Cultivadas por mulheres, sementes de alimentos são distribuídas no PR para gerar renda e atendimento à fome

Livres de químicos e cultivadas por gerações, as sementes crioulas são essenciais para preservação da biodiversidade.

Lizely Borges, Terra de Direitos

Para cerca de 2 mil famílias paranaenses as sementes crioulas entregues nas duas primeiras semanas de setembro são importantes frentes de enfrentamento à fome e a diminuição da renda que se impõem às mesas e aos bolsos, com mais intensidade nos últimos meses. São 23 comunidades urbanas, quilombolas, de áreas indígenas, da agricultura familiar camponesa e de assentamentos da reforma agrária, de quatro regiões do estado, que receberam 185 variedades de sementes crioulas, mudas, plantas medicinais e ramas – de diversos tipos de feijão, hortaliças, frutas, chás, temperos, grãos, e outros, organizadas em kits.

A entrega dos produtos é parte de uma das etapas que têm as mulheres no centro da ação e conta com o apoio da Rede Sementes da Agroecologia (ReSA) e organizações que integram a articulação. São elas que conduzem toda uma cadência produtiva e de distribuição do alimento e das plantas – desde o plantio, a colheita, o armazenamento das mudas e sementes, a montagem de kits e a articulação com comunidades, culminando nas entregas.

Nomeadas de guardiãs das sementes, as trabalhadoras da terra em área rural e também urbana operam com variedades cultivadas por gerações ou resgatadas recentemente e que –  adaptadas ao ambiente e ao modelo de produção local – dispensam fertilizantes químicos, agrotóxicos ou outra prática de dano ao meio ambiente, ao alimento e às pessoas. Em contexto de substituição do alimento de maior qualidade nutricional pelos ultraprocessados, fruto da crise e de um modelo de agricultura que ignora as necessidades internas e se volta ao mercado externo, e de aumento do uso de agrotóxicos, os alimentos gerados pelas sementes crioulas são um bom cuidado à saúde do corpo e à biodiversidade nestes tempos.

“Cada ano que passa é liberado muito agrotóxico. Nós queremos simplesmente ter alimentação saudável, pra nós e pra todas as pessoas”, declara a guardiã de sementes de Palmeira (PR), Ana Andreia Jantara. A troca de sementes já é uma prática consolidada em feiras periódicas. Andreia, por exemplo, relata que há 17 anos participa destes espaços. Aquele punhadinho de sementes, trocado entre guardiãs durante as feiras, se tornou um banco de sementes cultivado nos poucos metros do terreno em área urbana onde reside. “Muitas das sementes que tenho quantidade significativa eu comecei com 10 sementes”, relata orgulhosa a guardiã de já 70 variedades.

Feiras e encontros são espaços para partilha das variedades e dos conhecimentos adquiridos, mas também de comercialização – já que várias guardiãs e guardiões de sementes fazem desse seu ofício e fonte de renda. No entanto, a pandemia postergou, para um futuro ainda indefinido, a boa aglomeração gerada pelos mais de 30 eventos previstos para o ano de 2020 no estado do Paraná e estados vizinhos, como São Paulo e Santa Catarina. O caminho encontrado para garantir que a agrobiodiversidade circule pelo estado foi, então, a reunião de sementes, a montagem de kits e o retorno deles para guardiãs e comunidades em vulneráverabilidade.

“Quando a gente suspende estes mais de 30 momentos de encontros, alguns com mais de 4 mil pessoas, essas sementes ficam estáticas, paradas nos territórios, porque os agricultores não tem mais espaço de troca. Isso gera vários problemas, da circulação da agrobiodiversidade no estado, na diversificação dos alimentos, na autonomia dos agricultores e na segurança alimentar e nutricional tão necessária a estes tempos”, destaca a assessora jurídica da Terra de Direitos, Naiara Bittencourt.

Antes mesmo da alta ainda mais intensa no preço dos alimentos, a dificuldade de acesso à comida já se fazia presente. Ao final de agosto uma pesquisa desenvolvida pelo Ibope e Unicef registrou que mais de nove milhões de brasileiros deixaram de comer por falta de dinheiro. Quase metade da população (49%) sofreu mudanças nos hábitos alimentares durante a pandemia. Os impactos, aponta a pesquisa, são ainda mais intensos em famílias com crianças e adolescentes.  

É nesta esfera que a distribuição das sementes, plantas e mudas incide. “Vemos o aumento da pobreza, da miséria e da fome, vivemos também um momento de insegurança alimentar: por serem mais baratos as pessoas comem mais alimentos ultraprocessados e os alimentos da agricultura familiar chegam menos até as famílias. A distribuição dos kits também busca garantir que haja diversidade na alimentação das famílias agricultoras urbanas e gera um aumento da imunidade, leva o fortalecimento físico do corpo e da própria biodiversidade”, destaca Naiara.

Mulheres, centro da ação
A passos firmes e lentos Vani Rodrigues da Silva, a Dona Vani, se direciona para a horta e depois para a cozinha. Quer mostrar o trabalho diário e de várias décadas, da plantação de hortaliças e do seu banco de sementes guardadas no armário dentro de casa. Para a quilombola de Serra do Apon, comunidade localizada em Castro (PR), a guarda das sementes é uma conexão viva com o passado. “A gente aprendeu com o pai a guardar sementes”. Mandioca, feijão, verduras e legumes, tudo vem das mãos que tratam aquela mesma terra há mais 70 anos, onde ela viveu e se criou, como ela fala. Do mercado só vem o arroz, o açúcar e o azeite que o pedaço pequeno de terra ainda não titulada não dá conta de produzir.

Ao ser perguntada se ela é uma professora da guarda das sementes ela consente com a cabeça e se alegra com o anúncio de que os kits de sementes, mudas e plantas entregues na comunidade é fruto exclusivo da ação de mulheres. “Ah, eu gosto dessa conversa, de que as mulheres estão trabalhando e não desistindo da luta”, diz. 

Na escuta às mulheres guardiãs de sementes elas relatam, com frequência, como a relação com as variedades não se restringe à um trabalho, com horário e práticas delimitadas. Qualquer interação com o mundo passa a ser uma boa oportunidades para resgate e ressignificação da agrobiodiversidade. Seja na “enxadinha” que a guardiã Vera Luisa, de Mandirituba, sempre carrega em busca de mudas, seja nos “ciscos” (gravetos, grama, etc), as folhas secas e as sementes nativas que Dona Vani busca do mato e leva para a horta, ou na visita a parentes aos domingos que sempre rendiam a volta para casa com sementes no bolso da mãe de Ines Fatima Polidoro, da Comissão Pastoral da Terra (CPT).

Integrante também da ReSA, Ines destaca como as mulheres têm sido fundamentais para preservar a agrobiodiversidade ao longo dos anos. “São as mulheres historicamente que percebem as sementes como possibilidade de produção de alimentos e cuidados à vida”, diz. “A mulher trabalha, faz as experiências, fortalece um tipo de variedade de planta, percebe o cuidado com saúde nas plantas medicinais, troca com outra e aprende, mas quem leva o bônus é homem”, denuncia. Esse bônus ainda atribuído à mãos masculinas enseja que a renda familiar esteja sob controle dos homens, assim como as decisões sobre a produção. “Parece uma coisa natural que o homem provém a vida da família, que vai atrás, que faz negócio, que vende, que decide onde plantar. Isso é histórico e o patriarcado reforça”, completa Ines, destacando que até pouco tempo o título da propriedade rural era apenas concedido ao homem.

Ainda que a guarda de sementes não seja guiada exclusivamente pela busca da renda, a compra das sementes das guardiãs para montagem dos kits é um passo importante para autonomia financeira feminina e valorização do trabalho das mulheres. “A compra das sementes possibilita independência às mulheres, a valorização dos seus trabalhos e vai contagiar outras mulheres que fazem a mesma coisa, mas que não são vistas e reconhecidas. Ela [a guardiã] pode então gerir o recurso fruto do seu trabalho, o que não é muito comum no campo”, sublinha, em resgate ao fato de que, por muitas vezes são os homens guardiões que aparecem mais.

Um Estado contra a política de produção de alimentos

A produção de alimentos para consumo interno tem ganho maior visibilidade nas últimas semanas, com holofotes mais sobre a ausência e a política deliberada de desmonte de medidas de fomento ao pequeno(a) agricultor(a) do que sobre ações positivas do governo. Neste cenário, configuram-se o veto presidencial quase integral ao Projeto de Lei 735/2020, no final de agosto, de apoio a agricultores familiares durante a pandemia, a ausência de estoques reguladores mantidos pela Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) para suprir a demanda nacional por alimentos – estoques reduzidos desde o governo de Michel Temer (MDB) – com preços justos e o privilegiamento da destinação dos alimentos para mercado externo. 

Já especificamente sobre o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) a modalidade que determina a compra de sementes – ação essencial para garantir a produção de alimentos – ainda nem passou a operar no ano de 2020. E em governo arredio às demandas populares, nem mesmo a escuta pelas vias institucionais sobre a necessidade de provimento de alimentos é possível. O Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) foi extinto com a reforma administrativa no início da gestão do governo Bolsonaro (PSL). 

Diante disso, o anúncio que reverbera pelo país e internacionalmente sobre retorno do Brasil ao Mapa da Fome pouco mobiliza o governo. “Há diminuição generalizada de renda no campo. Se há dificuldade de renda para compra de sementes poderá ter aumento da miséria no campo também, porque agricultores não terão acesso ao mínimo para continuar produzindo”, aponta Naiara.

“A política [PAA sementes] não está acontecendo. A sociedade, as comunidades rurais, os movimentos sociais têm que se virar para garantir a circulação de sementes. Não tem nenhuma política pública que veio suprir esta lacuna. A compra de sementes, a montagem e a distribuição dos kits poderiam ter outra escala e abranger outros públicos de forma mais ampla e perene se fosse elaborada pelo governo. O que temos feito é ação da sociedade que tenta suprir essa lacuna”, complementa. 

Para a guardiã de sementes moradora do Acampamento José Lutzenberger, na cidade de Antonina (PR), Luzinete Souza Oliveira, estes tempos, ainda que sombrios e de prognóstico negativo – especialmente para o povo – também deve ser de reafirmação da obrigação do Estado em promover as políticas públicas de fomento à produção dos alimentos saudáveis e de valorização das sementes. 

“A gente tem que mostrar para sociedade, mostrar para os governantes da cidade, do estado e país a importância dos alimentos saudáveis nessa crise que vivemos hoje. Sementes são bem da humanidade.A política pública [o PAA sementes] está fragilizada, mas a gente precisa ser mais insistente nessa proposta de valorização da semente, que é uma proposta para a humanidade”, diz ela. Luzinete, orgulhosa, relata que forneceu sementes e mudas de feijão, frutas, leguminosas e flores para os kits. “Quem receber vai ver muita variedade bonita, é bastante novidade”, relata. 

*Revisão Luiza Damigo.

Imagem: As sementes crioulas carregam informações sobre cada clima, solo e manejo específico / Divulgação/Outras Palavras

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