Colaboração transnacional mostra lobby e estratégias de grupos religiosos e ultraconservadores durante a pandemia de coronavírus na América Latina
Por Nelly Luna Amancio, Kennia Velázquez, Gloria Ziegler, Andrea DiP, Mariama Correia, Agência Pública
“É muito provável que, com essa vacina [que está sendo desenvolvida contra a Covid-19], queiram colocar dentro do nosso corpo um nanochip com geolocalização”, disse há algumas semanas o pastor argentino Alberto Savazzini, aspirante à presidência do Peru, admirador de Jair Bolsonaro e líder da organização Deus é Amor (I.D.E.A, da sigla em espanhol), uma pequena igreja evangélica localizada na cidade de Buenos Aires. A declaração de Savazzini expõe um dos pontos que os grupos religiosos mais fundamentalistas da América Latina têm reforçado durante a pandemia, apelando para o medo e para a culpa: o coronavírus foi inventado em laboratório, a vacina que está em desenvolvimento será um instrumento de controle da humanidade e essa crise é o resultado de uma série de pecados.
Um dos principais traços desta crise sanitária é a incerteza. Sem cura específica, com tratamentos clínicos experimentais, conhecimento progressivo sobre o vírus e com unidades de tratamento intensivo em colapso, milhares de mortos e uma crescente crise econômica para os tantos que ficaram sem emprego por conta das medidas de isolamento, organizações fundamentalistas religiosas têm se utilizado do contexto para difundir medidas e ações que colocam, inclusive, a saúde das pessoas em risco. Seus líderes têm questionado as medidas sanitárias e chamado de pecados direitos adquiridos como o aborto legal, o casamento igualitário e a educação com foco em questões de gênero. E neste momento esses grupos têm encontrado ainda aliados perigosos: os movimentos antivacina.
“Poderes impuros” é uma investigação jornalística liderada pelo OjoPúblico no Peru, em parceria com a Agência Pública e PopLab, que analisa e detalha em profundidade o papel dessas organizações políticas e religiosas durante a crise sanitária. Como parte da investigação, a equipe de repórteres construiu uma base preliminar de dados de 298 ações realizadas, entre março e maio, por 120 atores políticos e líderes religiosos de diferentes igrejas, cultos, partidos e organizações.
A reportagem registrou ações no Peru, Argentina, Brasil e México que vão desde recomendações antissanitárias, discursos contra direitos adquiridos, falsos remédios e argumentos sem evidência científica que colocam os seguidores em risco, até iniciativas legais para impedir o acesso ao aborto em países onde este é legal. Esta série de reportagens mostra também que as medidas de isolamento não interromperam o pagamento de dízimos. Em todos os países, há uma forte campanha para que os fiéis continuem contribuindo financeiramente, mesmo que tenham sido afetados pela quarentena ou perdido o emprego devido às medidas restritivas.
A agenda comum
Não é o culto que une as organizações mais fundamentalistas da região, mas a agenda. Detectados os primeiros casos de coronavírus na América Latina, simultaneamente essas organizações religiosas e ultraconservadoras rechaçaram as quarentenas obrigatórias, difundiram teorias conspiratórias, como a de que o vírus havia sido criado em laboratório, e atacaram a Organização Mundial da Saúde. Vários desses líderes religiosos, como os argentinos Fernando Secin (médico) e Gabriel Ballerini (membro da direção da Confederação Evangélica Batista Argentina), celebraram a suspensão do financiamento à entidade anunciado pelo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump.
Na Argentina, no Peru e no México, essas organizações começaram a estabelecer alianças com outros atores “que compartilham de seu repúdio à agenda de direitos de gênero. Entre eles, um número importante de católicos. Aos poucos, foram abrindo um campo de batalha, transversal a toda a sociedade”, afirma o sociólogo e antropólogo argentino especializado em culturas populares e religião Pablo Semán, em entrevista ao OjoPúblico. Uma das expressões dessa coalizão política está em plataformas como “Con Mis Hijos No Te Metas” (Não se meta com meus filhos, em tradução livre), movimento muito semelhante ao brasileiro Escola Sem Partido.
Além da agenda política, duas ações promovidas por algumas dessas organizações colocaram em risco a saúde dos fiéis. No Brasil e no Peru, quando os casos de Covid-19 ainda não haviam chegado aos dolorosos números atuais – mais de 30 mil e 4 mil mortos, respectivamente –, um grupo de igrejas evangélicas continuou realizando cultos massivos e recomendando aos fiéis a fé como a única cura. “Não se preocupem com o coronavírus, porque essa é a tática de Satanás”, chegou a dizer o bispo Edir Macedo, líder da Igreja Universal do Reino de Deus, organização investigada por lavagem de dinheiro e fraude de mais de US$ 765 milhões arrecadados de dízimos de seus fiéis.
Não só estimularam a aglomeração massiva de pessoas como também divulgaram falsos remédios nas semanas seguintes. “Vou te ungir com álcool em gel, com nardo puro, e você estará pronto para vencer o coronavírus”, disse Héctor Aníbal Giménez, fundador da igreja Cumbre Mundial de los Milagros e um dos pastores evangélicos mais conhecidos da Argentina. No México, o deputado do estado de Sonora pelo Partido de Encuentro Social, organização política de centro-direita fundada pelo ex-pastor evangélico Hugo Eric Flores Cervantes, chegou a dizer que a Covid-19 “não é tão grave como dizem” e “que pode ser curada tomando chá de canela de manhã, ao meio-dia e à noite”.
O Ministério Público Fiscal da Cidade de Buenos Aires abriu uma investigação contra o pastor Aníbal Giménez por oferecer falso tratamento para a doença. Mas nem sempre isso ocorre, mesmo quando dezenas desses líderes administram meios de comunicação ou dirigem rádios com milhares de seguidores. E a desinformação não vem apenas de grupos fundamentalistas, mas também de presidentes autodeclarados progressistas
No México, Andrés Manuel López Obrador disse em março, quando os primeiros casos já haviam sido identificados no país: “Isso de que com o coronavírus a gente não pode se abraçar; a gente tem que se abraçar, não vai acontecer nada”. Nas semanas seguintes, o líder de uma estranha coalizão que reúne o Partido del Trabajo e o Movimiento Regeneración Nacional, de esquerda, e o Partido Encuentro Social, de direita, continuou suas viagens, aglomerando, abraçando e beijando pessoas em suas aparições públicas. No Brasil, o presidente Jair Bolsonaro também subestimou por diversas vezes a pandemia.
Estímulo a medidas antidireitos
Mais de 60% das ações e discursos analisados para esta reportagem estão relacionados a duras críticas e medidas legais que os grupos religiosos e políticos usaram contra o aborto legal durante a pandemia. O questionamento começou no México e na Argentina, onde, como no Brasil, o aborto é legal em determinados casos, como estupro e risco à saúde da mãe, quando as autoridades definiram como essenciais os serviços de interrupção legal da gravidez.
“Os hospitais estão fechados, abertos apenas para emergências e para abortar. O nível de abortismo deste governo é tamanho que coloca o aborto como uma emergência de saúde pública, e isso no meio de uma pandemia”, questionou Gabriel Ballerini, líder da Frente NOS, uma coalizão política de direita da Argentina. Esta e outras organizações tentavam fazer com que o governo do país interrompesse os serviços clínicos de interrupção legal da gravidez.
No México, desde os primeiros dias da quarentena, ministros de diversos cultos afirmaram que o novo coronavírus era um castigo pelo aborto e pelo casamento igualitário. “Deveríamos prestar mais atenção em outras coisas como possíveis causas da pandemia, por exemplo, o aborto”, comunicou a Igreja Evangélica Batista. Mas essa é apenas uma das mais de 70 organizações que utilizaram ativamente, entre março e maio deste ano, medidas e discursos contra direitos adquiridos. No país, o aborto legal tem como um de seus opositores ferrenhos um dos homens mais próximos do presidente: Arturo Farela, líder da Confraternização Nacional de Igrejas Cristãs Evangélicas (Confraternice, na sigla em espanhol), que agrupa em torno de 7 mil igrejas em todo o país.
De acordo com a análise preliminar da base de dados desta reportagem, no México os partidos PAN e Encuentro Social têm sido os mais ativos nesses últimos meses com lobbys para fazer recuar o aborto e o casamento igualitário. Além disso, ambas as organizações se opuseram a medidas de anistia para mulheres presas acusadas de abortos ilegais durante o estado de emergência nas prisões. Estima-se que há 880 desses casos no país.
No Peru, onde apenas o aborto terapêutico é legalizado e todas as outras formas de interrupção da gravidez são proibidas, um grupo de organizações vinculadas à plataforma Con Mis Hijos No Te Metas questionou a publicação de uma diretiva sanitária que garantia o acesso ao planejamento familiar e à saúde da mãe durante a pandemia. A norma estabelece que o pessoal médico poderá “considerar a interrupção da gravidez, a qualquer momento, caso a gestante infectada pela Covid-19 corra risco de vida”.
A crítica contou com o apoio de organizações de advogados ultraconservadores, de meios de comunicação como Aciprensa e de Carlos Polo, diretor do Population Research Institute na América Latina, uma organização autodeclarada pró-vida com sede nos Estados Unidos.
No Brasil, em março, o Hospital Pérola Byington, em São Paulo, suspendeu o serviço de aborto legal. O Pérola Byington é o hospital de maior referência, especialmente no atendimento a vítimas de violência sexual, recebendo mulheres de todo o país. “Coincidentemente”, o ambulatório do Serviço de Violência Sexual e Aborto Legal se tornou um local de triagem de gripe para pacientes atendidos. Cobrado pelo Ministério Público e pela Defensoria Pública, o hospital disse que suspendeu os atendimentos ambulatoriais para “reduzir a circulação de pessoas e evitar o contágio”. Sob pressão, o serviço foi retomado.
Alianças políticas
Mesmo que entre as organizações religiosas a Igreja Católica ainda concentre a maior porcentagem de fiéis na América Latina, o avanço de grupos evangélicos tem sido mais estratégico nas alianças com organizações políticas. O Brasil tem a maior porcentagem de evangélicos, com 26%; seguido pelo Peru e pela Argentina, com 15% e 13%, respectivamente; e, por fim, o México, com 9%. No entanto, esses números não dizem nada. No país presidido por López Obrador, a presença e a proximidade da Confraternice com o poder alcançou o ponto mais alto com esse governo que venceu as eleições dizendo-se progressista.
Na Argentina, uma das igrejas evangélicas mais conhecidas é a Igreja Universal do Reino de Deus, vinculada à brasileira liderada por Edir Macedo. Mas, segundo os especialistas, não é a que possui mais fiéis. A maioria dos seguidores evangélicos está em igrejas menores. O número de fiéis no país cresceu 6,3 pontos percentuais durante a última década, segundo a Segunda Pesquisa Nacional sobre Crenças e Atitudes Religiosas, do Conselho Nacional de Investigações Científicas e Técnicas (Conicet).
No Brasil, os evangélicos representam uma das principais forças políticas. Muitas igrejas possuem meios de comunicação, como a Igreja Universal do Reino de Deus, que tem influência no Peru, na Argentina e em outros países da região. Além disso, o Grupo Record, fundado por Edir Macedo, é o quarto maior conglomerado de mídia no país.
A Universal está diretamente ligada ao partido Republicanos, que tem dois filhos de Bolsonaro entre seus afiliados, o vereador Carlos Bolsonaro e o senador Flávio Bolsonaro. O atual presidente do partido é o deputado Marcos Pereira, e sua candidatura à presidência da Câmara dos Deputados, no ano que vem, deve ser apoiada pelo presidente Bolsonaro, em aliança com Edir Macedo, segundo a Pública.
A participação política dos evangélicos através de alianças estende-se por toda a região. Por trás das maciças marchas contra o aborto e o enfoque de gênero na Argentina e no Peru, há organizações fundamentalistas que expressam sua proximidade política com o presidente Jair Bolsonaro. No Peru, o político Rafael López Aliaga, secretário-geral do partido Solidaridad Nacional, se autodenominou, no início do ano, como o “Bolsonaro peruano”.
Em um contexto de polarização política e crise, a distância entre o Estado e as igrejas parece, por vezes, se encurtar. Diferentemente do Peru, no México a Constituição Política garante a separação entre Igreja e Estado. No Brasil, a Constituição também garante o Estado laico, mas o atual governo apenas não cumpre.
Por esse motivo, as organizações religiosas mexicanas não podem ter acesso, por exemplo, a licenças para operar rádios ou canais de televisão. Ali, o laicismo estatal começou em meados do século 19, mas, paradoxalmente, é um governo intitulado de esquerda que tem encurtado essa lúcida distância.
Pós-pandemia
Qual será a situação no contexto de pós-pandemia? “O que acontece com o eleitorado na América Latina é que, há 30 anos, ele vive esperanças e desilusões muito fortes, que têm a ver com a capacidade decrescente dos Estados para atender às necessidades de setores muito amplos”, afirma o sociólogo e antropólogo argentino Pablo Semán.
Isso se traduz em um comportamento pendular durante as eleições: às vezes, o eleitorado aposta no oficialismo, em outras, na oposição. E os evangélicos não são alheios a esse fenômeno. “Como a maioria se vê afetada, busca lideranças fortes e, consequentemente, programas punitivistas. Por essa via, os eleitores chegam à direita e, entre eles, aos evangélicos”, conta Semán.
Em entrevista ao OjoPúblico, o doutor em ciências sociais e pesquisador do Conicet Marcos Carbonelli disse que acredita que a influência dos evangélicos poderia aumentar no âmbito das políticas públicas durante os próximos meses. “Em épocas de pobreza, Estados imperfeitos, como os nossos, precisam de mediadores para chegar ao povo. E aí entram os religiosos”, afirma.
A crise econômica e social dos próximos meses poderia se converter em um terreno fértil para as ideias e propostas ultraconservadoras. A liberdade religiosa é um direito garantido, mas, como mostram as reportagens desta série coordenada pelo OjoPúblico, na América Latina o lobby dessas organizações fundamentalistas está afetando direitos civis que promovem a igualdade e o acesso universal à saúde.
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Imagem: Claudia Calderón/OjoPúblico