Valdete Souto Severo, no Brasil de Fato
A militarização das escolas no Brasil não é novidade. Ocorreu pela primeira vez em 1994, em Manaus. Em 2018, já havia 122 escolas militarizadas. Em 2019, eram 203. Agora, o prefeito de Porto Alegre anuncia a militarização de uma escola em nossa cidade. O argumento é sempre o mesmo: segurança e eficiência.
As escolas militarizadas têm bons resultados, mas é preciso compreender porque eles ocorrem. A racionalidade militar funda-se na obediência, na padronização dos comportamentos e no medo da punição. Com isso, a gestão militar nas escolas promove uma seleção nada natural. Afasta desses espaços crianças e adolescentes com dificuldade de aprendizagem, com perfis criativos ou divergentes, pessoas LGBTQI+, pessoas que se vestem de forma singular ou são críticas à ordem vigente. Quem não se enquadra, é excluído.
O melhor resultado, portanto, não decorre da potencialização de habilidades e competências, mas do afastamento de boa parte das crianças e adolescentes do espaço escolar. E a exclusão não pode ser alternativa, especialmente quando falamos de educação pública.
Muitos defendem essa medida porque estão mesmo impressionados com a violência e o abandono das escolas públicas no Brasil. Militarizá-las não resolverá o problema. Se queremos ensino de qualidade e menos violência, são outras as medidas a serem discutidas. A sociedade brasileira sabe disso, especialmente quem conviveu com um período recente da nossa história, no qual a imposição de “lei e ordem” não resultou aumento na escolaridade, na produção científica e na qualidade da existência da maioria das pessoas. Tampouco reduziu a violência.
O militarismo expulsou e eliminou artistas, cientistas e pensadores, promoveu uma lógica de pavor e legou, nas duas décadas em que governou o país, centenas de pessoas mortas, desaparecidas e mentalmente adoecidas.
Eis a razão pela qual a Constituição de 1988 se propõe a instituir uma sociedade diversa: plural, fraterna e solidária, na qual a educação deve pautar-se pela igualdade de condições para o acesso e permanência na escola; liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento; pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas e gestão democrática (art. 206). Tudo o que a tecnologia da intervenção militar nos espaços de aprendizagem desconsidera. Não há igualdade de condições de acesso e permanência, quando o corte de cabelo ou a cor das unhas são determinantes; quando atrasar ou não prestar continência constitui falta grave.
O militarismo já está presente nas periferias das nossas cidades, emblematicamente representado pela inscrição no telhado de uma escola pública da Maré (“Escola, não atire”) ou pelo recente massacre promovido contra a(o)s moradora(e)s do Jacarezinho. Boa parte da violência a que estão expostas as pessoas que dependem da escola pública para ter acesso à educação é produzida e potencializada pelo próprio Estado, sob essa face repressora que agora invade os espaços escolares.
Autorizar que a polícia esteja dentro da escola é, a um só tempo, identificar os alunos e professores como inimigos e incapazes, deixando de fora o que realmente precisa ser debatido.
O combate à violência e a melhoria na qualidade do ensino público passa pela construção de mais escolas, pela melhoria das condições materiais nesses ambientes, pelo aumento da remuneração das professoras. Passa pela alteração da forma de distribuição da riqueza, pela criação de empregos seguros, pelo combate as tantas escolhas políticas que marginalizam, excluem e determinam quem vive e quem deve morrer em nosso país.
A militarização das escolas não busca, pois, eficiência ou segurança.
É de dominação que se trata.
Essa iniciativa, dentre as tantas de que o povo brasileiro tem sido alvo nos últimos anos, é a mais profundamente impactante. Estamos diante de uma escolha radical: a insistência na racionalidade fundada no medo e na repressão ou a sua definitiva superação. Uma urgência que tem sido adiada por mais de 32 anos.
Para essa superação, a educação é fundamental. Daí porque em lugar de implementar soluções para os problemas reais, propõe-se a militarização das escolas: é a aposta num passado que já fracassou, cujo legado de sangue e de dor ainda nos atormenta. O resultado concreto é o abandono do nosso futuro.
É urgente reagir e, para isso, é preciso dizer (e agir para fazer valer) o óbvio: escola não é lugar de polícia!
* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko
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Imagem: “A militarização das escolas no Brasil não é novidade. Ocorreu pela primeira vez em 1994, em Manaus. Agora, o prefeito de Porto Alegre anuncia a militarização de uma escola em nossa cidade – Divulgação