísticas de análises de comportamento agregado e demográfico se tornem muito precisas e eficientes. São, inclusive, capazes de promover segmentações de comportamentos sociais que são muito coerentes em razão da precisão e acurácia desses dados que são coletados. Nenhum dado é insignificante, como já dizia Eric Schmidt, o CEO da Google há 15 anos.

E essa total significância de todo tipo de dado que é produzido pelo dispositivo é que vai coletando e retroalimentando a capacidade de persuasão dessa tecnologia, fazendo então que a gente entre nesse cenário descrito como psicopolítica. É algo até mais profundo do que existia anteriormente como arranjo de controle e subjetividade dos corpos. É interessantíssimo porque as metas são autoincutidas e não há um agente externo ameaçando com uma penalização ou uma sanção. Essas técnicas de controle são totalmente produzidas pelo próprio indivíduo na sua relação social e na sua relação com os dispositivos.

Na pandemia

Tudo isso se intensifica com a pandemia no sentido de que grande parte de nossa vida social fica ainda mais mediada por esses arranjos sociotécnicos. O trabalho permanente, a educação e a nossa relação agora passam a ser curiosamente menos uma relação de cidadão e mais uma relação de paciente, como diz Ugo Mattei, um importante jurista e filósofo da atualidade. Isso remove nossa condição de sujeito ativo, participando numa esfera pública, para uma condição na qual existe um pacto de aceitação da coleta permanente dessas informações sobre um discurso da saúde pública de que é preciso proteger a todos e somos todos pacientes que precisam ser monitorados.

E se pensarmos na lógica de como funciona uma Unidade de Terapia Intensiva – UTI, veremos que é um microssistema poderosíssimo de coleta permanente de dados, justificada pela ideia de que aquilo é fundamental para sua recuperação, para sua saúde. Hoje, o grande problema é isso virar uma espécie de trunfo, um argumento que é colocado à mesa como vitorioso independentemente do tipo de consequência ou do impacto que isso possa causar às liberdades civis. Então, são essas algumas das características deste momento que estamos vivendo.

IHU On-Line – Como as ações de Estado podem se transformar diante dessa emergência de controle no cenário da pandemia? Quais os riscos e consequências?

Rafael Zanatta – É importante lembrar que, como dizem muitos estudiosos do tema, como Shoshana Zuboff, Mark Rosenberg e vários outros, esse é um processo também muito dinâmico no qual os processos de contestação, em que a sociedade civil consegue encontrar fendas, espaços de ataque e ativismo, são muito importantes. Isso demonstra também uma grande perda de confiança, não há confiança de que os governos vão fazer isso de forma segura e de forma a proteger melhor o interesse dos cidadãos tão somente. Um dos grandes indicadores disso é o processo de revisão judicial das políticas governamentais de uso de dados da covid-19 que estão acontecendo no mundo inteiro, em especial em Israel e no Brasil.

Em Israel se tentou criar uma política, um programa no qual a agência de segurança de Israel faria uma coleta massiva de dados por meio de um aplicativo compulsório que identificaria não só as pessoas que foram aos hospitais e foram diagnosticadas com covid-19, mas também pessoas suspeitas que estariam no mesmo endereço, ou teriam contato muito próximo com a pessoa infectada, e que poderiam ser notificadas pela autoridade de segurança, justamente pelo cumprimento de medidas de isolamento total, de lockdown, e com uso de forças policiais. Essa foi uma política desenhada para ser executada numa perspectiva da segurança pública de saúde.

Depois da mobilização de um grupo de professores e advogados, isso foi levado para a Suprema Corte de Israel, que então analisou a política da perspectiva constitucional e detectou que ela violava os direitos fundamentais. Assim, vetou a possibilidade de a agência de segurança fazer o rastreamento das pessoas suspeitas, fazendo-o tão somente das pessoas infectadas, mas desde que toda a ação e toda a tecnologia fossem também validadas pelo parlamento. Ou seja, um mecanismo no qual se tem controle social indireto, pelo parlamento, das ações que são coordenadas entre a área de saúde e segurança pública. Esse caso foi superimportante, foi julgado o mérito recentemente e foi confirmada a decisão cautelar. É um importante precedente constitucional em Israel sobre a revisão judicial.

Brasil

No Brasil, o caso mais emblemático foi o que aconteceu no Supremo Tribunal Federal, na análise da Medida Provisória que pretendia repassar dados de telecomunicações, como nome, endereço e telefone dos consumidores brasileiros (220 milhões de pessoas) para o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE. Este, por sua vez, iria conduzir pesquisas nacionais por amostra de domicílios para avaliar empregabilidade, renda etc.

E por que essa MP do Bolsonaro foi atacada pela Ordem dos Advogados do Brasil – OAB e por quatro partidos políticos? Porque ela era desproporcional e não havia uma finalidade precisa dos dados para a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – Pnad Contínua. A MP falava em estatísticas oficiais, o que é um termo amplo. A proposta ainda falava em aplicar as técnicas de minimização, que é algo previsto nas leis de dados pessoais; ou seja, se a pesquisa é de amostragem, por que precisa dos dados de todos os brasileiros? Por que não um sistema de coordenação com as telecoms para obter justamente os números necessários naquela sua amostragem para fazer a pesquisa, que seriam no caso 220 mil pessoas?

E, ainda, por que o Estado brasileiro foi incapaz de demonstrar que seria capaz de proteger os direitos dos cidadãos? Porque não há uma autoridade nacional de proteção de dados pessoais constituída. E esse também é o objeto de intervenção do nosso amicus curiae [amigo da Corte, em tradução livre; é quando um grupo se associa à Corte para a subsidiar informações que não teria condições de buscar]. Nossa ONG participou, fizemos sustentação no STF e grande parte dos argumentos que apresentamos foram acolhidos pela Corte, especialmente pelo ministro Gilmar Mendes, que tratou, no voto dele, da proteção de dados como direito fundamental, mas também da importância de o Estado ter um devido processo informacional.

Contexto pandêmico

Essa tentativa de tratar os dados num contexto pandêmico, emergencial, só pode acontecer com uma série de salvaguardas e garantias que o Estado deve prover e deve demonstrar de antemão. Essa foi uma decisão importante porque também diferenciou o direito à privacidade do direito à proteção de dados pessoais. O direito à privacidade está tradicionalmente ligado a uma ideia do que é público versus privado, o sigilo de uma liberdade negativa, que nega ao Estado o acesso a determinados tipos de informações por terceiros. E essa é uma ideia ultrapassada.

A proteção de dados pessoais está ligada não a essa ideia de público e privado, porque não existe mais essa distinção entre dados que são processados em determinados contextos, pois eles facilmente transitam entre público e privado e existem dados que precisam ser processados e tratados de forma justa, com finalidade específica, com limitação temporal, com a possibilidade ou não de consentimento. Por isso, a importância da construção de uma política pública que vai executar salvaguardas com relação à minimização de dados e segurança da informação.

A proteção de dados pessoais é um conjunto de salvaguardas no Estado democrático para o uso adequado dos dados. É um tipo de direito que está ligado ao fluxo dos dados, não ao impedimento do fluxo desses dados. Isso a Corte reconheceu e foi uma decisão importantíssima. No Brasil isso é de controle institucional, do STF, e nós temos expectativa de que tenha repercussão internacional. Estamos, inclusive, colaborando com uma ONG americana, divulgando essa decisão do STF, porque ela pode influenciar outros países e outros ativistas que podem contestar ações governamentais e levar para suas respectivas supremas cortes uma análise da constitucionalidade das medidas e se elas violam direitos fundamentais.

IHU On-Line – Quais as possibilidades de adotarmos estratégias de controle como foi feito na Ásia, ou mesmo adotar os passaportes digitais de imunidade no pós-pandemia, com adaptações?

Rafael Zanatta – Nossa avaliação no Data Privacy Brasil é de que existem muitos riscos nessa adoção. Primeiro, porque o Brasil não está preparado para lidar com a covid-19 da mesma forma que a Coreia do SulSingapura e outros países asiáticos que já lidaram com situações pandêmicas no passado, como a SARS e outras doenças que surgiram nos últimos 15 anos. Isso tudo gerou neles uma cultura muito grande de planejamento para detecção e rastreamento de pessoas infectadas, gerou um conjunto de protocolos muito bem alinhados com as recomendações da Organização Mundial da Saúde, especialmente o Regulamento Sanitário Internacional, com regras bem rígidas sobre proteções de dados pessoais.

Já no Brasil não há essa cultura, o combate ao zika vírus, por exemplo, não passou pelos mesmos elementos. Agora, no caso da covid-19, a apropriada adoção do Regulamento Sanitário Internacional no Brasil se deu de forma muito tardia, em janeiro deste ano, por meio de um decreto assinado por Luiz Henrique Mandetta, ministro da Saúde, e por Sérgio Moro, ministro da Justiça e Segurança – aliás, ministros que inclusive já saíram do governo. Ou seja, temos uma construção muito recente de uma cultura de política de saúde em contexto pandêmico, tentando adotar às pressas as melhores práticas e recomendações da OMS no âmbito dos Ministérios da Saúde e da Justiça. Além do mais, agora, houve uma interrupção no trabalho desses ministros, ocorrendo mais de uma troca do ministro da Saúde, o que mostra um nível de coordenação federal numa situação absolutamente dramática de despreparo e de adoção apressada.

Autoritarismo?

Existe ainda um elemento muito curioso. Mesmo em países como Singapura, que em princípio, numa comparação com o Brasil, tende-se a pensar que possui formas políticas mais autoritárias, mais impositivas, ocorre justamente o contrário. Isso porque os protocolos que dão sustentação ao aplicativo usado em Singapura foram produzidos pelo governo junto com ativistas e comunidade técnica. Teve, ainda, toda sua documentação em formato aberto, debatida nos círculos universitários e colocada à prova com quem quisesse testar a possibilidade de identificação de pessoas.

No Brasil, inclusive em nível estadual, políticas falharam em apresentar documentação técnica de forma aberta e falharam, também, em promover uma cultura participativa da comunidade de dados abertos, dos programadores, com essas políticas. O que é uma situação trágica porque o Brasil tem uma comunidade de programadores muito forte, existe um movimento de dados abertos muito forte e muito potente. Se fosse fazer um índice de quão democrático foram as propostas no Brasil, nos sairíamos muito mal, muito pior inclusive do que países que têm governos mais autoritários.

Mais um gerador de desigualdades

Outro ponto é que o passaporte de imunidade tem dois problemas centrais. O primeiro é que ele tende a acentuar uma desigualdade social muito grande entre aqueles que são ricos e conseguem acelerar os testes rápidos e caríssimos, como tem acontecido no mundo inteiro. Isso acabaria criando uma nova classe de pessoas que vão estar com uma documentação que mostra imunidade, mas que não necessariamente é totalmente crível, porque os próprios testes apresentam falhas e não há nenhum consenso sobre a confiabilidade técnica desses testes em nível internacional. Então, seria questionável se são passaportes verossímeis e ainda acentuaria os processos de desigualdades. O segundo é que não há ainda a demonstração científica da possibilidade de não ser reinfectado pela covid-19; em nenhuma revista científica séria isso foi publicado como definitivo. É uma questão em aberto e que coloca em xeque a própria ideia dos passaportes de imunidade.

Regulações locais e mais eficientes

É claro que existe uma corrida e tentativa acelerada de vários projetos empresariais para tentar criar de algum modo certificados para que as pessoas voltem com as atividades de comércio e com as atividades locais no Brasil e no mundo inteiro. Isso não necessariamente passa pela ideia do controle individual do teste positivo ou negativo da covid-19 e talvez passe muito mais por uma análise agregada demográfica das condições de cada cidade, localização e total do número de infectados. Essa é uma informação que, inclusive de acordo com as normas de saúde, precisa ser publicada pelas autoridades sanitárias e não envolve o tratamento de dados pessoais.

Com bases nesses dados, poderia haver regras municipais ou estaduais de regulação da atividade econômica, o distanciamento entre as pessoas, o uso obrigatório de máscara ou padrões de higiene que são obrigatórios. Além disso, poderia se avaliar a necessidade de atuação econômica ou ampliação do rol de serviços que podem ser essenciais, criando uma variedade de modelos de regulação que tentam buscar esse equilíbrio entre atividade econômica e proteção à saúde dentro de cada país.

Veja que isso não passa pela ideia de ter um passaporte de imunidade. A ideia de passaporte de imunidade é questionável, tanto que tem sido questionada no mundo inteiro por vários especialistas. Existe também um consenso entre os estudiosos de que isso não é a melhor saída. A melhor saída é colocar os epidemiologistas para conversar com as prefeituras, municiar a estrutura hospitalar, ampliar o número de UTIs e fazer com que os médicos possam tomar as suas decisões, e não burocratas de gabinete que fazem acordos com empresas de tecnologia.

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