Equívocos de Marcos Nobre sobre a Frente Ampla

Para pensador, Bolsonaro sustenta-se no poder graças a sua parcela de apoio, e derrubá-lo requer união entre supostas forças democráticas. Esquece que presidente é blindado pela elite, e que a direita não parece disposta a reconstruir a política

por Ronaldo Tadeu de Souza*, em Outras Palavras

Marcos Nobre é um infatigável analista crítico da política brasileira contemporânea. Professor de filosofia no departamento de filosofia da Unicamp e atual presidente do lendário Cebrap-Centro Brasileiro de Planejamento, Nobre é um dos principais pesquisadores da teoria crítica da sociedade (a Escola de Frankfurt) no Brasil. Seus trabalhos, densos estudos sobre esta modalidade de teorização, compreensão, diagnóstico e práxis, versam sobre Lukács e Adorno, Hegel e Max Horkheimer. Seu último livro é um portentoso comentário sobre a Fenomenologia do espírito de Hegel, especificamente a Introdução do texto de 1807 – nele Nobre sustenta que o Hegel deste período estava, no impulso da modernidade que se iniciava e da Revolução Francesa, preocupado em fazer emergir o novo. Daí em diante o filósofo de Jena cristalizou seu pensamento em sistema, tanto método da ciência da lógica como na teoria do direito.

Como nasce o novo é fora de dúvida uma das principais contribuições sobre os estudos de Hegel entre nós desde os primeiros esforços de Henrique Lima Vaz e Paulo Arantes. As intervenções de Marcos Nobre, assim, merecem atenção e averiguação do campo da esquerda ao qual ele mesmo pertence: ainda que com níveis razoáveis de moderação. É de ressaltar que Nobre não transpõe para seus comentários e intervenções acerca da política brasileira recente sua especialidade enquanto filósofo e pesquisador. Prática comum no âmbito das ciências humanas e sociais – o que é positivo, mas por vezes problemático quando se tenta adequar nossos problemas políticos imediatos a certa agenda de pesquisa. Marcos Nobre aborda sempre a matéria bruta da política brasileira e suas implicações prováveis. Farei na sequência uma reconstrução de suas intervenções recentes e após isto algumas observações sobre suas insistentes formulações e propostas para a construção de uma frente ampla democrática (incluindo setores da direita e da esquerda), para enfrentar Bolsonaro.

As intervenções mais bem delineadas de Nobre sobre a ideia de uma frente ampla de democratas podem ser localizadas em o Caos como Método (Revista Piauí, Edição 151/Abril de 2019); Falso Arrependimento de Bolsonaro sobre Coronavírus não pode serAceito (Folha de São Paulo, 18 de março 2020) e Do Panelaço ao Impeachment (Folha de São Paulo/Ilustríssima, 19 de abril de 2020). Os dois últimos são textos recentes, já no contexto da pandemia da covid-19. O núcleo reiterado do seu argumento é que se quisermos alijar Bolsonaro do poder necessitamos de uma união ampla (e convergente) da sociedade – para Marcos Nobre é preciso, mais especificamente, que a direita democrática e a esquerda, também, democrática deixem de lado seus interesses e unam forças visando afastar o bolsonarismo das decisões políticas fundamentais, sobretudo, em circunstâncias da pandemia do coronavírus. Quais os pressupostos que organizam as asserções resolutivas de Nobre acerca da frente ampla?

Comecemos por Caos como Método. Ele, Marcos Nobre, formula a pressuposição que o grupo de Bolsonaro não pretende governar para a “maioria”; seu intuito dadas as condições políticas, sociais e morais é dirigir-se a “algo entre 30% e 40% do eleitorado”. Nobre, então, entende que na visão de Bolsonaro “essa base fiel é fundamental para [ele] manter o poder”. Em termos analíticos a base eleitoral de Jair Bolsonaro é conformada por pessoas que são lavajatistas, antipetistas, antissistema, abstencionista, moralmente conservadores e querem a lei e ordem. É esta morfologia social, portanto, que irá dar suporte para o capitão reformado do Exército. Seu surgimento como entidade sociológica resulta, de acordo com Marcos Nobre, de “uma revolta” contra o sistema político que pouco ou nada expressa os desejos deste setor. Assim, diz Nobre: “o desmonte [do sistema] chegou […] à cúpula” da política que vigorou no país desde há muito. Com efeito, este é o polo do caos avalia ele. No entanto, o grupo de Bolsonaro, ou o bolsonarismo, possui um polo racional. Nas palavras de Nobre – “uma máquina […] com o qual pudesse vertebrar seu governo”. Recorrendo ao expediente da comparação ele sustenta que malgrado Donald Trump ter o estilo de governo semelhante ao de Bolsonaro, o americano tem no Partido Republicano (um dos eixos de estruturação do sistema político nos Estados Unidos e que estabelece coerência e racionalidade) seu núcleo de vertebração. Aonde Bolsonaro foi buscar esta diretriz. Por aqui, nos trópicos, são os militares; em especial o “grupo dentro do Exército que participou da missão de Paz no Haiti” a proves a arrumação política do bolsonarismo. Os militares têm um “papel de organização transversal […] ocupando […] cargos de segundo e terceiro escalões” (e agora de primeiro). Numa síntese lapidar acerca do bolsonarismo Marcos Nobre dirá que: “o conjunto do governo se move entre esses dois polos: o mobilizador das bases sociais em rede e o organizador, representado pelos militares”. Algumas questões encaminham a parte final de o Caos como Método. (E daí se seguem as resoluções para a ação política sugeridas por Nobre). Jair Bolsonaro irá se adequar à institucionalidade do sistema político? Abandonará o capitão sua “ala antiestablishment”? Marcos Nobre responde que: por um lado, Bolsonaro e seu grupo não o querem, e por outro as forças armadas que poderiam canalizar o bolsonarismo para as instituições não conseguem fazer tal movimento dada sua estrutura hierárquica. Pelo que a alternativa, ou saída para Nobre é: “iniciar um movimento de refundação da institucionalidade democrática […], formar convergência […] (à direita e à esquerda) e apontar pra uma frente ampla democrática que congregasse os dois lados. [O] PT […], [o] PSDB e [o] MDB são identificados com o sistema político […], no entanto não há outra saída senão a organização [das] forças sociais democráticas dispersas […] da direita à esquerda – [necessitamos] de uma concertação democrática”. Esta é a fatura de o Caos como Método escrito no início de 2019 com menos de seis meses de governo do grupo bolsonarista.

Um ano depois, já no contexto da pandemia da covid-19 que surpreendeu o mundo, e está extirpando vidas aqui e alhures e que foi definitivamente negada por bolsonaristas em vista de seu projeto de destruição do Estado de 1988 – Marcos Nobre intervém no debate com dois outros textos de diagnóstico e ação. Em Falso Arrependimento de Bolsonaro… o argumento específico é sobre o fato do capitão ser um agente contumaz de desorganização das instituições, particularmente as da administração público-estatal. Nas palavras de Nobre, “Bolsonaro [exerce] ação desorganizadora” nos serviços públicos que mesmo assim continuam funcionando. É característico do presidente se voltar contra os que discordam dele, pois para Nobre, Jair Bolsonaro entende que “qualquer coisa, pessoa ou instituição” que o critique “faz parte do sistema”. A consequência disto é a incapacidade do atual governo enfrentar a devastadora pandemia do coronavírus. Ao se voltar contra as instituições e, sobretudo, o sistema (político), o grupo bolsonarista não é capaz de “governar”, lançando o país no precipício. Nobre, então, nesta primeira intervenção no contexto da crise da pandemia não sustentou a alternativa do impeachment – que alguns analistas e setores da própria esquerda e progressistas o fizeram –, de maneira pragmática ele argumentou pela formação de “núcleos de racionalidade […], forças políticas […] [para a] coordenação de ações com caráter de união nacional [que] poderia ser […] liderado pelo congresso nacional e […] equipes técnicas”. Assim, Bolsonaro e seu discurso de saudação da “ditadura de 1964” ao qual ele a todo o momento do seu governo do caos mobiliza contra o “sistema” (seja este representado pelo “PSDB, PCdoB, DM, PT ou PMDB […] a Rede Globo, o Brasil 247 ou a Folha”), precisa ser apartado por “um polo público de organização e de liderança”: e isto, tal política, “precisa voltar a ser jogada dentro das instituições […] mesmo que sejam [as] instituições avariadas e capengas” que temos.

O tríptico de Marcos Nobre se fecha (até o momento) com Do Panelaço ao Impeachment, publicado no Ilustríssima da Folha de São Paulo em 19 de abril de 2020. Aqui o processo de impeachment de Bolsonaro é, de certa forma, defendido por Nobre. De certa forma, pois existem algumas condicionalidades na análise. Marcos Nobre volta neste artigo ao que é sua virtude característica: ao exame fino sobre as forças política, as instituições, as tendências sociais e as condições para a ação dos progressistas em tal conjuntura. Com efeito, ele, assevera que “levar a sério a possibilidade de instaurar um processo de impeachment exige responder primeiro à questão se Bolsonaro perderá apoio nos próximos meses – e se essa perda de apoio inviabilizará seu projeto autoritário, mais ainda, seu próprio mandato”. O impeachment, dessa forma, depende de se os 30%, 40% do polo do caos dará sustentação (social) a Bolsonaro – e, por conseguinte ao grupo bolsonarista. De acordo com Nobre, a atitude suicida do presidente frente a covid-19 se deve a que ele busca a todo custo “assegurar a fidelidade [do] grupo” de 30%, 40% de seguidores. Marcos Nobre, no entanto, ainda diz neste ponto de seu artigo que Bolsonaro faz cálculos, pois ele sabe que mesmo do seu grupo de eleitores, sua base de apoio mais ampla, alguns o abandonarão, de modo que ele irá intensificar o discurso e as atitudes em direção àqueles aguerridos “que o defenderá com unhas e dentes contra um eventual processo de impeachment”. Estes são agora “12% do eleitorado”: segundo as estimativas apresentadas por Nobre. Mas mesmo com esses aguerridos adeptos não será factível a Bolsonaro evitar o impeachment; a “baixa aprovação [12%] é um requisito para a remoção do presidente”. Ainda que lutando – o bolsonarismo heavy será derrotado.

Entretanto, a derrota pede outra condição. Que a “maioria esmagadora” concorde em demover Jair Bolsonaro da chefia do Estado brasileiro. Neste momento, Marcos Nobre introduz variável que falta para as condições mesmas de impedimento do capitão reformado. Ora, para ele é somente, e arrisco a dizer exclusivamente, com “uma ampla frente […] [com] algum entendimento mínimo entre diferentes posições políticas dentro do campo democrático [na] base [da] concordância de que Bolsonaro represente um risco grande demais do país e à democracia”. Assim, se os campos da direita e da esquerda democráticas permanecerem culpando um ao outro pelo momento ao qual nos encontramos, a frente não será possível. É necessário “um pacto” para o impedimento de Bolsonaro; o sistema político e as forças que o constitui precisará de racionalidade coordenada e consensual sobre os termos da competição entre partidos: é uma escolha, “decisão”, sustenta Nobre por fim, entre “a continuidade do colapso institucional [e o projeto autoritário de Bolsonaro]” e o entendimento, uma “convergência mais ampla possível, que contenha a direita e a esquerda democráticas” para salvar o país do capitão e pandemia do coronavírus.

Decorre da argumentação geral de Marcos Nobre exposta nas intervenções públicas que comentamos três movimentos: o primeiro, é preciso reconstruir o sistema político (despedaçado e que Bolsonaro se valeu para se eleger e intensificar o despedaçamento); o segundo, é premente, na medida em que ainda existe entre nós, a união (frente) entre direita democrática e esquerda democrática para impedir Bolsonaro e salvar a democracia e o terceiro, Bolsonaro tem capacidade de ainda estar no governo porque possui um grupo aguerrido (que lutará com unhas e dentes) em luta por ele, mesmo esse grupo não sendo mais os 30%/40% da eleição, e o presidente governa para estes objetivando os manter em estado de guerra (caos). Algumas observações acerca desta argumentação geral de Marcos Nobre. Comecemos pela última.

Será que Bolsonaro governa efetivamente para o polo do caos? Por outras palavras, são os 30%, 40% e agora de acordo com as estimativas apresentadas por Nobre podem estar apenas em 12% de aguerridos seguidores os agentes de sustentação do bolsonarismo, pelo que o presidente fará o possível e o impossível para mantê-los fiéis? Jair Bolsonaro de fato acredita que este grupo ou setor (ou movimento se se preferir) tem reais condições de influenciar o jogo político brasileiro a ponto de livrá-lo de um processo de impedimento? É evidente que a presença social deste setor mais fidedigno às posturas autoritárias, preconceituosas, violentamente patriarcais e negacionistas de Bolsonaro tem importância significativa na movimentação do presidente e seus filhos. A imagem de uma das últimas manifestações numa manhã de domingo ensolarada em Brasília ao qual Bolsonaro acenava da ponta da rampa do Palácio do Planalto para seus seguidores fiéis é inquestionável. Mas ele seria pouco inteligente se assentisse em governar apenas para estes 30%, 40% ou 12%. Necessitamos ser cáusticos aqui: o grupo bolsonarista, com Jair Bolsonaro como ponta de lança, tem um projeto de país bem delineado e que expressa concretamente as ambições materiais (e espirituais) da elite econômica. O setor empresarial (indústria), o sistema financeiro, grandes bancos – com seus executivos e economistas consultores – e os conglomerados do comércio se articulam simbioticamente com o grupo militar para de certo modo proteger o presidente. Bolsonaro é uma espécie de círculo de aço que protege aquele projeto político de quaisquer conjecturas adversas. (Ou ainda, o grupo bolsonarista é a síntese estrutural destes setores da vida social brasileira.)

Eles conquistaram o Estado, por aspectos contraditórios que emergiram a partir de várias contingências – e não vão no curto prazo, enquanto tais aspectos tiverem vigorando deixar de lutar, também aguerridamente, para manter a conquista. Ora, não é ocasional que o ministro inquestionável nos círculos bolsonaristas seja Paulo Guedes. Há inconvenientes aqui e ali. No entanto, negar a forte presença de Guedes no governo e a relativa moderação no trato de Bolsonaro com ele é pouco sugestivo no nosso momento. Parte decisiva do governo bolsonarista e seu projeto de país estão expressos na longa entrevista de Guedes para a Folha de São Paulo em 03/11/2019. Ali ele apresenta o núcleo de sua reforma ou transformação do Estado brasileiro forjado na constituição de 1988. Marcos Nobre, reiteradamente, secundariza estas variáveis de suas análises e intervenções. Mas este é o custo de referenciar as abordagens tendo com pressuposto e horizonte o sistema político – e a asserção de que é preciso reconstruí-lo para preservar a democracia brasileira.

Daí que Nobre por colocar como secundário o círculo de aço: está sempre em busca de uma ampla frente composta pela direita democrática e a esquerda democrática. Isso repercute no núcleo da própria ideia e proposta de frente, pacto ou concertação como o quer Marcos Nobre: o segundo movimento de sua argumentação geral. Não se trata de questionar, quem são esta direita e esquerda democráticas como se estivéssemos fazendo uma arguição em banca de tese. Trata-se de termos a percepção crítica de como se movimenta na teia de relações políticas e de interesses o conjunto das forças de direita, a extrema (prefiro a designação de Perry Anderson, direita intransigente) e a democrática. Assim, é possível, a partir de uma teia de relações averiguar que a direita democrática se afasta de Bolsonaro no que diz respeito às questões de valores, costumes e posturas institucionais, enquanto a extrema direita ou a direita não-democrática defende e difunde as tendências autoritárias do presidente e o desprezo pelo sistema como assevera Nobre. Ocorre que a mesma direita democrática na teia de relações não tem delineado para ela qual posição a tomar diante de Bolsonaro, do bolsonarismo e do quadro político-histórico mais ampla. Notemos duas ou três situações da atual movimentação da direita democrática.

Quando Roberto Alvim em 18 de janeiro de 2020 cita um trecho do discurso de Joseph Goebbels, ministro da propaganda nazista, algumas figuras importantes do que entendemos por direita democrática (suponho que por esta Marcos Nobre veja um leque maior de personagens, grupos e setores sociais do que os partidos políticos) se postaram como se fosse um chiste a declaração de um membro do primeiro escalão do governo – incapaz, obviamente, de comprometer a agenda econômica. Não podemos menosprezar, ou mesmo secundarizar a fala (divulgadas por veículos importantes da imprensa) de figuras e grupos do campo econômico concernente às atitudes do governo Bolsonaro em geral. Com efeito, como podemos vislumbrar uma frente ampla quando da ocasião do discurso de Alvim nos defrontamos com: “é preocupante um cara do primeiro escalão [observe-se a admissão de ser Alvim do escalão primeiro do governo] do governo falando de Goebbels. Mas a questão moral é outro espaço, é vida privada, outro fórum […] o mercado não tem posição política” (Samuel Pessoal, Folha de São Paulo, 18 de março de 2020); e mais adiante “por incrível que pareça, está tudo ótimo (no mercado) […] é uma opinião pessoal e não relevante […] e neste governo esse tio de coisa tem sido irrelevante […] está passando reformas, é isso que importa” (José Francisco de Lima Gonçalves, Folha de São Paulo, 18 de março de 2020). É bem-pensante afirmar, vez por outra, que o conjunto da esquerda erra ao se voltar para seus interesses políticos e eleitorais, para o seu suposto revanchismo após a escalada da direita contra ela após 2014 – com a lava-jato, a mídia conservadora, as elites econômicas e figuras da opinião pública à frente –; que seja. Mas como poderemos formar um quadro cognitivo de legitimidade de sorte a convencer setores sociais, pessoas e comunidades que oscilam politicamente, de que esse governo nos leva para o precipício e continuará nos levando (como ocorre agora na pandemia) sustentando considerações como deste tipo. Quem quer a chuva tem que aceitar a lama. Assim, não seria das mais interessantes ações para a esquerda voltar à lama que está procurando sair.

Pode-se argumentar que esta postura da centro-direita, ou direita democrática como o quer Marcos Nobre, ocorreu antes da covid-19. No entanto, há uma ideia transversal de país – da direita democrática ao grupo bolsonarista e Jair Bolsonaro. (E isto não é de responsabilidade do conjunto das forças de esquerda, da democrática à radical.) Marcos Lisboa, presidente do Insper, debatedor democrata e economista mais do que influente na discussão pública, escreveu três artigos em sua coluna dominical na Folha de São Paulo no contexto da pandemia do coronavírus e dos ataques negacionistas (autoritários) de Jair Bolsonaro e seu grupo. Nenhum deles exigindo o afastamento do capitão para salvar o país. Ele, ao invés disso, intima o governo a não sacrificar seu projeto de país: pois não devemos aumentar nossa “dívida pública”, não se deve remendar o “Plano Mansueto” e o “congresso deveria apenas aprovar […] gastos temporários”. Isto foi escrito em 05 de abril de 2020. Uma semana depois (12 de abril de 2020) Lisboa insiste; “a despesa obrigatória de muitos estados [é] com folha de pagamento”, os estados (e os municípios) querem aproveitar a pandemia para “postergar o pagamento de suas dívidas e fazer novos empréstimos com aval da união” (Sic). E na coluna de 26 de abril de 2020, não há mudança de atitude do economista sobre o negacionismo do governo Bolsonaro ou mesmo seu desprezo pelo sistema político – já no auge da covid-19, Marcos Lisboa se exaspera com a “proposta de tributar em 10% o lucro dos últimos 12 meses das empresas com mais de R$ 1 bilhão de patrimônio”. Temos que nos perguntar: como é factível uma frente ampla com a direita democrática com este espírito político em situação de colapso social com o coronavírus?

Assim, ao que parece a direita democrática não quer frente ampla qualquer. No nível estrito do jogo institucional, Rodrigo Maia já se afastou na teia de relações da perspectiva do impeachment (ou de qualquer outra ação para demover o presidente) e no mesmo passo – aproximou-se de Bolsonaro, que agora controla o dito centrão (mais precisamente, segundo Bruno Stankevicius [do site De Olho nos Ruralistas/Unisinos], os partidos político que formam a Frente Parlamentar da Agropecuária, os ruralistas mesmo por assim dizer: que tem à intenção de isolar Maia) e adquiriu, temporariamente, estabilidade política. E o próprio Fernando Henrique Cardoso oscila em suas resoluções para a crise. A direita democrática mesmo se afastando de Bolsonaro e seu grupo, ainda assim, possui interesses objetivos, projeto de país e modos de ver a sociedade brasileira – inclusive as forças de esquerda. Assim, se por um lado o governo Bolsonaro de certa maneira perdeu legitimidade e poder com a saída de Sérgio Moro do Ministério da Justiça, por outro lado, e contraditoriamente, as forças da direita fincaram outro eixo de articulação política: e não envolve de nenhum modo, qualquer vislumbre que seja de conformação de uma frente ampla com a esquerda democrática. Moro é visto ainda como representante do antipetismo, o homem que condenou Lula e destronou a esquerda corrupta do poder. Como sustenta o filósofo conservador Francisco Razzo “Moro pode encarnar a partir de agora a visão de uma direita democrática em contraste com o projeto marcadamente autoritário de Bolsonaro” (Folha de São Paulo, 10 de maio de 2020), e, por conseguinte, dar continuidade à nova ideia de Brasil que atravessa as forças de direita. Em nenhum momento se verifica a intenção de forjar uma frente ampla com a esquerda, mesmo a democrática como quer Marcos Nobre – muito pelo contrário. Definitivamente se se quer reconstruir nosso sistema político, o primeiro movimento da argumentação geral de Nobre para a preservação da democracia, o que é discutível enquanto causalidade, não se poderá contar com a direita democrática. Na teia de relações políticas seus fios têm outro destino que as preocupações de Marcos Nobre.

A angústia por salvar o sistema político e, consequentemente, nossa democracia de modo a salvar país do caos no contexto da covid-19 impedindo de alguma maneira Jair Bolsonaro e o autoritarismo que expressa e difunde, tem de ser substituída por outra angústia, e urgentemente. Desgraçadamente, nossa democracia de há muito não responde, supostamente, aos seus fins (pois o que dizer da foto do pai de João Pedro aos prantos debruçando-se sobre o caixão de seu filho exterminado pela polícia/Estado/elite no Rio de Janeiro); e estamos já no caos em meio à pandemia: a imagem e a situação das periferias, das comunidades pobres do país, hospitais públicos, unidades de saúde e cemitérios é indescritível do ponto de vista humano. Esta batalha nós já perdemos. A angústia tem de ser em reconstruir amplamente a esquerda – com frentes, pactos, concertações, sem sectarismo, crítica e percepção real de si mesmo, incluindo o maior número possível de figuras públicas, coletivos populares, movimentos sociais e partidos – para as próximas batalhas e não serão poucas e fáceis contra Bolsonaro, o bolsonarismo (o círculo da aço) e, “infelizmente”, a direita democrática ao que tudo indica (Neste aspecto a intervenção de Chico Alencar aqui nas páginas do A Terra Redonda [A Unidade Necessária, 22de maio de 2020] propondo uma frente de esquerda/progressistas é fundamental e decisiva para o próximo período.) Entretanto, não faremos isto deitando, novamente, no leito de Procusto. Sem dúvida é preciso escutar, ler e estudar com seriedade o que nos diz a presciência e o refinamento analítico de Marcos Nobre – ele é um de nossos melhores intelectuais. Mas não se pode perder de vista que “os alfinetes de ouro são enfiados em seios também por fastio” (Dostoiévski, Memórias do Subsolo).

*Pesquisador e Pós-Doutorando no Departamento de Ciência Política da USP.

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