Já adaptada, os Guarani Kaiowá temem novamente a retirada da criança do convívio familiar, de sua comunidade tradicional e pedem sua manutenção no território
por Adi Spezia, em Cimi
Cinco anos se passaram após Élida de Oliveira, moradora do tekoha – lugar onde se é – Nhu Vera, ter o filho apartado de seus braços com apenas sete dias de nascimento. A criança Guarani Kaiowá WR (abreviação judicial do nome) foi retirada de seu convívio social pelo Conselho Tutelar, teve seu nome modificado por um juiz e levada para o abrigo Lar Santa Rita, em Dourados, município do Mato Grosso do Sul onde está localizada a aldeia.
Após longa jornada processual e inúmeras violações, em novembro deste ano, ainda de forma temporária, à mãe e ao filho foi permitido o convívio como família – dividindo o mesmo teto, cama, comida e a vivência na aldeia. A criança, porém, foi novamente retirada do convívio familiar sob a justificativa da participação em uma festa promocional do abrigo Lar Santa Rita – organizada para arrecadar fundos. O abrigo afirma que o devolverá ainda nesta quarta-feira (9) e já responde à ação da Defensoria Pública do Estado (DPE).
A mãe, embora preocupada de novamente não ter o filho, não esconde a alegria em tê-lo de volta: “aqui estou, feliz de novo, pois ele voltou morar comigo, daqui ele foi levado desde pequenininho agora voltou, eu sempre o esperava, agora voltou, estou feliz. Ele é meu filho, não é filho de outra pessoa. Desde pequeno levou ele e hoje trouxe de volta ele”. WR está se adaptando a uma vida que antes lhe usurparam de maneira abrupta. Com frequência a criança tem afirmado que gosta de dormir um pouco mais tarde “porque aqui eu vejo até as estrelas”.
“O resultado tem sido uma criança criada longe do seu vínculo mais precioso – o materno”
O menino está totalmente reinserido à vida em comunidade, onde foi acolhido conforme costumes e tradições. No entanto, os Guarani Kaiowá temem por nova retirada do convívio de seu povo. “Ele está bem, totalmente adaptado aqui, brincando com os animais. Está gostando muito porque está com a mãe e os irmãos”, relatam os indígenas que pedem a manutenção da criança no território.
Os cinco anos distante do tekoha não foram capazes de impedir para WR a interação com estas relações. Apesar de todas as violações, e o regresso não ter se dado como estabelecido no processo judicial, o retorno da criança tem sido razão de grande alegria para toda a aldeia.
Se de um lado o Estado tem privado a criança de conviver com sua família, em casa e com o povo, por outro há uma mulher indígena lutando para viver a maternidade.
“O resultado tem sido uma criança criada longe do seu vínculo mais precioso – o materno”, explica a psicóloga que acompanha o Grupo de Apoio às mulheres Guarani e Kaiowá. Élida não é um caso isolado, outras mulheres de diversos tekoha enfrentam situações similares. Por decisão das profissionais envolvidas, não divulgaremos seus respectivos nomes para evitar represálias. Tamanha a frequência desta prática de retirar crianças de suas mães, no Mato Grosso do Sul, que foi necessário criar um Grupo de Apoio.
A iniciativa reúne ativistas de direitos humanos e indígenas. Além de ser um grupo de ação direta, também tem se dedicado a reunir informações e documentos para que essas mães possam entender os motivos que levam a estas ações de retirada de seus filhos, uma vez que muitas sequer compreendem o português – menos ainda os direitos relacionados ao mátrio poder e demais caminhos de acesso à Justiça.
Sob o olhar da psicologia, a criança sentir-se acolhida é fundamental nesta reaproximação familiar. Não se trata de lençol novo ou ar-condicionado, mas de afeto, que é o sustento do desenvolvimento infantil; quando se trata de famílias indígenas Guarani Kaiowá, tais relações se dão no tekoha. “Onde o jeito de ser, viver, cuidar e amar ocorrem de outro modo; nem mais, nem menos, apenas diferente e igualmente importante”, esclarece a psicóloga. “WR precisa da sua família, dessa família que – do seu jeito – banha, alimenta, protege, brinca, canta, ensina, suja, corre e sentem juntos o vento no rosto”, assegura a profissional.
“WR precisa da sua família, dessa família que – do seu jeito – banha, alimenta, protege, brinca, canta, ensina, suja, corre e sentem juntos o vento no rosto”
Élida conta que não sabe viver sozinha e sempre morou com seus filhos. “Gosto de viver no meio da minha família. Desde que tenho filho pequeno nunca abandonei em nenhum lugar, sempre cresceram junto comigo. Contente, cedo eu faço comida, almoço e janta na hora certa. As minhas crianças nunca vão ficar com fome comigo. Eu sempre esperava, desde pequenininho ele foi levado e agora ele está de volta. No ano de 2020 ele já voltou comigo, por isso fico muito feliz”, celebra.
“Estou no meio dessas crianças e vou contar essa história. Nós temos que pedir apoio para que as crianças voltem a viver com a gente”, apela. Ela a própria história para também relatar a de outras mulheres indígenas que enfrentam a mesma luta; a mesma angústia de ter filhos e filhas levados de forma desumana, reveladora do nível a que a violação de direitos e a violência chegaram no Mato Grosso do Sul.
“Feliz de novo, pois ele voltou morar comigo. Daqui ele foi levado desde pequenininho e agora voltou, eu sempre o esperava. Ele é meu filho, não é filho de outra pessoa”
Além de ter seu filho levado, Élida teve sua maternidade contestada pelo Estado. O juiz que supervisionou o caso chegou a mudar o nome da criança levada para o Lar Santa Rita, um dos quatro abrigos para crianças da cidade. Um ano e meio depois, mesmo com teste de DNA confirmando a maternidade da indígena, seu filho não foi devolvido.
A distância entre a aldeia e o abrigo tornou-se desafiadora. Élida caminhava cerca de duas horas e meia para visitar seu bebê. Quando não pôde realizar o trajeto, foi acusada de abandono e seu direito de visita foi negado. Danos psicológicos e morais a que Élida foi submetida não foram levados em consideração até o momento. Quando WR foi retirado de Élida, o foi sob uma mentira: o Conselho Tutelar informou, conforme os indígenas apontam nos autos, que a criança seria levada apenas para uma consulta médica. Só voltou cinco anos depois e com uma batalha judicial em curso.
O temor da nova retirada e risco de contaminação pela covid-19
Segundo Caroline de Oliveira, uma das irmãs adultas de WR, na segunda-feira (07) a criança foi novamente retirada do convívio familiar sob a justificativa da participação em uma festa promocional em vista do feriado natalino – organizada pelo abrigo para arrecadar fundos. A atitude do abrigo causou angústia à mãe e aos familiares da Guarani Kaiowá.
Não apenas pela ação de nova ruptura forçada de laços, mas também por uma questão de segurança sanitária. A criança realizou quarentena junto com a mãe e os irmãos, quando regressou ao lar de onde foi retirado à força, e uma nova retirada colocará WR em risco de contaminação pela covid-19 levando a doença para a aldeia.
A situação é agravada à medida que indicadores de monitoramento da pandemia no estado apontam para o crescimento exponencial da covid-19. “A média móvel ultrapassou a barreira das mil confirmações, e com os dados atualizados desta quinta-feira (3), a média passa aos 1.006 casos registrados por dia na última semana”, consta o Boletim Epidemiológico Covid-19, publicado pela Secretaria de Saúde do Mato Grosso do Sul.
“Na segunda-feira (07) a criança foi novamente retirada do convívio familiar, sob a justificativa de participação numa festa promocional de natal, organizada pelo abrigo”
Nhu Vera é um território limítrofe à Reserva Indígena de Dourados, a mais populosa do país. Para controlar o acesso e diminuir a contaminação pelo novo coronavírus, os indígenas criaram barreiras sanitárias por conta própria, ainda no início da pandemia. Ou seja, um surto em Nhu Vera pode colocar em risco a Reserva de Dourados.
O Lar Santa Rita, responsável pela retenção da criança nestes 5 anos, comprometeu-se a devolvê-la à família nesta quarta-feira (9). A equipe de apoio, em visita à Élida, constatou a angústia da família com a espera pelo retorno da criança e também com o fato de terem sido impedidos, como família, de decidir sobre a participação de WR na festa de arrecadação de fundos da ONG.
“Mesmo sem uma aproximação gradativa a criança se adaptou à sua casa e está feliz ao lado dos irmãos e da mãe. É incompreensível que tirem ele da sua casa e o levem de novo”
A família de Élida acionou a Defensoria Pública do Estado pedindo intervenção no processo judicial, com receio de que a criança pudesse ser contaminada pela covid-19 e consequentemente, por qualquer outro motivo, fosse impedida de retornar ao convívio da mãe.
Segundo defensora Neyla Ferreira Mendes foi ajuizado pedido, ainda na semana passada, para que a criança não participasse da festa e que, consequentemente, não fosse mais retirada do convívio da mãe. “Mesmo sem uma aproximação gradativa a criança se adaptou à sua casa e está feliz ao lado dos irmãos e da mãe. É incompreensível que tirem ele da sua casa e o levem de novo, a pretexto de participar de uma festa em plena pandemia. Essa atuação intempestiva da casa abrigo (acolhida), além de temerária parece bastante irregular”, completa.
A luta de uma mãe
Élida luta há cinco anos para ter direito de ser a mãe de WR, filho tirado de seus braços com poucos dias de vida. A primeira violação de direitos de mãe e filho começa aí.
Após o ocorrido houve uma série de violações.
Mesmo com um exame de DNA provando que a criança é seu filho, WR não foi reinserido ao seio familiar. Ao contrário: foi mantido em uma instituição de acolhimento que deveria seguir a legislação de defesa de direitos da criança e adolescente, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA – LEI Nº 8.069 DE 13 DE JULHO DE 1990).
O Estatuto aponta com clareza os caminhos e dá orientação aos procedimentos para assegurar os direitos de criança e do adolescente. A lei, no entanto, não valeu para o WR conforme descreve o ECA (art. 19/art.28).
“Não há argumento plausível que sustente a permanência de WR em acolhimento, a não ser o de caráter preconceituoso”
Para a assistente social que acompanha o Grupo de Apoio, “não há argumento plausível que sustente a permanência de WR em acolhimento, a não ser o de caráter preconceituoso”.
Crianças ou adolescentes só devem ser acolhidos em abrigos quando forem esgotadas todas as possibilidades de sua permanência familiar e comunitária. A situação reflete a forma como as instituições públicas têm tratado as famílias indígenas, especialmente sobre o acesso às políticas públicas, direitos de todos os cidadãos.
“O acesso a estes espaços são sempre carregados de muito racismo e discriminação etnoracial”, conta Lídia Farias, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) Regional Mato Grosso do Sul e integrante do Grupo de Apoio. Assim como Élida, outras mães indígenas foram silenciadas, os seus filhos retirados e até adotados por famílias não indígenas.
“A retirada das crianças indígenas provoca duplas violações às famílias, uma vez que elas perdem o direito de educar os seus filhos de acordo com seus costumes, línguas e tradições”
A retirada das crianças indígenas provoca duplas violações às famílias, uma vez que elas perdem o direito de educar os seus filhos de acordo com seus costumes, línguas e tradições (direito previsto no artigo 231 da Constituição federal de 1988) e nos raros casos em que conseguem recuperá-los, as mesmas sofrem com a ruptura dos novos costumes impostos a estas crianças nas instituições de acolhida.
O relatório da Fundação Nacional do Índio (Funai), publicado em 2017, traz com frequência denúncias de crianças indígenas sendo retiradas das aldeias pelo Conselho Tutelar e levadas para abrigos da região de Dourados. A justificativa mais comum utilizada para essas retiradas é a “indigência”. A pobreza é o “resultado da negligência histórica do Estado Brasileiro, não de nossas famílias”, aponta nota da Aty Guasu, a Grande Assembleia Guarani Kaiowá.
“A pobreza é o resultado da negligência histórica do Estado Brasileiro, não de nossas famílias”
Este mesmo relatório da Funai aponta como “necessário refletir sobre como as instituições de acolhimento organizam suas atividades de cuidado e atenção às crianças, como (des)constroem seus hábitos alimentares e de higiene, como motivam ou proíbem que falem sua língua materna, como valorizam ou inferiorizam sua cultura e identidade étnica, como agregam valor ou afastam as crianças e jovens de suas comunidades”.
Lídia não consegue identificar em Élida nenhuma atitude que a desmereça. “Sempre que estive com ela, na aldeia, estava cuidando de seus filhos e netos. Com todos os desafios postos em seu contexto sociocultural, ela conseguiu amar e proteger os filhos”, conta Lídia.
O caso chama a atenção pela gravidade, mas também pela forma como as instituições têm negligenciando e padronizado a retirada dessas crianças indígenas de seu território. “Retiram as crianças apenas sob o argumento de negligência ou indigência. No caso de Élida, onde ela foi negligente? E por que foi negligente apenas em relação a um de seus sete filhos? Por que ela é pobre e obrigada a morar numa casa de ‘pedaços de paus e lonas?’”, indaga Lídia. Estas perguntas seguem sem respostas e o caso prossegue em sigilo de Justiça.
“Sempre que estive com ela, estava a posta cuidando de seus filhos e netos, com todos os desafios postos em seu contexto sociocultural, ela conseguiu amar e proteger os filhos de sua maneira”
Contestação da identidade étnica
A identidade étnica dos povos indígenas no Mato Grosso do Sul com frequência tem sido colocada em questão pela Rede de Proteção, em especial quando reivindicam seus direitos. Porém, essa mesma identidade é afirmada quando são acusados de transgressão de regras. A mesma identidade étnica, no caso dos Guarani Kaiowá, normalmente tem tido dois pesos e duas medidas, conforme a situação.
“Meu raciocínio vai ao encontro das discussões a respeito do preconceito étnico e do racismo à brasileira”, explica a antropóloga do Grupo de Apoio. Para ela, os Guarani Kaiowá precisam enfrentar a problemática desde muito cedo. Quando as crianças entram no abrigo, ainda pequenas, não é reconhecida a identidade étnica.
Não raro se acusa os indígenas e as crianças de terem perdido sua cultura. “O que nós chamamos de cultura é o modo de se fazer relação e não o conteúdo. É importante garantir a reprodução do modo de relação dos Guarani Kaiowá com as suas crianças”, assegura.
“Enquanto antropóloga sou interpelada com a afirmação da ‘aculturação’ das crianças indígenas institucionalizadas. Atuando com os Guarani Kaiowá em Mato Grosso do Sul, frequentemente me espanto com os usos políticos do conceito”, observa a antropóloga.
“Atuando com os Guarani Kaiowá em Mato Grosso do Sul, frequentemente me espanto com os usos políticos do conceito de aculturação”
A experiência de Élida revela muito sobre as violências a que as mulheres e as crianças indígenas estão submetidas quando dependem do cuidado e proteção do Estado e se deparam com os discursos da “aculturação”. A mãe, por estar vivendo em um acampamento, sob um barraco de lona, e o filho, por ser criança, por ter sido recolhido recém-nascido, por permanecer anos institucionalizado, tem a identidade étnica colocada em questão.
Tais experiências violentas de interação prolongada e desigual em abrigos, sem justificativas sólidas, servem aos Guarani Kaiowá para fazer o que se tornaram especialistas no decorrer da história. “O caso de Élida nos fala da capacidade Guarani Kaiowá de atualização dos seus vínculos de parentesco e de afirmação de seu pertencimento étnico mesmo quando aparentam ter desaparecido (de maneira forçada, na maioria das vezes)”, finaliza a antropóloga.
Aty Guasu denunciou casos à CNDH e à OEA
A Aty Guasu frequentemente tem denunciado a retirada de crianças indígenas das aldeias quase que semanalmente pelo Conselho Tutelar e levadas para abrigos da região Cone Sul do Mato Grosso do Sul. Os casos têm sido levados ao Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) e a Organização dos Estados Americanos (OEA).
“Aos sete dias de vida WR foi levado de sua mãe sob o argumento de que iria realizar uma consulta médica”
A forma como são feitas as intervenções pelos “órgãos de proteção” desrespeita o modo de vida física e cultural do povo Guarani Kaiowá, e são fundamentadas em “conceitos e interpretações racistas, preconceituosas, primárias e ignorantes à diversidade dos povos indígenas”, denuncia a Aty Guasu.
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WR brincando com seus irmãos na aldeia. Foto: Lídia Farias / Cimi Regional Mato Grosso do Sul