“A situação de povos indígenas e comunidades ribeirinhas no Médio Xingu, em decorrência dos impactos de Belo Monte, é um exemplo claro de violação de direitos humanos que foi ainda mais intensificada com a não condução do combate à pandemia por parte do governo federal”, afirma a antropóloga
Por: Patricia Fachin, em IHU On-Line
“Estamos vivendo no Brasil uma campanha de desinformação difundida pelo governo federal desde o início da pandemia. Hoje, em consequência disso, atingimos a triste marca de epicentro da pandemia no mundo”, diz Thais Mantovanelli, em entrevista concedida por e-mail para o Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
Se não bastasse a crise sanitária que contabiliza mais de 280 mil mortes em um ano, o país também enfrenta uma crise ambiental, com altos índices de desmatamento, invasões e exploração de recursos naturais, especialmente na Amazônia. Além dos efeitos climáticos dessas atividades, comunidades indígenas e ribeirinhas são diretamente afetadas pela política ambiental do governo federal.
Na entrevista a seguir, a antropóloga Thais Mantovanelli relata a situação da comunidade que vive na Terra Indígena Trincheira-Bacajá do povo Mẽbengôkre-Xikrin no Médio Xingu, região do município de Altamira, que tem sido “alvo de ações continuadas de invasão e desmatamento antes nunca vistas ou registradas, desde sua homologação em 1996”.
Thais também explica como a obra de Belo Monte tem afetado as comunidades que vivem na Volta Grande do Xingu, especialmente neste momento de crise sanitária, e os efeitos que o projeto da mineradora canadense Belo Sun poderá gerar na região, caso seja instalado. Entre os riscos, ela destaca a possibilidade de rompimento da barragem de rejeitos. “O Projeto de Mineração Volta Grande do Xingu prevê o uso de cianeto no manejo dos minérios – substância extremamente tóxica para o solo e para os corpos hídricos –, e os estudos ambientais do empreendimento preveem o risco de rompimento da barragem durante as fases de operação e fechamento como Risco Alto. (…) Sob velocidades conservadoras de 20 km/h, a inundação da barragem de Belo Sun chegaria ao rio Xingu em sete minutos, cobrindo a distância inicial de 41 km em apenas duas horas, atingindo a Terra Indígena Arara da Volta Grande do Xingu”.
Thais Mantovanelli é graduada em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Londrina, mestra e doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar, com tese sobre a relação do povo Mẽbengôkre-Xikrin da Terra Indígena Trincheira-Bacajá e a usina Hidrelétrico de Belo Monte, na Amazônia paraense. Desde março de 2018, realiza pesquisa de pós-doutorado na UFSCar, sobre as narrativas de impacto dos povos Mẽbengôkre-Xikrin e Juruna Yudjá da Volta Grande do Xingu em decorrência da construção do empreendimento hidrelétrico.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Ambientalistas e pesquisadores dizem que a crise sanitária está sendo vista pelo governo como uma “oportunidade” para reverter leis de proteção ao meio ambiente. Quais políticas e leis ambientais estão sendo revertidas?
Thais Mantovanelli – Não defendo que essa seja apenas uma visão de ambientalistas e pesquisadores, porque foi enunciada pelo próprio ministro do Meio Ambiente na famosa reunião ministerial publicitada que evidenciou ser essa uma estratégia deliberada do governo. Os exemplos desses retrocessos são inúmeros e muito preocupantes. Podemos elencar como exemplo a diminuição das ações de fiscalização de terras protegidas como Terras Indígenas, Reservas Extrativistas e Unidades de Conservação; a ineficácia do GLO [Decreto de Garantia da Lei e da Ordem] para contenção das ações de desmatamento, extração ilegal madeireira e invasões; a não realização de homologação de demarcações e a não realização de demarcações físicas de áreas de ampliação de limites já homologadas, como é o caso da Terra Indígena Paquiçamba na Volta Grande do Xingu, na Amazônia paraense.
Além disso, alguns projetos de lei, como o PL da mineração que tem tramitado no Congresso, causam muitas preocupações entre grupos ambientalistas e organizações da sociedade civil que atuam na defesa e promoção de direitos dos povos indígenas, ribeirinhos e quilombolas. Isso porque ao objetivar a permissão de exploração mineral nesses territórios protegidos, o PL aumenta as investidas dos exploradores ilegais que causam conflitos. Os impactos das atividades de garimpos e mineração também são alvo de preocupação tendo em vista sua gravidade na saúde das pessoas e das relações ecossistêmicas locais e regionais que sofrem esse tipo de atividade.
Além disso, essa semana foi marcada por mudanças no Congresso que ameaçam os povos da floresta e meio ambiente, com a eleição de comissões permanentes presididas por representantes que são sabidamente contrários às pautas socioambientais, como a deputada bolsonarista Carla Zambelli, que assumiu a Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (CMADS), e o deputado Édio Lopes na Comissão de Minas e Energia (CME). Isso no pior cenário da pandemia desde seu início.
Amazônia, fonte de emissão de gases de efeito estufa
Ao mesmo tempo, a Amazônia está entrando em um ponto de não retorno, tornando-se uma fonte de emissão de gases de efeito estufa ao invés de realizar o sequestro desses gases. A conclusão está em um estudo recente publicado na revista Frontiers in Forests and Global Change. O aumento dos índices de degradação da floresta é o responsável por essa situação e está afetando negativamente o clima global. A pesquisa revela também que esses danos podem ser revertidos com medidas de contenção de desmatamento, redução da construção de barragens e mineração, bem como ações de restauração. Entretanto, ao contrário das recomendações, estamos vendo o governo “passar a boiada”.
IHU On-Line – Pode nos dar um panorama de como e quantas invasões estão ocorrendo em terras indígenas no país e em quais comunidades?
Thais Mantovanelli – Infelizmente são muitos exemplos. Invasões e desmatamentos são monitorados por diversas iniciativas que têm sido desacreditadas pelo atual governo. Esses aumentos foram tão alarmantes que se convencionou chamar de “efeito Bolsonaro”. Se não houver uma ação conjunta para diminuição das invasões, desmatamentos e exploração ilegal de recursos naturais, a Amazônia pode ingressar num ponto de não retorno, como alertam diversos especialistas.
Fragilização dos povos tradicionais
Com a irrupção da pandemia do novo coronavírus, a situação de fragilização dos povos tradicionais e seus territórios intensificou-se ainda mais. Pautado por um discurso negacionista em relação à gravidade da pandemia e aos métodos adequados para seu enfrentamento, como o isolamento social, o governo do atual presidente Jair Bolsonaro não adotou medidas eficazes para o combate à pandemia entre povos indígenas e comunidades tradicionais. Ao contrário, a ausência de ações para proteção dos territórios tradicionais desses povos causou um enorme aumento de invasões, exploração ilegal de recursos naturais e grilagem de terras, levando esses povos a uma exposição maior ao vírus e consequentemente à contaminação e morte de centenas de pessoas.
Terra Indígena Trincheira-Bacajá
Para mencionar exemplos mais concretos, quero dar destaque ao que tem ocorrido na Terra Indígena Trincheira-Bacajá do povo Mẽbengôkre-Xikrin no médio Xingu, região do município de Altamira. Em denúncia feita por uma das associações indígenas locais, em agosto de 2020, esses povos alertaram que:
“Em agosto de 2019, a Terra Indígena Trincheira-Bacajá do nosso povo Mẽbengôkre-Xikrin foi alvo de ações continuadas de invasão e desmatamento antes nunca vistas ou registradas, desde sua homologação em 1996. A ação dos invasores tinha como justificativa, segundo eles disseram, as promessas feitas pelo candidato à presidência Jair Bolsonaro em sua campanha eleitoral de 2018 para redução territorial de terras indígenas demarcadas em todo território nacional. O aumento das ações de invasão e desmatamento em nossa terra indígena atingiu porções preocupantes nunca vista antes. Os invasores que não respeitam nada estão queimando nossa floresta. Os bichos da floresta estão queimando com ela. Quantos jabotis já foram queimados? Quantas antas já foram queimadas? Quantos tatus já foram queimados? Precisamos fazer isso parar. Precisamos tirar a invasão de nossa terra. Ela é nossa e nós sabemos cuidar dela. Ela é de nossas crianças. Nós sabemos respeitar ela. A floresta é boa para todas as pessoas que estão vivas. Se derrubarem a floresta meu neto irá me perguntar: Onde estão as árvores e o mato, avô? O que vou dizer para ele? Sem a floresta não existe vento nem chuva. Invasores, saiam de nossas terras. Parem de roubar nossa floresta. Parem de roubar a madeira da floresta. Essa terra é dos meus netos, dos netos deles e de todas as pessoas vivas. Fora de nossa terra só existe pastagem e desmatamento. Não tem árvore fora de nossa terra, tudo já foi derrubado”.
Através do sistema de monitoramento remoto, o Sirad-X, a Rede Xingu Mais detectou 30 polígonos de desmatamento entre novembro de 2020 e janeiro de 2021 nessa terra indígena. A TI Trincheira-Bacajá apareceu como a quarta TI mais desmatada da Amazônia em 2020, segundo o sistema Prodes, que calculou a área desmatada entre agosto de 2019 e julho de 2020. Segundo os dados de monitoramento do Sirad-X, no segundo semestre de 2020, as taxas de desmatamento na TI Trincheira-Bacajá foram altas quando comparadas com os anos de 2018 e 2019. Isso significa que as invasões continuaram intensas, apesar da pandemia da Covid-19.
IHU On-Line – Quais são as principais iniciativas ou projetos que estão sendo articulados no Congresso para permitir a mineração em terras indígenas? Qual é a justificativa do governo para defender o garimpo em terras indígenas e por que, na sua avaliação, esse tipo de atividade deve ser proibido?
Thais Mantovanelli – Os argumentos favoráveis para liberação desse tipo de atividade em terras indígenas e áreas protegidas aparecem recorrentemente sob a égide da necessidade irremediável de desenvolvimento econômico nacional. Esse discurso do desenvolvimentismo predatório a qualquer custo como um mal necessário precisa mudar. A economia da floresta, com a produção e comercialização de produtos florestais não madeireiro por meio de promoção de cadeias de valor da sociobiodiversidade, precisa assumir um papel de preponderância na nossa sociedade se quisermos garantir as condições para que a Amazônia continue existindo. Iniciativas inspiradas nessa perspectiva, como é o caso da Rede de Cantinas, precisam ser apoiadas e fortalecidas por meio de políticas públicas adequadas que ajudem a promover o bem viver dessas famílias tradicionais e desses territórios. Povos indígenas, ribeirinhos e comunidades tradicionais prestam um enorme serviço socioambiental ao planeta e à regulação climática. Nesse sentido, suas práticas de manejo tradicionais precisam ser reconhecidas e incentivadas.
Isso vai na contramão de propostas como a permissão de mineração e garimpo nas terras indígenas e áreas protegidas. Em um trabalho sobre garimpo e mineração na Bacia do Xingu, divulgado em 2020, pesquisadores alertaram que “uma nova onda de garimpos ilegais ameaça Áreas Protegidas da bacia do Xingu e a sobrevivência dos povos indígenas e ribeirinhos que ali vivem”. O estudo mostra que a mineração ilegal ganhou força em novas regiões, ativando áreas que estavam fechadas há mais de 14 anos:
“Apenas entre abril e maio de 2020 foram abertos 562 hectares associados à exploração garimpeira, comprometendo a qualidade das águas em 20 sub-bacias do rio Xingu. Ao todo já foram desmatados aproximadamente 22 mil hectares de floresta por causa do garimpo. Da invasão de milhares de garimpeiros no território dos Kayapó na década de 1980 ao aperfeiçoamento do maquinário e propostas de flexibilização da legislação, como o PL 191/2020, o garimpo ilegal avançou a partir de 2018 e novas áreas se consolidaram em 2019. Com a disseminação da Covid-19 pelo país, a invasão de garimpeiros dentro das Terras Indígenas e Unidades de Conservação representa uma dupla ameaça: o contágio dos povos indígenas e populações tradicionais e a destruição da floresta”.
Os impactos ambientais e sociais dessa atividade não são contabilizados na cotação do ouro no mercado internacional. Tampouco se discute a complexa rede articulada para realização desse tipo de exploração que é capitalizada e liderada por empresários chefes de cooperativas profissionais. Além disso, a mineração ilegal representa sérios riscos à saúde dos povos indígenas, ribeirinhos e comunidades tradicionais devido ao uso de mercúrio. Os rios tornam-se tóxicos e os peixes, principal fonte alimentar desses povos e famílias, nocivos à saúde das pessoas.
“A Convenção de Minamata foi incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro pelo Decreto Presidencial n. 9.740/2018 e estabelece regramento internacional para exploração, comercialização e uso do mercúrio, com vistas à redução e vislumbre de eliminação do uso do mercúrio na cadeia produtiva do ouro e, consequentemente, redução das emissões e liberação de mercúrio no meio ambiente. A Convenção reconhece a especial vulnerabilidade de comunidades indígenas à contaminação por mercúrio por conta da biomagnificação do mercúrio devido à contaminação de alimentos tradicionais, como peixes. Na Amazônia, há impacto significativo da contaminação por mercúrio sobre povos indígenas e comunidades tradicionais cujos territórios são alvo do garimpo ilegal. O Brasil não é um país produtor de mercúrio, de forma que todo mercúrio utilizado no garimpo de ouro na Amazônia é de origem estrangeira e deveria ser submetido aos controles previstos na Convenção de Minamata. Infelizmente, a maior parte do mercúrio utilizado em garimpos na Amazônia não provém de fontes lícitas. Junto ao aperfeiçoamento legislativo derivado da Convenção de Minamata, há que se somar o esforço para mapeamento de rotas de entrada de mercúrio ilegal no país e de mecanismos de desvio do insumo legalmente importado para atividades ilícitas, o que exige ações de repressão ostensiva, controle de fronteiras, inteligência e investigação”.
Levando isso em consideração, a proibição da atividade da mineração e garimpo é uma ferramenta de proteção desses territórios e dos povos originários que vivem neles e dependem de relações ecossistêmicas sustentáveis que garantem a proliferação da vida. A regulamentação dessa atividade predatória pode desembocar numa corrida frenética por ouro, como alerta o povo Yanomami, que enfrenta essa situação e tem realizado campanhas nacionais e internacionais para retirada dos garimpeiros de seu território e para não validação do PL da Mineração.
IHU On-Line – Qual é a situação da mineradora Belo Sun hoje no Brasil? Em que regiões a mineradora pretende atuar?
Thais Mantovanelli – Recentemente, Peter Tagliamento, presidente e responsável pelo projeto de exploração da mineradora canadense Belo Sun, afirmou no evento PDAC [Prospectors & Developers Association of Canada], no dia 08 de março de 2021, que a tramitação do licenciamento segue todas as orientações da legislação ambiental brasileira e que o atraso na emissão da Licença de Instalação deve-se exclusivamente ao contexto da pandemia do novo coronavírus. Organizações da sociedade civil e instituições de pesquisa que acompanham o caso de Belo Sun surpreenderam-se com essa declaração.
Projeto Volta Grande
Em termos do licenciamento, o projeto Volta Grande da mineradora Belo Sun está neste momento com a Licença de Instalação suspensa e conta apenas com a Licença Prévia. O Projeto Volta Grande de mineração, da mineradora canadense Belo Sun Mining Ltda., tem como objetivo tornar-se a maior mina de exploração de ouro a céu aberto do país. Entre as diversas questões problemáticas do projeto, a magnitude dos seus impactos ocorrerá na mesma região recém-impactada pela construção da Usina Hidrelétrica – UHE de Belo Monte, e que se encontra em fase de monitoramento ao menos até 2025, devido às instabilidades em termos de impactos ambientais que a usina vem causando. Assim, ao mesmo tempo que Belo Monte representa um elemento que torna a exploração do Projeto Volta Grande ambientalmente muito arriscado, Belo Sun também representa um novo elemento a ser considerado por Belo Monte nos cálculos de projeções de impactos sobre o ambiente e as comunidades da região.
O empreendimento fica no município de Senador José Porfírio (PA), a menos de 50 km da barragem principal da UHE Belo Monte e a menos de 9,5 km da Terra Indígena (TI) Paquiçamba. A empresa Belo Sun anunciou em seu site que durante os 11 anos de funcionamento sejam retiradas 39,767 megatoneladas de rocha, contudo, os estudos apresentados no licenciamento ambiental só preveem a remoção de 2,78 megatoneladas. Segundo os estudos da mineradora, o projeto de extração e beneficiamento de minério de ouro contará com investimento de aproximadamente US$ 1.076.724.000,00. Já para a instalação do empreendimento, os custos são de US$ 380.077.000,00.
O Projeto de Mineração Volta Grande do Xingu prevê o uso de cianeto no manejo dos minérios – substância extremamente tóxica para o solo e para os corpos hídricos –, e os estudos ambientais do empreendimento preveem o risco de rompimento da barragem durante as fases de operação e fechamento como Risco Alto. Entre os impactos, destacam-se a alteração no ciclo reprodutivo da fauna, alteração no regime tradicional de uso e ocupação do território, contaminação ou intoxicação por substâncias nocivas, desmatamento e/ou queimada, falta/irregularidade na autorização ou licenciamento ambiental, falta/irregularidade na demarcação de território tradicional, poluição de recurso hídrico, poluição do solo.
Licenciamento de Belo Sun
O processo de licenciamento de Belo Sun é marcado por diversas manifestações para a suspensão por parte do Ministério Público Federal e Estadual. As instituições apontam diversas falhas no licenciamento e na condução dos estudos de impacto ambiental do projeto. Entre elas a não realização de consulta livre, prévia e informada junto às comunidades ribeirinhas da Volta Grande do Xingu e o subdimensionamento dos impactos considerando os efeitos cumulativos e sinérgicos da construção e operação da hidrelétrica de Belo Sun.
De fato, a mineradora tem pressa e tenta passar uma imagem de tranquilidade em relação ao processo de licenciamento junto a seus investidores. Essa imagem, entretanto, não condiz com as diversas questões problemáticas do projeto apontadas pelas instituições que acompanham o licenciamento. O subdimensionamento de impactos de projetos de obras de infraestrutura é comum no licenciamento ambiental brasileiro como uma estratégia técnico-política para celeridade das emissões das licenças. A prática de contratação de empresas terceirizadas para realização dos estudos de impacto por parte das empresas e/ou consórcios interessados no projeto do licenciamento auxilia esse processo de subdimensionamento de impactos.
É fundamental que essa seja uma discussão pública com a participação de instituições de pesquisa que não têm interesse direto no empreendimento e que não sejam pagas pelo próprio empreendedor que almeja uma redução dos seus custos de investimento para uma amplificação de seu lucro. Isso causa não apenas impactos negativos na vida de povos e comunidades afetadas como um agravamento nos problemas ambientais decorrentes desse subdimensionamento. Esse tipo de manobra diminui o real custo das propostas desses projetos de obras de infraestrutura ao desconsiderar ou subdimensionar os impactos socioambientais. Vemos isso com bastante clareza em relação a Belo Monte, por exemplo.
IHU On-Line – No ano passado, o Instituto Socioambiental – ISA divulgou um parecer que mostra as probabilidades de falha na barragem que a Belo Sun pretende instalar na Volta Grande do Xingu, PA. Quais são os riscos desse projeto?
Thais Mantovanelli – O parecer mencionado em sua pergunta é da autoria de Steven H. Emerman, especialista em geologia que acompanha impactos de mineração em contextos nacionais e internacionais. Ele foi incorporado ao processo de licenciamento juntamente com outros pareceres técnicos independentes que fizeram suas análises a partir das informações sobre o projeto de mineração Volta Grande de Belo Sun contidas no Estudo de Impacto Ambiental – Componente Indígena. Em termos gerais, o conjunto desses pareceres, assinados por pesquisadoras e pesquisadores renomados nas mais diversas áreas do conhecimento, questiona a viabilidade técnica, social e ambiental do projeto de mineração. Esses pareceres estão inseridos no processo de licenciamento e não foram discutidos publicamente pelos órgãos licenciadores, como a Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade – Semas e a Fundação Nacional do Índio – Funai.
Falta de critérios de segurança
Em termos mais específicos, o parecer de Emerman afirma que no projeto da mineradora canadense não há critérios de segurança sísmica considerados no desenho da barragem de rejeitos, o que vai na contramão dos regulamentos brasileiros sobre barragens de rejeitos. Essas barragens tendem a ser consideradas passivos econômicos para operações de mineração, sendo comum a busca por métodos mais baratos de construção dessa estrutura por parte dos empreendimentos, alerta o especialista. Temos no Brasil duas tragédias associadas a esse problema (Mariana e Brumadinho) e o projeto Belo Sun parece ignorar esse fato. O especialista alerta ainda para a ausência de estudo da sismicidade local ou regional, ainda que falhas geológicas cruzadas tenham sido mapeadas no local da barragem de rejeitos proposta, o que também viola os regulamentos brasileiros das barragens de rejeitos. A atividade sísmica é responsável por induzir condições de liquefação em rejeitos saturados por água, sendo esta uma das causas mais comuns de falhas em barragens de rejeitos. Entre 1986 e 2019, o Brasil vivenciou 15 falhas de barragens de rejeitos e a taxa de falha de barragens no país assumiu caráter exponencial, com três casos apenas em 2019. Este fato alarmante reforça a importância de estudos de sismicidade local ou regional para a adequação do fator de segurança da barragem, explicitamente demandados pela Norma ABNT NBR 13.028.
Falhas e fraturas geológicas
Os documentos analisados pelo geólogo mostram mapas de falhas e fraturas geológicas (zonas de menor resistência dentro do maciço rochoso, mais suscetíveis à atividade sísmica) nas proximidades do local do projeto de mineração, incluindo três falhas possíveis que se cruzam no local exato da barragem de rejeitos proposta. No entanto, essas falhas geológicas foram apenas discutidas em termos de capacidade de transmitir infiltração de água do reservatório de rejeitos, e não em termos de capacidade de atuar como fontes de sismicidade. Além disso, a simulação oficial de ruptura apresentada pelos estudos da mineradora canadense assume que o escoamento de rejeitos seria interrompido ao chegar ao rio Xingu, ignorando a capacidade de elementos tóxicos percorrerem dezenas de quilômetros ao longo da Volta Grande do Xingu. A mineradora defende o argumento de que a “inundação de rejeitos” cessaria assim que eles chegassem no rio Xingu e que o tempo estimado para isso ocorrer seriam 97 minutos.
Emerman questiona essa hipótese. Isso nos leva a perguntar: como é possível que o critério de parada dos rejeitos seja “atingir o rio Xingu”, como defende a mineradora em seus estudos? O geólogo realizou simulações indicando que, considerando o volume de rejeitos armazenados da ordem de 35 milhões de metros cúbicos e supondo um derramamento de aproximadamente 25% dos rejeitos (cenário conservador), tal inundação percorreria uma distância inicial de até 41 quilômetros ao longo do rio Xingu. Isso significa que a hipótese do critério de parada adotado pelo Estudo de Impacto Ambiental – EIA não procede. Sob velocidades conservadoras de 20 km/h (Petley, 2019, afirma que a corrida de rejeitos após a falha de Brumadinho, MG, atingiu 120 km/h), a inundação da barragem de Belo Sun chegaria ao rio Xingu em sete minutos, cobrindo a distância inicial de 41 km em apenas duas horas, atingindo a Terra Indígena Arara da Volta Grande do Xingu.
Sistema de rejeitos
Além disso, existe uma grave contradição de informações veiculadas pela empreendedora a respeito da definição do sistema de rejeitos a ser implantado no reservatório. Ciente da questão apontada no item anterior, a empreendedora aparenta ter decidido que o plano atual no tocante à inundação dos rejeitos é inviável. Em comunicações corporativas em 2019, o Presidente Executivo da Belo Sun Mining escreveu para o portal MiningWatch Canada, declarando que abandonaria o plano atual em favor de uma instalação de armazenamento de rejeitos filtrados, que deverá apresentar teor de água significativamente inferior.
Embora a transição para uma instalação de armazenamento de rejeitos filtrados seja um passo na direção positiva, este plano ainda precisaria superar vários desafios técnicos, tais como evitar o umedecimento dos rejeitos armazenados, considerando a alta pluviosidade da região. Não obstante, a companhia falhou ao não alinhar o discurso à prática, fornecendo informações contraditórias às organizações e autoridades reguladoras brasileiras. Em sua apresentação à Funai, em outubro de 2019, a Belo Sun Mineração (2019) descreveu o mesmo plano de armazenamento de rejeitos úmidos descrito no Estudo de Impacto Ambiental de 2016. Preocupa que os dois Estudos de Componentes Indígenas também apresentem à Funai o mesmo plano de armazenamento de rejeitos úmidos descrito no EIA de 2016.
Soma-se, ainda, o fato inquietante de que, na apresentação à Funai de outubro de 2019, a empresa afirma que a barragem de rejeitos foi desenhada de acordo com a ABNT NBR 13.028/2006, embora esses regulamentos prévios de barragens de rejeitos já estivessem desatualizados há dois anos. Esse fornecimento de informações contraditórias a diferentes públicos pela Belo Sun Mining e pela sua subsidiária brasileira é muito grave em termos de confiabilidade das informações fornecidas nos processos administrativos. A avaliação final do especialista, no parecer anexo, é a de que:
“Com base na alta probabilidade de falha da barragem de rejeitos proposta, o Projeto de Ouro Volta Grande deve ser rejeitado pelas autoridades reguladoras brasileiras sem consideração adicional. Simplesmente o fornecimento de informações conflitantes aos investidores e às autoridades reguladoras brasileiras deve ser motivo suficiente para rejeição”.
IHU On-Line – A senhora declarou recentemente que “o impacto do Ministério da Saúde na disseminação de fake news, do uso da cloroquina como tratamento preventivo sem que haja comprovação científica, chegou aos postos de atendimento nas comunidades indígenas e causou grande impacto”. Quais foram os principais problemas gerados às comunidades indígenas por causa da atuação do governo federal frente à crise sanitária?
Thais Mantovanelli – O advento da pandemia do novo coronavírus evidenciou problemas comuns enfrentados por povos indígenas e comunidades ribeirinhas, como a dificuldade de acesso a políticas adequadas de saúde, garantia de água potável, proteção territorial e proteção da vida. Essas dificuldades foram agravadas devido ao modo como o Ministério da Saúde e o governo federal atuaram em relação ao enfrentamento da pandemia, disseminando notícias falsas em relação à seriedade da doença, à abrangência de sua contaminação e contrariando a necessidade de realização de isolamento social e uso de máscaras como medidas fundamentais, como assegurou a Organização Mundial da Saúde. Os riscos à vida de povos indígenas e comunidades ribeirinhas em decorrência da pandemia em conjunção com as ações governamentais devem ser considerados um retrocesso à defesa da vida e dos direitos humanos desses povos como princípio constitucional. Soma-se a isso o fato de que muitas comunidades e aldeias não contam com qualquer sistema de saúde, como as Unidades Básicas de Saúde, o que obriga as famílias a procurarem esses serviços em municípios ou outras comunidades, aumentando a necessidade de deslocamento e inviabilizando a realização da prática de isolamento social.
Campanha de desinformação difundida pelo governo
Estamos vivendo no Brasil uma campanha de desinformação difundida pelo governo federal desde o início da pandemia. Hoje, em consequência disso, atingimos a triste marca de epicentro da pandemia no mundo. Isso causou sérios impactos para adoção de medidas eficazes de combate à pandemia em todo território nacional e para grupos indígenas em particular. A vulnerabilidade desses povos tornou-se ainda mais evidente com a irrupção da pandemia. A maior crise sanitária da nossa época não tem sido tratada com seriedade por parte do governo e todas as pessoas que residem no Brasil estão pagando essa conta. Grande parte das mortes em decorrência do novo coronavírus são mortes evitáveis desde que as medidas para enfrentamento da situação pandêmica sejam adotadas. A morosidade da vacinação evidencia que estamos longe de superar esse cenário.
IHU On-Line – O Brasil enfrenta o pior momento desde o início da pandemia. Como está, particularmente, a situação das comunidades indígenas neste momento? Qual é a situação do Médio Xingu neste momento de pandemia, em especial de Altamira, que já vivia uma situação crítica desde a construção de Belo Monte?
Thais Mantovanelli – Muitos foram os problemas locais enfrentados no Médio Xingu desde o surgimento da pandemia, como a ausência de locais adequados nas aldeias e comunidades ribeirinhas que pudessem servir de área de isolamento para os casos suspeitos, a falta de postos de saúde, técnicos e técnicas de saúde, remédios e equipamentos de segurança, como oxímetros e respiradores. Medidas paliativas tentaram ser adotadas, como uso de escolas para criação de um espaço para isolamento dos casos suspeitos nas aldeias. Entretanto, das 84 aldeias na região, apenas 34 possuem escolas, o que dificultou a adoção mais geral dessa medida.
Outro problema importante foi a ausência no nível municipal de infraestrutura para a ampla realização de testagem. Não há, na cidade de Altamira, laboratórios capazes de processar os materiais para os testes moleculares de tipo RT-PRC, mais eficazes para detecção da doença em sua fase de contaminação, diferindo dos testes sorológicos que identificam os anticorpos das classes IgG e IgM, ou seja, mostram quando a doença já deixou de infectar outras pessoas. Assim, o rastreamento dos casos não pode ser realizado com precisão e o combate ao espalhamento da doença em aldeias e comunidades tornou-se um desafio ainda maior.
A região do Médio Xingu, também conhecida como Terra do Meio, sofre os impactos da construção e operação da Usina Hidrelétrica de Belo Monte. Muitas condicionantes do licenciamento da obra não foram cumpridas, como a instalação de sistema de saneamento básico no município de Altamira, melhoria na estrutura de atenção à saúde do município e atenção à saúde indígena, desenvolvimentos de projetos voltados a atividades produtivas capazes de garantir a soberania alimentar e econômica dos povos indígenas, ribeirinhos e de agricultura familiar da região. Além disso, dezenas de famílias desalojadas pela construção da barragem passaram a ocupar conjuntos habitacionais nas periferias urbanas que não contam com o abastecimento regular de água.
Outro problema associado ao empreendimento hidrelétrico que aumentou significativamente a condição de fragilidade social de muitas comunidades indígenas e ribeirinhas com o surgimento da pandemia é a diminuição da vazão do trecho da Volta Grande do Xingu, em decorrência da engenharia de funcionamento da hidrelétrica de Belo Monte. Para a geração de energia, Belo Monte propõe uma redução média de 80% do volume de vazão deste trecho do rio, impelindo a ele uma condição de seca perene. Os impactos da redução da vazão, chamada de “roubo das águas do Xingu” por moradoras e moradores da Volta Grande do Xingu, intensificaram-se no ano de 2020, levando centenas de famílias a mobilizarem uma manifestação, em meio à pandemia, para denúncia da situação de seca e falta de água que estavam enfrentando. Na carta redigida durante o ato de reivindicação, afirmaram:
“Nós, povos indígenas e ribeirinhos da Volta Grande do Xingu, estamos aqui unidos nessa carta e na nossa manifestação para defender as águas do Xingu e as nossas vidas. Belo Monte, desde que começou, quer nos dividir igual ela fez com o rio. Mas nós, assim como o Xingu, não desistimos de lutar pela vida. Belo Monte e os impactos da usina querem nos matar aos poucos assim como estão fazendo com o rio e com os peixes. Nossos conhecimentos precisam ser respeitados pelas autoridades. Estamos desamparados. Solicitamos amparo da justiça!”
Assim, a fragilização desses povos em decorrência da diminuição drástica da vazão para o funcionamento de Belo Monte aumentou sobremaneira e foi ainda mais intensificada com o advento da pandemia. A imposição de uma seca perene na Volta Grande do Xingu impacta negativamente a segurança alimentar dessas famílias indígenas e ribeirinhas, como a diminuição da oferta de peixes, que é base do consumo alimentar; o direito de deslocamento e navegação, devido às atuais condições de não navegabilidade em diversos trechos da região; a manutenção da saúde dessas famílias em decorrência das alterações ecossistêmicas; e o aumento de consumo de produtos industrializados. A situação de povos indígenas e comunidades ribeirinhas no Médio Xingu, em decorrência dos impactos de Belo Monte, é um exemplo claro de violação de direitos humanos que foi ainda mais intensificada com a não condução do combate à pandemia por parte do governo federal.
IHU On-Line – A pandemia evidenciou inúmeros problemas sociais do país. Particularmente em relação às comunidades indígenas, quais são os principais problemas que foram evidenciados durante a crise sanitária e que precisam ser enfrentados pós-pandemia?
Thais Mantovanelli – Defender regimes de existência não predatórios é fundamental se quisermos habitar um planeta que continue a comportar as condições necessárias para proliferação da vida. Precisamos trabalhar em conjunto para a proliferação dos ventos frios e bons que são criados nas florestas, como disse Raoni Metuktire em um evento na cidade de Altamira em 2019, meses antes do aparecimento da pandemia do novo coronavírus. Isso implica em frear o desmatamento e as queimadas ilegais da Amazônia, por exemplo.
Planeta para as gerações futuras
Que tipo de planeta vamos deixar para as futuras gerações de seres humanos e não humanos? Essa não deve ser uma pergunta retórica, mas uma urgente premissa global de governos, organismos internacionais e organizações da sociedade civil. Defender os modos de existência dos povos indígenas, ribeirinhos e comunidades tradicionais pautados por relações ecossistêmicas não predatórias é chave para evitar que a Amazônia entre em um ponto de não retorno, o que implicará em graves impactos para todo o planeta e para toda vida que dele depende. Enfrentar esse problema é justamente um ponto importante para uma prática da mudança: transformar relações de exploração pautadas pelo idioma da posse, do lucro irresponsável e da propriedade em relações de corresponsabilização e cuidado, de capacidade para circulação do pensamento da floresta e da cultura das coisas vivas. Nós que nos colocamos ao lado desse povo-multidão na sua luta para continuarem onde estão e para que exista chuva para as crianças de hoje e das próximas gerações, precisamos aprender a operar esse paradigma de mudança e respeitar a floresta, essa vida, essa cultura.
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Terras Indígenas (Fonte do mapa: ISA)