Por Raquel Torres, em Outra Saúde
ÁGUA FRIA
Mesmo antes de ser divulgado na íntegra, um trabalho obtido pelo Financial Times gerou muito barulho e fez com que o governo da África do Sul decidisse suspender temporariamente o uso das vacinas de Oxford/AstraZeneca em sua população. Ainda sem muitos números nas mãos, reunimos aqui o que dá para entender e concluir dessa história e também o que ainda são lacunas abertas. Vamos por partes.
No sábado à tarde, o jornal britânico publicou que “a vacina de Oxford/AstraZeneca não parece oferecer proteção contra doenças leves e moderadas causadas pela variante viral identificada pela primeira vez na África do Sul”. A conclusão é de uma pesquisa liderada pelas Universidades de Oxford e de Witwatersrand, Joanesburgo, que deve ser publicada hoje – ainda sem revisão por pares.
Alguns detalhes foram fornecidos pelo governo da África do Sul e pelos pesquisadores ontem, em coletiva de imprensa. Ao todo, Ao todo, 19 das 750 pessoas no grupo que recebeu a vacina foram diagnosticadas com covid-19, em comparação com 23 de 717 pessoas no grupo do placebo. Ou seja, a eficácia foi praticamente nula. Além disso, exames de sangue mostraram uma redução significativa na atividade dos anticorpos gerados pela vacina no caso específico dessa variante.
Uma ressalva importante é que a amostra foi relativamente pequena. As informações aqui são conflitantes: segundo o Financial Times foram pouco mais de dois mil voluntários, enquanto os slides projetados na coletiva apontam que apenas 1,4 mil entraram na análise. De todo modo, é pouco. Sabemos que, quanto menos participantes, menos confiáveis são os números.
A PRIORIDADE
Apesar de o número de voluntários ter sido pequeno demais para que as conclusões do estudo sejam tomadas como certas, tanto os cientistas envolvidos quanto a AstraZeneca reconheceram que os resultados sugerem limitações da vacina. Mas há um fato consolador: segundo a pesquisa, o imunizante não mostrou proteção contra os casos leves e moderados. E esse grifo é importante.
Idealmente, todo mundo gostaria de ter vacinas que protegessem também contra casos leves – ou até mesmo que impedissem totalmente infecções – mas na realidade ter imunizantes que apenas evitem o adoecimento grave e a morte das pessoas já é algo a se comemorar. Afinal, isso definitivamente afrouxa a pressão sobre os sistemas de saúde.
O problema é que o estudo não permite dizer que houve proteção nos casos graves. A maioria dos voluntários eram saudáveis e jovens, com idade média de 31 anos, portanto menos propensos adoecer gravemente e/ou morrer. Não houve nenhuma hospitalização ou morte entre os participantes, inclusive no grupo que recebeu o placebo. Ou seja: não dá para dizer se houve efeito da vacina.
Mas acredita-se que sim, esse efeito exista, e essa é a expectativa da Universidade de Oxford, segundo nota publicada ontem. Nela, o pesquisador Shabir Madhi, que liderou os ensaios na África do Sul, lembra que a Janssen anunciou recentemente que nesse país sua vacina foi apenas 57% eficaz contra doença moderada a grave, mas 89% contra covid severa. Dados semelhantes foram encontrados pela Novavax. “Essas descobertas recalibram o pensamento sobre como abordar o vírus pandêmico e mudar o foco – da meta de alcançar imunidade coletiva contra a transmissão para a de proteger todos os indivíduos que correm mais risco de contraírem doenças graves”, diz.
De todo modo, a Universidade de Oxford reconhece a necessidade de desenvolver uma nova geração de vacinas que protejam contra variantes emergentes.
UM REVÉS
A notícia veio uma semana depois de a África do Sul receber seu primeiro lote de vacinas de Oxford/AstraZeneca: um milhão de doses, que seriam oferecidas aos profissionais de saúde. Mas ontem o governo anunciou a suspensão temporária dessa distribuição. A decisão foi controversa, já que as opções de outras vacinas são tão reduzidas – e o estudo, ainda não publicado nem revisado, oferece poucas certezas.
As autoridades disseram que pretendem acelerar a vacinação com o produto da Janssen (ainda não autorizado por lá), da qual encomendaram nove milhões de doses. Segundo o Washington Post, o país planeja distribuir a vacina de Oxford inicialmente a apenas 100 mil pessoas e observar o efeito, para então decidir sobre a imunização mais ampla.
A variante que foi identificada primeiro na África do Sul já se espalhou para pelo menos 32 países, incluindo Estados Unidos, França, Alemanha e Nova Zelândia. Por enquanto, não se sabe de sua presença no Brasil – o que não significa que ela não possa estar aqui, sem ter sido detectada. Também é bom lembrar que as preocupações em relação a ela estão centradas na mutação E484K, presente na variante identificada em Manaus.
Em tempo: na sexta-feira, a Universidade de Oxford anunciaou que sua vacina protege contra a B.1.1.7, identificada no Reino Unido; foi observada uma eficácia de 74,6% contra a nova variante e de 84% contra linhagens mais antigas. Os resultados se baseiam em ensaio de fase 3 realizado no país, mas ainda não foram revisados por pares.
FAZER O QUÊ?
Uma reportagem da Folha mostra como o Brasil ainda está longe de conseguir mapear o surgimento e a movimentação de novas linhagens e variantes no território. Só cerca de 0,03% dos casos confirmados de covid-19 tiveram amostras enviadas para o sequenciamento genético. No Reino Unido, provavelmente o país que está fazendo melhor esse trabalho, o percentual é 166 vezes maior, chegando a 5%.
Os pesquisadores entrevistados indicam que realmente não há necessidade de sequenciar todas as amostras (elas são selecionadas a partir de certos critérios), mas que a vigilância genômica deveria e poderia ser melhor. “Temos equipamentos, mas falta pessoal e reagentes para intensificar a vigilância genômica”, afirma José Eduardo Levi, do Laboratório de Virologia do Instituto de Medicina Tropical da USP. Ela é feita basicamente por instituições públicas: uma rede vinculada ao Ministério da Saúde, outra ligada ao de Ciência e Tecnologia, além de projetos em universidades e em alguns laboratórios privados. Para melhorar o trabalho – como para como quase tudo nessa pandemia – é preciso mais investimento em ciência e saúde pública.
A velocidade para ‘pescar’ novas variantes mais eficientes é essencial – só trabalhando com rapidez é que dá para estancá-las. Mas não é o que temos por aqui. Em alguns estados, o resultado do sequenciamento leva até 25 dias. No Mato Grosso, só a remessa das amostras demora de cinco a dez dias. O Ministério da Saúde disse à reportagem que está começando um projeto-piltoto para analisar 1,2 mil amostras de diferentes estados… em quatro meses.
A propósito: o ministro do TCU Benjamin Zymler deu sete dias para o Ministério da Saúde dizer quais são seus planos para impedir a dispersão da variante encontrada em Manaus e para conter a entrada daquelas detectadas no Reino Unido e na África do Sul.
DEVAGAR, DEVAGARINHO
O ritmo da vacinação no Brasil anda melhorando, mas mesmo assim só foram aplicadas cerca de 3 milhões de doses, das 10 milhões disponíveis. Se continuar desse jeito, vai levar três anos para imunizar 70% da população, ou quatro anos para vacinar toda a população adulta (isso se a vacina não precisar ser repetida a cada ano, é claro…).
“O Brasil possui mais de 37.000 postos de vacinação já prontos. Se você aplica 10 vacinas por hora, 60 por dia, e multiplica pelo número de postos, temos mais de duas milhões de doses por dia”, estima no El País o epidemiologista José Cássio de Moraes, que participa há 46 anos do planejamento de campanhas de vacinação no país. Esse cálculo projeta um número ‘por baixo’, sem levar em conta que o país poderia ainda ampliar a estrutura para a vacinação, contratando mais profissionais e alargando os horários, por exemplo. Mas, por enquanto, estamos com menos de 200 mil doses aplicadas por dia, em média.
O governo de São Paulo, que correu e conseguiu garantir a fotografia da primeira dose aplicada, não manteve a pressa: segundo o mesmo site, a campanha tem sido proporcionalmente mais lenta do que a de outros 17 estados, como Paraná, Rio Grande do Norte ou Bahia.
RASPANDO O TACHO
Além dos problemas logísticos que não deveriam existir em um país acostumado à vacinação em massa, tem a sempiterna falta de doses. O Brasil deve encerrar o primeiro trimestre com 41,2 milhões, o que só dá para cobrir 26% da população prioritária (e não da população total), lembra o Estadão.
E o governo Bolsonarorejeitou três ofertas do Butantan para comprar a CoronaVac. Em julho do ano passado, o instituto informava que poderia oferecer 60 milhões de doses a partir do último trimestre de 2020. O ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, não respondeu. Em agosto, o Butantan mandou outro ofício com o mesmo teor, prometendo 45 milhões de doses em dezembro e 15 milhões no primeiro trimestre de 2021. Nada de resposta. Só na terceira tentativa, em outubro, é que Pazuello decidiu que compraria 46 milhões de doses da vacina – mas foi quando Jair Bolsonaro o desautorizou e fez negociação voltar à estaca zero… Quem detalha as três recusas é a repórter Malu Gaspar, na Piauí.
No último sábado, o Butantan começou a produzir mais 8,6 milhões de doses da CoronaVac. E no mesmo dia a Fiocruz recebeu o primeiro lote do Ingrediente Farmacêutico Ativo (IFA) para produzir a vacina de Oxford/AstraZeneca; porém, a quantidade que chegou só é suficiente para produzir 2,8 milhões de doses, que devem começar a ser entregues em março. A previsão é que cheguem outros dois lotes em fevereiro, e que eles possibilitem a produção de 15 milhões ao todo.
ANTIVACINA NAS ALDEIAS
Uma preocupante reportagem do site Amazônia Real trata das consequências já visíveis das notícias falsas sobre a vacinação que estão se alastrando em algumas comunidades indígenas, inclusive entre caciques. Áudios no WhatsApp e mensagens em redes sociais dizem, por exemplo, que as vacinas vêm com microchips e que os imunizados vão morrer dentro de dois anos. O problema piorou após a morte do líder indígena Fernando Rosas Katukina, que havia sido vacinado 13 dias antes, por parada cardíaca. O óbito não teve relação com o imunizante, mas gerou medo.
De acordo com lideranças, as fake news estão sendo impulsionadas por missionários e pastores evangélicos, e vários indígenas estão se recusando a tomar a vacina. “Foi dito que eles não iriam tomar [a vacina]. A gente tentou explicar, mas eles não estão acreditando. Só acreditam no que está sendo dito pelos missionários. Dizem que essa vacina veio para acabar com a sociedade, tanto a não indígena como a indígena. Essas informações erradas ficam na cabeça dos nossos parentes, principalmente dos nossos anciãos”, conta o coordenador-geral da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja), Paulo Kenampa Marubo.
Desde que a pandemia começou, organizações indígenas começaram a lutar por conta própria para evitar a contaminação. Agora que é preciso fazer uma campanha de informação sobre as vacinas, estão no mesmo caminho: A Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) lançou a campanha #VacinaParente; a Coiab (Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira) tem repercutido vídeos feitos de forma autônoma por lideranças locais para tentar vencer a cruzada antivacina no celular e nas redes sociais.
PRECISA FINANCIAR
Comentamos aqui, na semana passada, a diminuição dos leitos de UTI para covid-19 bancados pelo governo federal. Só entre janeiro e fevereiro o número caiu pela metade. A medida tem afetado principalmente os estados do Norte e, ontem, os governadores da Amazônia Legal divulgaram uma carta pedindo o retorno do financiamento.
Na véspera, o Ministério da Saúde pediu à Economia R$ 5,2 bilhões extras, que seriam voltados para isso. A ver.
Enquanto isso, o país segue com uma média de mais de mil mortes diárias há 18 dias.
SOBRE A ‘ENQUADRADA’
O presidente da Anvisa, contra-almirante Antônio Barra Torres, disse que pode pode ir ao STF
contra a MP do Senado que pode permitir a liberação de vacinas no Brasil sem a análise técnica da Anvisa (falamos disso aqui). Antes, vai pedir ao presidente Jair Bolsonaro que vete o dispositivo em questão.