A questão fascista: Bolsonaro e seu cesarismo quimérico

Para seguidores do presidente, Brasil vive uma guerra santa de moralidade, e precisa de um herói autoritário. Governa sobre o medo dos “vândalos”. É uma máscara para disfarçar verdadeiro monstro que o conduz: o neoliberalismo

por Grupo de Pesquisa Poder Global, Desigualdade e Conflito (RGPIC)

Era 18 de março de 2020, e o presidente brasileiro Jair Messias Bolsonaro havia convocado uma entrevista coletiva, juntamente com seus ministros, para discutir a situação da pandemia da covid-19 no Brasil. O Presidente tentou colocar sua máscara médica de volta na frente da mídia. Incapaz de fazê-lo, Bolsonaro colocou a máscara sobre seus olhos, cobrindo-os, ao invés de sua boca e queixo. Esta imagem tornou-se um símbolo representando a ignorância e incompetência com que o Presidente da República estava lidando com a pandemia da covid-19.

O Presidente provou mais uma vez que sua lealdade era aos grandes grupos empresariais do país, mesmo que fosse em detrimento da saúde de seus compatriotas. Bolsonaro incentivou os brasileiros a ir às praias, às compras e aos bares e restaurantes. Sua atitude desdenhosa em relação à pandemia global ficou evidente na forma como ele a descreveu: “O Coronavírus é apenas uma pequena gripe”, “…por causa de minha história como atleta, se eu o pegasse não teria que me preocupar”, ou “os brasileiros deveriam ser estudados. Eles nunca ficam infectados. Vemos pessoas nadando nos esgotos, e elas saem e nada lhes acontece.”

Com a intensificação do impacto da pandemia no Brasil, as nomeações do governo Bolsonaro pareceram desmoronar, perdendo seus dois ministros da saúde e da justiça em apenas uma semana. Mas como um líder assim chegou à presidência? Para entender isto, devemos estudar o apoio que moldou o projeto de extrema direita conhecido como “Bolsonarismo”.

O Brasil, o maior país sul-americano com quase 210 milhões de habitantes, é também um exemplo de como a classe dominante redesenhou os símbolos do neoliberalismo nos últimos anos. Apesar dos altos índices de desigualdade, racismo estrutural e enormes índices de violência [1], os brasileiros elegeram Jair Messias Bolsonaro, de extrema direita, como presidente da República em 2018. O projeto Bolsonaro de construir uma hegemonia consistiu em um projeto cultural, político e econômico alinhado: a articulação dos grandes proprietários de terras no setor agrícola do país, as igrejas evangélicas e o exército, um bloco de poder capaz de ativar mecanismos de barbárie. Seus interesses estão muito distantes daqueles das classes populares. Eles se veem como defensores de um projeto político caracterizado pela privatização de serviços públicos, racismo pós-colonial, ataques a minorias e o uso da violência contra regiões periféricas e áreas habitadas pelas classes trabalhadoras.

Entretanto, a contradição óbvia foi justificada dizendo que Bolsonaro era um “homem do povo”, ou seja, um homem que podia colocar “ordem na casa” diante da corrupção da classe política. Bolsonaro foi deputado por 27 anos, mas ele conseguiu transmitir esta imagem de uma pessoa normal, e suas deficiências e retórica violenta foram uma reafirmação de que, como um homem normal, ele era uma pessoa imperfeita. As características autoritárias desta figura não foram interpretadas como uma ameaça às liberdades individuais, mas seus partidários viram nele uma figura autoritária contra o “inimigo”, ou em termos gramscianos, um “cesarismo regressivo” (Gramsci, 1948) capaz de superar as partes em conflito do establishment, sendo uma manifestação e suposta solução para uma crise orgânica. Bolsonaro se apresentou como uma figura messiânica, um messias em quem depositar fé e esperança. Bolsonaro tinha articulado uma fronteira de identificação política: o “bom cidadão”, que seria qualquer eleitor seu, contra os “vândalos”. Os vândalos seriam qualquer pessoa contra ele, e que, através de um processo de higienização característico do fascismo, não seria uma pessoa com “substância moral digna”, ou seja, uma pessoa que poderia ser atacada e eliminada (Cardoso de Oliveira, 2002).

O Cesarismo regressivo da figura de Bolsonaro era portanto justificado pelas classes populares através da metáfora da guerra (Lakoff, 1996): segundo esta metáfora, o Brasil se encontraria em uma guerra santa de moralidade e boa cidadania, e somente um herói, com características estritas e autoritárias, teria a capacidade de travar essa guerra e libertar o Brasil do inferno. Uma vez construída esta metáfora, o medo tomou conta da população, submetendo-se emocionalmente ainda mais à figura autoritária do Bolsonaro e dando origem a uma falsa nostalgia: nostalgia pelos tempos gloriosos, pelos militares do golpe de 1964 e pelo “pequeno grande homem” (Adorno, 1950) em líderes que, como Hitler ou Mussolini, representavam as imperfeições mais cotidianas ligadas aos traços messiânicos construídos desde a época de César.

Conclusões – O que fazemos em tempos de Coronavírus?

A epidemia atual da covid-19 tem sido tratada pelos líderes da extrema direita mundial como uma “gripezinha” (no caso de Bolsonaro), um racismo contra os asiáticos, chamando a epidemia de “vírus chinês” (no caso de Trump), construindo uma metáfora de guerra, não contra o vírus, mas contra os corpos portadores, ou seja, principalmente os pobres e/ou imigrantes. Ambos os discursos são um exemplo de como esses líderes, construídos sobre a retórica antiestablishment, são, em última instância, representantes da ordem financeira, de um neoliberalismo moribundo a partir do qual devemos construir alternativas.

Outros representantes da extrema direita, como o presidente indiano Narendra Modi ou o presidente filipino Rodrigo Duterte, estão usando punições físicas, como prisão em canis de cães ou a ameaça de serem baleados se não cumprirem com as medidas estabelecidas [2].

Estamos em um momento histórico em que os progressistas devem combater a crise hegemônica do neoliberalismo que estas figuras representam. Neste momento, as ações de cada um de nós podem ter uma transcendência para as próximas décadas. Talvez este texto sirva para esclarecer os processos de construção destes líderes autoritários de extrema direita e desmascará-los, compreendendo num momento de pandemia os verdadeiros poderes factuais que eles representam. Nestes tempos está sendo demonstrado que estes líderes representam um Cesarismo quimérico, uma forma de populismo sem compromisso nacional-popular ou laços de solidariedade internacional, que abandona as classes populares para o monstro do neoliberalismo.


[1] Até 2017, o número de homicídios no Brasil havia aumentado para 63.880 anualmente, um aumento de mais de 37,5% em relação a 2007. Neste ano, o Brasil teve uma média de 175 homicídios por dia. Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

[2] Fonte: Human Rights Watch

ADORNO, Th. W. & ALII (1950) The Authoritarian Personality – Studies on Prejudice. New York, Harper & Brothers.

CARDOSO DE OLIVEIRA, Luis Roberto (2002). Direito Legal e Insulto Moral – Dilemas da Cidadania no Brasil, Quebec e EUA. Rio de Janeiro: Relume-Dumará.

GRAMSCI Antonio (1987) Cuadernos de la cárcel. en PORTANTIERO, J. C. y DE IPOLA, E. Estado y sociedad en el pensamiento clásico. Antología conceptual para el análisis comparado. Buenos Aires, Cántaro. (1ª ed. 1948)

LAKOFF, G. (1996). Moral politics. Chicago: University of Chicago Press. 

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