15 anos do protesto das mulheres na Aracruz: uma história de luta e resistência!

Cerca de 1.800 mulheres da Via Campesina realizaram uma das maiores ações contra o monocultivo de eucalipto, no Rio Grande do Sul

Por Fernanda Alcântara, na Página do MST

Era madrugada de um novo 8 de março, Dia Internacional de Luta pelos Direitos das Mulheres. Animadas pela luta no cuidado com a vida das espécies, da natureza e da humanidade, há quinze anos centenas de mulheres ocupavam o viveiro hortoflorestal da Aracruz Celulose, em Barra do Ribeiro, no Rio Grande do Sul, naquela que se tornaria uma das maiores ações contra o monocultivo de eucalipto no Brasil.

“Era momento em que o plantio do eucalipto avançava sobre as terras brasileiras, arrasando com a terra e a natureza ao seu redor. Era uma devastação ambiental e um avanço sobre os territórios indígenas e áreas preservadas, tudo em nome do lucro que o grande deserto verde de eucalipto estava provocando.” lembra Rosmeri Witcel, do Setor de Formação do MST, autora da dissertação “A luta do “Oito de março” como espacialização emancipatória do debate feminista no Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST)”.

Naquele ano, a intenção era chamar a atenção para monocultura de eucalipto e os malefícios sociais, ambientais e econômicos desse tipo de cultura. “Ao estudar e entender melhor a destruição em curso, [as mulheres] decidiram denunciar para a sociedade o deserto verde, o que significava. Denunciar também a serviço de quem a ciência estava servindo, as pesquisas que se desenvolviam em torno desta planta destruidora. Ao saberem quanto de água um pé de eucalipto consome, e que estas estavam arrasando as terras brasileiras, secando rios e nascentes, não tinha como não agir”, argumenta ela.

A ação tinha como alvo de enfrentamento direto uma grande transnacional, que produzia em grande escala e realizava as pesquisas que as mulheres consideraram pesquisas da morte. “Por ser uma grande empresa, a reação do estado e do judiciário foi violenta. No entanto, foi o momento em que a sociedade mais discutiu e se informou sobre os danos para a vida que o deserto verde provocava”, explica Rosmeri.

Uma questão de gênero

Rosmeri lembra que, todos os anos, a palavra de ordem das mulheres tem relação direta com a luta em defesa da vida, e para isso é preciso ser contra o agronegócio e tudo o que destrói a natureza e as relações. “As mulheres tem historicamente o olhar do cuidado com os valores mais humanos, e por serem elas as mais atingidas pelas crises que esse modelo gera, tem pautado o tema do cuidado com a natureza. Na verdade, a ação das mulheres estão no marco da luta de classes, em defesa dos direitos humanos, pela Reforma Agrária”.

Se é para cuidar da vida, é necessário combater aqueles que colocam o lucro a cima dela. E esta foi uma decisão das mulheres, com protagonismo e organização delas.”

Nesse sentido, as mulheres estavam na linha de frente contra a Aracruz porque era o momento de tornar visível para os países que participavam da conferência as consequências do plantio em grande escala de eucalipto, uma vez a planta precisa em média de 30 litros de água por dia ao longo de suas fases de crescimento. “Entendemos que denunciar essa situação de injustiça e de preocupação com a humanidade e com os povos, sobretudo com a possibilidade de esgotamento dos recursos naturais essenciais à vida das espécies, é a luta realizada pelas mulheres que apresentam os limites do sistema vigente.”

A ação, acima de tudo, mostrava que o “modelo” propagandeado“agro é pop, agro é bom, agro é tudo” não condiz com a realidade. O 8 de março de 2006 representou a afirmação e a construção de um feminismo proletário contra o capital. “Na verdade, este ‘modelo’ tem nos revelado ser o grande responsável por toda a situação de miséria, pobreza e desigualdades dos e das trabalhadoras, além dos riscos referentes à natureza e em consequência à saúde”.

Conferência Internacional da Reforma Agrária

O cenário para a ocupação em Porto Alegre, se dava diante de um encontro internacional da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), para discutir a Reforma Agrária e o desenvolvimento rural. “Elas se dirigiram até o local do encontro para fazer a denúncia ao órgão que discutia sobre a questão alimentar. A nossa defesa por soberania alimentar tinha que estar pautada naquele debate. Era preciso produzir comida, e que fosse saudável. Eucalipto não mata a fome, era uma das faixas levadas até POA e até a Aracruz celulose, pelas mulheres que desafiaram o grande capital internacional”, pontua Rosmeri.

A jornada de lutas se desenhou então como um enfrentamento direto ao projeto de agricultura que estava sendo debatido e defendido como projeto de agricultura para o mundo, sendo que a ação direta à empresa Aracruz Celulose foi a que repercutiu no contexto internacional, lembra Rosmeri em sua dissertação:

“Enquanto a conferência da FAO, com suas belas credenciais e um ambiente hostil aos necessitados da terra e do bom alimento, acontecia em regime fechado, em que para participar era necessário um belo broche oficial fiscalizado por homens de preto. No fórum paralelo, por terra, território e dignidade, havia lugar para quem quisesse fazer parte da defesa da vida das espécies. Um importante espaço de discussão sobre os temas relacionados a resistência, privatizações e repressão, estratégias de ocupação e perspectivas de gênero e juventude, vinculados à necessidade de Reforma Agrária.”

(Trecho da dissertação “A luta do “Oito de março” como espacialização emancipatória do debate feminista no Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST)”)

Depois da ação de denúncia no horto, as mulheres se somaram em marcha pela avenida. Com seus galhos de eucaliptos na mão, mostravam os danos que este causa em grandes proporções de plantação como estava acontecendo no Brasil. “A marcha foi recebida pela polícia do estado com truculência para impedir que as organizações sem os broches participassem da conferência […]; Foi sob estas reivindicações, leituras, reflexões que o “Oito de março” de 2006 tornou-se este marco na luta das mulheres. Foi uma ação de enfrentamento ao grande capital internacional, em defesa da vida, dos direitos básicos de dignidade, e muita ousadia organizativa das mulheres da Via Campesina, que foram duramente perseguidas pelos órgãos do estado repressor e criminalizador da classe trabalhadora.”

15 anos depois

Desde de 2006, a mobilização do 8 de março tem a importante tarefa e simbologia de abrir o ano de lutas do MST. “Aquela ação evidenciou para o mundo quem são os maiores inimigos da classe trabalhadora, da natureza e do meio ambiente. Desde aquele oito de março as mulheres esperam, se preparam, se organizam, conspiram e se juntam para realizar a defesa da vida humana. É um momento esperado pelas mulheres.” A exemplo disso, tivemos no ano passado (2020), cerca de 3.500 mulheres Sem Terra ocupando Brasília, no 1º Encontro Nacional das Mulheres Sem Terra.

O encontro foi a última grande mobilização presencial do MST, que mantém em suas atividades deste ano a mesma motivação destes 8 de março: o desejo das Mulheres Sem Terra de dias melhores, de sonhos de poder educar seus filhos e filhas em ambientes saudáveis, lembra Rosmeri. “Momento em que elas se apresentam como protagonistas na defesa do que acreditam, que doam o que tem mais lindo e belo, que são suas capacidades organizativas para a luta. Resulta também na construção do Feminismo camponês e popular, com identidade revolucionária. Entendemos que o Feminismo Camponês e Popular luta pela emancipação e a liberdade humana, que está intimamente ligada a luta pela terra, a luta pela soberania alimentar, pela ocupação do espaço geográfico e social.”

Para Rosmeri, ao definir o lema “Mulheres pela vida semeando resistência contra a fome e as violências”, as mulheres expressam que seguem com a mesma preocupação e a mesma certeza na defesa da vida, mas mostram também o presente debate e a campanha contra o vírus e as violências cometidas contra as mulheres.

O desafio que a classe trabalhadora tem neste momento é o de discutir sobre a naturalização da morte, de combater esse governo negligente, e a incompetência do desejo de morte que pulsa nos centros do poder desse país. A palavra do dia é o Fora Bolsonaro, pela vacina para todas e todos e as garantias de existência no combate a fome, que é a necessidade do auxílio emergencial. Aí estão nossas primeiras preocupações, mas elas não são um fim em si mesmas”.

Nesta linha, estas bandeiras fazem parte de um desafio maior: a transformação da sociedade que já mostrou para o mundo que não serve para as mulheres. “O desafio interno é manter a unidade, a organização e a luta, além de combater permanentemente qualquer relação que não seja de acordo com o novo que queremos construir. Novos homens e novas mulheres. Estamos atentas e em alerta, somos as olheiras que vão combater e denunciar qualquer atitude que não condiz com nossos princípios de transformação da sociedade”. E termina com a chamada `a luta. “Saberemos gritar bem alto se preciso for, até que sejamos ouvidas.”

*Editado por Solange Engelmann

Em denúncia ao monocultivo de eucalipto, Mulheres da Via Campesina realizaram marcha no centro de Porto Alegre, no dia 8 de março de 2006. Foto: Verena Glass

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