Vacinas: cresce a crítica ao descaso do governo

Gonzalo Vecina, ex-presidente da Anvisa, ataca corpo mole na compra dos imunizantes e afirma: postergar vacinação até março é “crime”. Sob Bolsonaro, agência impõe regras restritivas e protelatórias de “aprovação emergencial”

por Maíra Mathias e Raquel Torres, em Outra Saúde

OS CRITÉRIOS DA ANVISA

A Anvisa anunciou ontem que vai aceitar pedidos de farmacêuticas para a aprovação temporária e emergencial de vacinas contra a covid-19. Com isso, as vacinas autorizadas poderão ser aplicadas em determinados grupos da população mesmo antes do registro. É o que já está em curso nas agências dos EUA e do Reino Unido, por exemplo. No Brasil, a possibilidade já estava prevista no regulamento da Anvisa, mas nunca havia sido usada.

Sem essa aprovação emergencial, a imunização poderia demorar um bocado para começar. Segundo a Anvisa, o registro oficial só é concedido depois que os ensaios são encerrados e todos os dados são submetidos à avaliação. Porém, os protocolos das empresas preveem que os estudos se estendam por aproximadamente dois anos – período no qual os voluntários seguem sendo monitorados, mesmo depois de saírem os primeiros dados de eficácia e segurança. Isso é necessário para, por exemplo, avaliar efeitos colaterais de longo prazo e saber quanto tempo dura a imunidade. O que está acontecendo durante a pandemia é que, como há urgência em vacinar a população, essa autorização temporária pode acontecer com base no risco-benefício, analisado a partir dos dados disponíveis. 

A modalidade não vale para qualquer imunizante. A Anvisa publicou um guia sobre os requisitos mínimos que as empresas precisam atender para entrar com seus pedidos. É necessário, por exemplo, que a vacina candidata esteja na fase 3 dos ensaios clínicos e que voluntários estejam sendo testados no Brasil (hoje, há quatro que se encaixam: a de Oxford/AstraZeneca, a da Pfizer/BioNTech, a CoronaVac e a da Janssen, da Johnson & Johnson). 

Mais que isso, é preciso que já haja resultados de análise interina de desfecho primário da fase 3 demonstrando no mínimo 50% de eficácia. Quanto à segurança, ela tem que ser observada nos voluntários da fase 3 por pelo menos dois meses depois da aplicação da última dose da vacina (é exatamente com esse tipo de dado que a Pfizer e a Moderna estão solicitando aprovação emergencial em outros países). Há um enorme conjunto de outros requisitos que pode ser conferido no guia.

Segundo a Anvisa, as vacinas autorizadas não vão poder ser vendidas. “Elas só poderão ser utilizadas no que a gente chama de uso institucional. Só poderão ser destinadas a programas de governo, programas específicos para que se possa ter um controle e que fique muito claro que é uma autorização de uso emergencial com um foco muito específico”, explicou o gerente de medicamentos da Anvisa, Gustavo Mendes , em coletiva de imprensa. Outro detalhe é que a autorização emergencial não vai contemplar a vacinação em massa da população inteira, o que só vai poder acontecer após o registro final. Ela vai se restringir a públicos específicos, como idosos ou profissionais de saúde (e esse público precisa ser definido nas solicitações de autorização). Quem for se vacinar vai precisar assinar um termo de consentimento afirmando que conhece os riscos.

NO INÍCIO DO ANO

Eduardo Pazuello disse que o Brasil vai receber, entre janeiro e fevereiro, o primeiro lote das vacinas de Oxford/AstraZeneca. Serão 15 milhões de doses, de um total de cem milhões negociadas com o fabricante. É claro que, para a vacinação acontecer, a Anvisa precisa conceder a autorização emergencial, e para isso os dados corretos de eficácia e segurança da vacina precisam ser liberados…

E a Câmara aprovou ontem a medida provisória que destina R$ 1,9 bilhão para a Fiocruz comprar, processar e distribuir essas cem milhões de doses. Parte do valor já foi liberado em agosto, quando a MP foi assinada por Bolsonaro. Mesmo assim, o texto segue para o Senado e precisa ser votado hoje para não perder a validade. 

SAIU NA FRENTE

O Reino Unido surpreendeu ao autorizar ontem o uso emergencial da vacina da Pfizer – foi o primeiro país do mundo a fazê-lo, passando na frente dos EUA. Cerca de 800 mil doses vão estar disponíveis para a população já na próxima semana (ao todo, o país comprou 40 milhões dessa empresa). Profissionais de saúde, idosos e pessoas dos grupos de risco terão prioridade. A medida gerou críticas por parte da União Europeia. A EMA, agência reguladora do bloco, afirmou que seu próprio procedimento de análise é mais apropriado, pois exige mais verificações. Ele deve se encerrar no próximo dia 29. A União Europeia já tem um acordo com a Pfizer para garantir 200 milhões de doses, com possibilidade de cem milhões adicionais.

Vale lembrar que os dados e os resultados da Pfizer ainda não foram publicados em revista científica, com revisão de pares. 

O movimento britânico deve colocar pressão para que a FDA, dos Estados Unidos, também autorize logo o imunizante no país. Uma pressão que já é exercida pelo governo Trump desde que a farmacêutica americana anunciou os 95% de eficácia de sua candidata. 

APERTOU

A Pfizer continua tentando vender sua vacina ao Brasil e, agora, começou a falar em um prazo bem curto. “O tempo é curto, de alguns dias, ou talvez uma semana (…) A disponibilidade aqui depende de quando será fechado acordo com governo federal, porque o número de doses para todos os países tem diminuído consideravelmente em vista do interesse que existe”, disse ao Globo Alejandro Lizarraga, um dos diretores da farmacêutica no Brasil. 

O Ministério da Saúde considera que esse imunizante não está no rol dos ‘ideais’, por conta da necessidade de manutenção em baixíssima temperatura. A Pfizer, porém, já disse que tem como garantir a refrigeração por meio de caixas especiais com gelo seco. Especialistas defendem que é possível superar os desafios logísticos e adotar o imunizante, se houver planejamento, investimento e… vontade política

CAPITULAÇÃO

Ex-presidente da Anvisa, o sanitarista Gonzalo Vecina faz duras críticas ao plano de vacinação apresentado pelo Ministério da Saúde: “O plano proposto de vacinação que parte da existência de uma única vacina e da ficção do Covax Facility é de um cartorialismo criminoso. Ignorar que somente no país tivemos quatro vacinas em testes e provavelmente exitosas e que deveriam ter merecido um esforço de negociação do governo é inaceitável. Propor que iniciemos a vacinação em março e que no máximo alcancemos um terço da população em 2021 significa não realizar nenhum mínimo esforço de tentar oferecer alternativas à população. É uma pública capitulação. É um crime”.

CASA TOMADA

A falha na administração dos dados pessoais dos brasileiros pelo Ministério da Saúde mostra que a crise brasileira é mais aguda do que a imaginação alcança. Não só as informações de 243 milhões de registros de pessoas atendidas no SUS e pelos planos de saúde ficaram expostas por seis meses, como essa base sofreu adulterações para dar vazão ao ódio político da extrema direita. 

Segundo o Estadão, a ex-presidente Dilma Rousseff foi renomeada em dois registros como “motherfucker” e “Vai Bolsonaro”. Já no caso de Manuela D´Ávila houve uma adulteração no campo em que apareceria o nome de seu pai, trocado para “Luís Inacio Pingaiada da Silva”. O mesmo campo foi adulterado no registro da apresentadora Xuxa. Seu pai aparece como “Luiz Floriano Bolsonaro”. No campo nome social, preencheram: “petista sfda” – e para Luciano Huck, “nareba”. Tudo isso é crime, segundo a Lei Geral de Proteção de Dados.

A falha de segurança, denunciada ontem pelo jornal, mais uma vez tem a ver com a exposição do login e da senha de acesso ao sistema no código do site – que pode ser acessado de qualquer navegador e facilmente compreendido por quem tem conhecimentos básicos de programação. 

Nos dois casos, o problema está no sistema e-SUS-Notifica, criado especialmente para a pandemia por uma empresa de tecnologia contratada pelo Ministério da Saúde. A Zello (que também já se chamou MBA Mobi) já recebeu do governo federal mais de R$ 43 milhões desde 2017. Ainda não se sabe quanto foi desembolsado pelo ministério pelo e-SUS Notifica. A pasta também não explicou à repórter Fabiana Cambricoli porque optou pela contratação de uma empresa, já que tem a seu dispor um departamento de informática, o DataSUS, com experiência no desenvolvimento de sistemas de notificação. A Zello tem fugido da imprensa sem prestar nenhum esclarecimento. 

E tem outro detalhe: caso as pessoas que tiveram seus dados expostos resolvam entrar na Justiça, a conta também será paga pela Viúva – já que cabe ao ministério supervisionar empresas. Diante de mais esse escândalo, a pasta divulgou que está apurando as responsabilidades.  

DE ‘PRIMEIRO MUNDO’

Eduardo Pazuello disse ontem a parlamentares que “sempre” trabalhou com a ideia de que seria possível estender a validade dos 7,1 milhões de testes PCR estocados por seu ministério – e, por isso, teria sido pego de “surpresa” pela repercussão do vencimento. Na audiência pública convocada para que ele explicasse o caso, o ministro da saúde sentenciou que o prazo será estendido pela Anvisa – “Essa validade pequena seria e será renovada” –, mas a agência continua informando à imprensa que ainda aguarda informações da pasta “para subsidiar a análise e deliberação sobre o caso”.

Pazuello saiu-se com outras tiradas semelhantes. Segundo ele, “a principal estratégia” do governo é confiar no diagnóstico clínico da covid; deixando claro que essa estratégia é simplesmente deixar o vírus correr solto, já que a pasta não apoia nem o isolamento social, tampouco foi atuante para fortalecer o rastreamento de contatos nas redes de saúde. O ministro também teve a coragem de dizer que os testes estão em um depósito “de primeiro mundo”. Perdem o vencimento, mas estocados em condições impecáveis…

De acordo com o Estadão, a Anvisa deve dar ao escândalo protagonizado pelos militares um tratamento diferente do que vinha dispensando até então a pedidos semelhantes feito por empresários. A agência chegou a dar aval para a extensão da validade de testes, mas vetou o uso dos produtos estocados. Nesse caso, deve exigir uma análise para cada lote do produto encalhado para verificar se os testes continuam seguros e eficazes.

AGRADANDO O CHEFE

Durou menos de 24 horas a portaria do Ministério da Educação que determinava que universidades e institutos federais retomassem as aulas presenciais a partir de 4 de janeiro. Há quem diga que tudo não passou de uma manobra do ministro da vez, Milton Ribeiro, para agradar o presidente. Na semana passada, ele participou da transmissão ao vivo veiculada por Jair Bolsonaro dizendo que “o parecer do MEC é em defesa do ensino presencial”. A medida foi considerada inconstitucional, já que as instituições têm autonomia. Agora, Ribeiro promete abrir uma consulta pública “para ouvir o mundo acadêmico”. 

ALÉM DA ORIGEM

O esforço investigativo sobre a origem do novo coronavírus ganhou um reforço importante na semana passada, quando o periódico científico The Lancet criou uma força-tarefa com 12 especialistas que se dedicarão ao problema. Por enquanto, nem eles ou mesmo o time de cientistas montado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) têm autorização para viajar à China. É claro que a politização da pandemia cobra seu preço: o próprio coordenador da força-tarefa da Lancet, Peter Daszak, viveu isso na pele: um edital de US$ 3,7 milhões foi retirado pela Casa Branca da organização que ele coordena, a EcoHealth Alliance, depois que a administração Donald Trump soube que ela colabora com o  Instituto de Virologia de Wuhan.

De toda forma, os desafios são grandes o bastante sem levar em conta o contexto político e uma reportagem da Wired relata esse quebra-cabeça. Em primeiro lugar, não é sempre que os cientistas conseguem reconstituir a cadeia de transmissão dos vírus emergentes. Há casos em que tudo bate, como o do Nipah, vírus que surgiu na Malásia em 1998 e cuja história inspirou os roteiristas do filme Contágio. Na época, o desmatamento para abrir plantações empurrou morcegos, antes isolados, para a beira de uma floresta; os bichos se instalaram nas árvores perto de uma criação de porcos, e os contaminaram. Os porcos, por sua vez, infectaram os humanos. “Quando os epidemiologistas investigaram o surto, todas as peças ficaram visíveis ao mesmo tempo”. 

A história do Sars-CoV-2é diferente: já se passou aproximadamente um ano desde que os primeiros casos de pneumonia de origem desconhecida apareceram em Wuhan. A essa altura, o vírus já foi encontrado em amostras de sangue, escarro ou esgoto coletadas antes de dezembro em países como Itália, França, Brasil e EUA – o que coloca em dúvida a cronologia da pandemia. Há, contudo, algum grau de certeza de que tenha surgido na China: uma sequência genética 96% semelhante ao novo coronavírus foi detectada em um morcego capturado vivo em 2013 em outra província chinesa, Yunnan, a cerca de 1,6 mil quilômetros de Wuhan. “Esses quatro pontos percentuais de diferença são suficientes para indicar que o vírus do morcego não havia simplesmente passado para humanos uma única vez; pode ter passado por múltiplos cruzamentos de morcegos para humanos e depois para outros humanos, ou de morcegos para outros animais e daí para humanos”, explica a repórter Maryn McKenna. 

De qualquer forma, saber como o vírus ‘transbordou’ de animais para nós é uma parte do desafio da força-tarefa da Lancet. O segundo objetivo dos pesquisadores é fazer recomendações para ajudar o mundo a se antecipar a pandemias – e não há muito consenso a respeito de como se possa fazer isso.
O próprio Daszak defendeu no passado que deveria haver um reforço no trabalho de detecção de novos vírus na vida selvagem, para encontrá-los antes que os patógenos deem o salto zoonótico, ou seja, sejam transmitidos entre espécies. Mas há quem observe que isso não deu muito resultado dando como exemplo o caso do vírus da zika, nosso conhecido, que foi descoberto num longínquo 1947 e, mesmo assim, causou muitos estragos entre 2015 e 2018. 

Ouvido pela reportagem, o biólogo Colin Carlson defende que os sistemas de saúde deveriam ser fortalecidos para que pudessem fazer os testes necessários para a detecção de surtos – o que pode exigir uma avaliação completa de qualquer paciente que chegue a qualquer hospital com os tipos de sintomas que geralmente são categorizados como ‘virose’: febre inexplicável ou sintomas de infecção respiratória sem causa óbvia. Mas isso não basta, pois essas informações deveriam ser registradas em algum sistema de alerta global, de modo que qualquer padrão emergente possa ser percebido antes que os contágios saiam do controle.

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