Na disputa entre os magistrados Caneca e Nebraska, ganhou Weintraub

Por Lenio Luiz Streck*, em ConJur

1. A Sereníssima República e o “fator Weintraub”
O grande Machado de Assis escreveu o conto A Sereníssima República, na qual o Cônego Vargas relata sua descoberta: “aranhas falantes, que se organizaram politicamente”. Bom, hoje provavelmente Machado usaria outra espécie de animal.

Enfim, sigo. O Cônego lhes ofereceu um sistema eleitoral a partir de sorteio, onde eram colocadas bolas com os nomes dos candidatos em sacos.

O inusitado ocorreu quando da eleição de um magistrado (para uma corte superior). Havia dois candidatos. A disputa era “Nebraska contra Caneca”. Em face de problemas anteriores — grafia errada de nomes de candidatos nas bolas — a lei estabeleceu que uma comissão de cinco assistentes poderia jurar ser o nome inscrito o próprio nome do candidato.

Feito o sorteio, saiu a bola com o nome de Nebraska. Ocorre que faltava ao nome a última letra (A). Mas as cinco testemunhas resolveram o problema. Afinal, Nebrask, faltando um A, só poderia ser… Nebraska.

Caneca, o derrotado, impugnou o resultado. Trouxe um grande filólogo, formado por uma famosa Universidade que apresentou a sua tese:

  1. Em primeiro lugar, não é fortuita a ausência da letra ‘a’ do nome Nebraska. Não havia carência de espaço. Logo, a falta foi intencional.
  2. E qual a intenção? A de chamar a atenção para a letra ‘k’, desamparada, solteira, sem sentido. Ora, na mente,’k’ e “ca” é a mesma coisa.
  3. Logo, quem lê o final lerá ‘ca’; imediatamente, volta-se ao início do nome, que é “ne”. Tem-se, assim, “cané”.
  4. Resta a sílaba do meio ‘bras’, cuja redução a esta outra sílaba ‘ca’, última do nome Caneca, é a coisa mais demonstrável do mundo. Mas não demonstrarei isso.
  5. É óbvio. Há consequências lógicas e sintáticas, dedutivas e indutivas… Aí está a prova: a primeira afirmação mais as silabas ‘ca’ às duas ‘Cane’ dando o nome Caneca.”

Pronto. Eis o ganhador: Weintraub! Simples assim. Era ministro. Pediu demissão. Usou o cargo para entrar nos EUA. Burlou o sistema. Descobriram o nosso Caneca. O governo deu o drible das aranhas e republicou a demissão. Piorou a situação. Viva a Sereníssima Res-privada!

2. Un Ballo in Maschera (ópera de Verdi escrita no Planalto)
Por falar em Sereníssima, leio que o Presidente da Sereníssima República foi obrigado, por decisão judicial, a usar máscara (maschera). No baile de Brasília (no RS também), todos devem usar máscara. Que ótimo!

Então: Bolsonaro é um morador de Brasília. Logo, deveria usar máscara. Porém, segundo a AGU, a decisão judicial não pode obrigar o Presidente. Por que será que não?

Bem, a AGU recorreu da decisão. Pois é. Diz que é para preservar a harmonia entre os poderes. Eu diria que a ação serve para preservar a saúde pública. Afinal, Weintraub não foi multado? Não deve ser fácil ser AGU. Toda hora tem de servir de cleaner. Depois se diz que a AGU é de Estado. E que não é órgão de governo. E nem é órgão de defesa do Presidente. Por mim, sem problemas que a AGU faça isso. Meus amigos advogados públicos sempre dizem que são “de Estado”. Não os contesto. Porém…

3. Extra, extra: Cura total e rápida do Coronavírus – 4.564 casos já registrados
Com insônia por causa das versões e “transversões” da dupla WW (Wassef-Weintraub), zapeando, descobri a grande novidade. Uma das Igrejas que tem programa à noite tem uma tabela de curas, por reza, do coronavírus. Sério. Ontem o placar estava em 4.564 curas. Só num dia foram 111 curas.

Fiquei pensando: isso só de um rezador. Se juntarmos todos da Igreja dele, teremos milhares, dezenas de milhares de curas da Covid-19. O Ministério da Saúde deveria estar atento.

Bom, depois que ouvi de um pastor que a oração tinha tirado um sujeito do SPC e, já de outra religião, vi (na TV) que uma dívida tinha sumido, desaparecido. Com reza. Com isso, poderíamos pagar todas as dívidas, pois não? Em nome de o Senhor Jesus!

Diz-se que isso tudo é liberdade de crença. Bom, a hermenêutica teve seu início, na modernidade, em três frentes: bíblica, jurídica e filológica. Quem sabe aí não está uma neo-interpretação da Constituição?

4. E o Prefeito decretou jejum e orações!
Leio que um Prefeito do Mato Grosso do Sul decretou um dia de jejum e 21 de orações. Tudo para enfrentar a Covid-19. O interessante é que isso foi parar no Tribunal de Justiça, por certo por ser inconstitucional. Já houve decisão. Segundo o TJ, o decreto do alcaide não fere o Estado laico, porque não obriga a população a jejuar e nem a praticar orações.

Seria, então, uma norma sem sanção. Tipo “não fume”, sendo apenas um conselho. Está bem. Dizem que o próximo decreto do burgomestre será sobre prática de sexo, mas sem caráter cogente.

E está no forno outro decreto: proibição de morar debaixo da ponte. Normatividade? Depende. Os ricos não serão atingidos. Como dizia Anatole France! Ou o camponês salvadorenho, de La Torre Rangel: la ley es como la serpiente; solo pica al descalzos.

*Jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito.

Foto: Durante sua gestão, o ministro foi pródigo em declarações nada edificantes sobre o ensino público e suas instituições (FABIO RODRIGUES POZZEBOM/AGÊNCIA BRASIL)

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