Sacha Llorenti, recém eleito secretário executivo da plataforma, analisa os desafios para a integração regional
Michele de Mello, Brasil de Fato
Na última cúpula da Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América – Tratado de Comércio dos Povos (Alba-TCP), Sacha Llorenti foi eleito o novo secretário executivo do bloco. O ex-embaixador boliviano na Organização das Nações Unidas (ONU) foi indicado pelo seu antecessor David Choquehuanca, atual vice-presidente boliviano, logo depois que seu país retomou a participação ativa na Alba-TCP.
Llorenti foi um dos funcionários que acompanhou o ex-presidente Evo Morales durante quase um ano de exílio na Argentina, logo depois do golpe de Estado de 2019. Natural de Cochabamba e graduado em direito, antes de ser embaixador na ONU, atuou como ministro de Governo e vice-ministro de coordenação com os movimentos sociais.
Em uma entrevista exclusiva para o Brasil de Fato, Sacha Llorenti avalia os desafios de integração latino-americana e as prioridades para o próximo ano da sua gestão.
Brasil de Fato – A Alba-TCP emitiu um comunicado logo após a invasão do Congresso dos Estados Unidos, rechaçando os atos violentos. Como ler esse episódio político e quais as expectativas sobre a relação com a gestão de Joe Biden?
Sacha Llorenti: Fizemos um chamado às autoridades estadunidenses a cumprir com o mandato expresso nas eleições, que é um princípio básico de qualquer tipo de democracia.
Além disso, expressamos nossa solidariedade com o povo dos Estados Unidos – um país que atravessa uma multiplicidade de crises, que se traduzem, por exemplo, no surgimento de grupos racistas e supremacistas.
Os países da Alba-TCP têm por princípio não somente algumas aspirações ou noções de como deveriam ser levadas adiante as relações internacionais. Nossos princípios estão gravados na Carta das Nações Unidas, esse documento do qual quase não se fala agora, que é o documento fundacional da ONU e que estabelece os princípios básicos do multilaterialismo, que tem como objetivo construir uma ordem mundial equitativa.
Entre esses princípios está o respeito à soberania dos Estados, o princípio de não ingerência nos assuntos internos dos Estados. Todos os Estados, sem importar seu tamanho, tem igualdade de direitos e deveres dentro da Alba. Portanto, a relação de qualquer outro país com a Alba-TCP deve acontecer dentro desses limites. Por isso, não pedimos nada extraordinário, apenas o cumprimento do direito internacional.
Quais os desafios para a integração latino-americana no próximo ano, considerando que ainda predominam governos conservadores na região?
Os últimos anos foram os piores, não só para a integração latino-americana e caribenha, mas também para o multilateralismo, que sofreu ataques sistemáticos, principalmente por parte dos Estados Unidos.
Desconhecimento do Acordo de Paris, do Conselho de Direitos Humanos, sabotagens ao Acordo Nuclear com o Irã, ataques à comunidade palestina fazem parte de uma lista extensa de situações que demonstram esse ataque.
Na nossa região, a maior ameaça foi a OEA, fundamentalmente Luis Almagro, secretário geral da OEA, que foi o principal cúmplice de Donald Trump nos ataques contra paz, estabilidade, democracia e possibilidades de integração na América Latina e Caribe.
Também houve uma prática sistemática de desarticular as instâncias de integração. Sabotaram a Unasul de maneira terrível, esperamos que possamos recuperar esse espaço. A Celac [Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos] foi paralisada de forma lamentável.
E em meio a esses problemas, agravados pela ofensiva do governo dos Estados Unidos e a cumplicidade da OEA, a Alba se manteve como uma esperança.
Quais são os próximos passos para reativar o Banco da Alba e a criação da moeda Sucre? Há possibilidade de cria-la como uma criptomoeda?
Esse é um dos grandes desafios que temos. Queremos transformar a Alba em um bloco que possa negociar nas Nações Unidas e outros organismos internacionais, mas, em matéria financeira, queremos atrair investimentos e outros tipos de capitais de maneira conjunta.
O braço econômico é fundamental e vem acompanhado do braço social, comunicacional e cultural. O Banco da Alba cumpriu um papel muito importante. Nosso plano pós-pandemia tem como prioridade o seu fortalecimento. Serão tomadas todos as medidas necessárias. Precisamos fortalecer o conselho econômico da Alba e oportunamente vamos divulgar todos os acordos que alcancemos sobre esse tema.
Como vai ser a criação do banco de vacinas contra a covid-19 da Alba-TCP entre Cuba e Venezuela?
Determinamos que, em até dois meses, deve acontecer uma reunião do Conselho Social da Alba, que deve reunir os responsáveis sobre esse assunto. Enquanto isso estamos compilando informações sobre os países membros em relação ao combate à pandemia.
Nesse momento, os países estão adotando medidas individualmente, segundo suas lógicas de aquisição da vacina. Mas o objetivo da Alba, sob mandato da última conferência, é coordenar esses esforços e que ninguém fique para trás.
Em poucas palavras, qual será seu principal objetivo como secretário executivo da Alba?
A secretaria-executiva tem o trabalho de fortalecer os mecanismos de unidade e integração, assim como dar seguimento e impulsar a materialização das decisões tomadas em cada nível.
Nossa estrutura é encabeçada pelos chefes de Estado e governo da Alba, logo, temos um conselho político, conformado principalmente pelo ministros de Relações Exteriores, e em seguida temos os outros conselhos, como o econômico e o social.
Meu interesse é relançar o que deve ser relançado, fortalecer o que precisa ser fortalecido e dar continuidade ao que está em marcha.
Durante o ano passado, principalmente por conta da pandemia, muitos dos esforços perderam ritmo. Esse é um momento oportuno para retomá-los.
Depois de viver a pandemia de covid-19, você acredita que existe mais abertura na sociedade para discutir outros modelos econômicos e políticos alternativos ao sistema capitalista?
Em muito pouco tempo, a pandemia serviu de exemplo para exibir outras ameaças existenciais à família humana, como a latente ameaça nuclear, a ameaça da mudança de clima, da questão tecnológica e da terrível desigualdade. Essas quatro ameaças são comuns à humanidade e são existenciais. Colocam em risco a existência da nossa espécie.
Podemos cair na trapaça de não aprender as lições dessa pandemia. A última pandemia aconteceu há exatamente um século, logo depois da Primeira Guerra e um pouco antes da Segunda Guerra Mundial. Tomara que aprendamos a dolorosa lição com a perda de tantas vidas.
Que isso sirva para desnudar as causas estruturais que provocam, esse tipo de situação e isso tem que ver com um sistema, um modo de produção e de consumo que são insustentáveis.
O capitalismo é, em síntese, a principal ameaça contra a humanidade. Se não atacamos essas causas estruturais, obviamente não vamos ter aprendido uma lição.
Para isso, é necessário que o que vivemos durante a pandemia nos permita tentar ampliar a democratização de todos os espaços.
A democratização do acesso à vacina, do acesso a uma saúde pública, a democratização da economia, dos sistemas financeiros, o cumprimento do direito internacional.
O desafio está em aprender com as lições da pandemia, em democratizar todos os espaços a nível interno dos países, mas também na esfera do Banco Mundial, do Fundo Monetário Internacional, da chamada governança a nível global.
Quais fatores explicam o triunfo expressivo do MAS depois de quase um ano do golpe de Estado na Bolívia?
São várias coisas. A primeira é o êxito dos 14 anos do governo do presidente Evo Morales. Nesse período, reduzimos a pobreza como nunca antes na história boliviana, reduzimos a desigualdade como poucos países no mundo.
Ou seja, tínhamos um governo que fez o que deveria fazer: melhor a vida dos seus cidadãos.
A juventude, que provavelmente em algum momento se sentiu distante do processo revolucionário boliviano, viveu em carne própria o que é uma ditadura, o que é ter tanques nas ruas, uma repressão sistemática, perseguição política e a aplicação de medidas neoliberais, como privatizar empresas públicas, sabotar a produção nacional, privilegiar a poucos em relação à maioria. Houve um curso acelerado do que é uma ditadura e do neoliberalismo, isso despertou a consciência.
Outro fator é a consciência e a unidade dos movimentos sociais bolivianos. Também a liderança do presidente Evo Morales. Ele é o grande articulador dessa aliança de movimentos sociais que representa o Movimento Ao Socialismo, que não é um partido como tal, senão uma aliança que pode ser um pouco líquida, mas que demonstrou uma contundência nas últimas eleições que foi muito importante.
Creio que a eleição do presidente Luis Arce dá um estímulo ao processo revolucionário boliviano que irá durar muito tempo.
Edição: Luiza Mançano
—
Imagem: “O que a Alba busca é a unidade, um conceito muito mais profundo, que estabelece a necessidade de nos reconhecer como uma família, com um destino comum”, afirma secretário executivo da Alba-TCP – Chancelaria Venezuela