“É mais uma questão de modernização de uma empresa” (sic), diz diretor da Funarte sobre interdição de acervo da instituição

Por Gustavo Cunha, em O Globo

Não há água nas torneiras de alguns banheiros, lâmpadas estão queimadas, os aparelhos de ar-condicionado não podem ser ligados (“há risco de sobrecarga elétrica”, avisa um funcionário), paredes descascam e o mofo invade, aos poucos, espaços que armazenam arquivos raros. E mais: quando chove, o elevador precisa ser desligado devido às infiltrações na casa de máquinas. Essa é a realidade do Centro de Documentação e Pesquisa (Cedoc) da Fundação Nacional das Artes (Funarte), que armaneza uma valiosa coleção histórica — composta por cerca de dois milhões de preciosidades da cultura brasileira, como o arquivo pessoal de Fernanda Montenegro — num edifício de 13 andares no Centro do Rio de Janeiro.

— Existem riscos realmente grandes. Inclusive, há recalques na edificação. Me falaram que há algum tempo houve até estalos por lá. Fica aquele grilo, né? Sou novo (no cargo), mas sou medroso. E a bruxa está solta por aí. Está tudo queimando nesse país… Achamos melhor prevenir do que remediar. — alerta Marcelo Nery Costa, diretor executivo da Funarte, que decidiu interditar o edifício nesta semana, como noticiou o colunista Lauro Jardim.

O sinal vermelho acendeu entre representantes da diretoria da Funarte após um incêndio consumir, no fim de julho, parte dos arquivos da Cinemateca Brasileira, em São Paulo. Temeroso com um futuro parecido, Nery Costa, que tem formação em Engenharia, realizou uma visita ao prédio no dia seguinte à tragédia na capital paulista. E logo decidiu suspender as atividades.

Relíquias e raridades

Fonte de pesquisa para estudiosos de diferentes áreas, o Cedoc da Funarte acolhe relíquias da cultura nacional e é tido como o maior acervo teatral da América Latina. Estão lá os arquivos pessoais de personalidades como Fernanda Montenegro, Othon Bastos, Paulo José (1937-2021), Eva Todor (1919-2017), Dina Staf (1938-1989), Maria Della Costa (1925-2015), Djanira (1914-1979) e Walter Pinto (1913-1994).

Também seguem guardadas no lugar publicações originais de nomes como João do Rio (1881-1921), Antônio Callado (1917-1997), Martins Pena (1815-1848) e Oduvaldo Vianna (1892-1972), além de cenários, figurinos e desenhos originais criados por cenógrafos como Gianni Ratto (1916-2005), Pernambuco de Oliveira (1922-1983), Tomás Santa Rosa (1909-1956) e Luiz Carlos Ripper (1943-1996).

Cartazes de todos os filmes lançados no Brasil entre o governo Vargas e meados da década de 1980 também estão conservados no baú da Funarte. A lista de joias seria capaz de preencher muitos parágrafos: para citar mais algumas delas, destacam-se coleções de imagens raras, como os negativos fotográficos de Carlos Moskovics (1916-1988), que registrou todos os espetáculos teatrais montados no Rio de Janeiro entre o fim dos anos 1940 e os anos 1970; o acervo completo do diretor Fernando Peixoto (1937-2012); arquivos do projeto Pixinguinha; e coleções bibliográficas de Paschoal Carlos Magno (1906-1980) e Labanca (1913-1988).

Acervo deve ir para Casa da Moeda

O futuro do acervo ainda é um enigma. A única certeza, segundo o diretor, é que não dá mais para mantê-lo no atual endereço, no edifício cujo térreo é ocupado pelo restaurante Casa Urich, na Rua São José, no Centro do Rio. Há mais de uma década, parte da estrutura do prédio ganhou reforço por não suportar o peso dos arquivos crescentes. Desde então, o laudo predial segue desatualizado, o que gera apreensão.

A Funarte ainda não comunica oficialmente para onde será transferido seu “maior tesouro de documentação”, como classifica Nery Costa. Fontes ouvidas pela reportagem informam que o Centro Cultural Museu Casa da Moeda, na Praça da República, no Centro do Rio, é a principal alternativa considerada pelas autoridades, que ainda não confirmam o fato “para não atrapalhar negociações”.

— Você sabe como é o Brasil, né? Tudo a gente vai empurrando com a barriga. E vai empurrando, empurrando… Até o dia em que acontece a confusão, vide o que houve no Museu Nacional, e de repente vai tudo para o beleléu. Chegamos à conclusão de que não dá mais para empurrar esse problema com a barriga — ressalta o diretor executivo da Funarte, Marcelo Nery Costa, acrescentando que a intenção é levar o acervo para um local “mais acessível” ao público.

Apreensão entre servidores

Museólogos ligados à Funarte, que preferem não se identificar, não veem com bons olhos a possível transferência do acervo do Cedoc da Funarte para o Centro Cultural Museu Casa da Moeda, um imóvel tombado construído há mais de 200 anos.

— A estrutura do prédio da Casa da Moeda é antiga, feita de madeira e pedra. Duvido que algum parecer técnico permitirá o armazenamento do material lá. É preciso lembrar que nosso acervo pesa muito — frisa um museólogo e servidor da Funarte ao GLOBO. — Nosso atual prédio recebeu, inclusive, um reforço estrutural há muitos anos, e isso já deveria ter sido reestudado, porque os arquivos continuam chegando sem parar. Documentação é algo que pesa.

Servidores da Funarte ouvidos pelo GLOBO estão receosos com o futuro de seus empregos (“O que vamos fazer até o acervo ser transferido?”, questiona um deles). Nos corredores do órgão e em grupos de WhatsApp, circula a informação de que alguns setores, como a Coordenação de Difusão e Pesquisa, responsável pela divulgação do acervo da Funarte, serão extintos. Trabalhadores terceirizados já foram dispensados.

‘Por trás da interdição do prédio, há um desmonte’

Vale lembrar que outros setores da Funarte funcionam no edifício interditado, que possui um total de 4 mil m² de área útil divididos em 13 andares. Trabalham por lá equipes que produzem os livros editados pela Funarte e profissionais que elaboram, em estúdio e ilhas de edição, programas de rádio veiculados na Rádio Nacional, na Rádio MEC e no YouTube, além de equipe de fotografia.

A maioria dos funcionários considera que a interdição do prédio, há mais de dez anos em estado lastimável, serve apenas como pretexto para uma redução da equipe da Funarte, que vem sendo significativamente reorganizada sob a atual gestão presidida pelo procurador federal Tamoio Athayde Marcondes, a sexta pessoa no cargo em dois anos e meio de governo Bolsonaro.

— Eles estão aproveitando essa interdição para tocar o desmonte — reclama outro funcionário ao GLOBO. — Não acho que eles estejam preocupados com a gente. O que eles querem agora é aproveitar esse fato para enxugar e encolher ainda mais a Funarte. Não à toa, anunciaram a interdição do prédio junto com a venda do Palácio Gustavo Capanema. Entra aí uma velha tática: enquanto os olhos de todos estão voltados para o Capanema, a Funarte é tolhida. E enquanto a classe artística comemorava a suposta vitória sobre a revisao da venda do Capanema, passou o boi e passou a boiada… As pessoas esquecem o que está rolando com a Funarte por trás dos panos.

Diretor fala em ‘rearrumação’

Ao GLOBO, Nery Costa admite que, de fato, a interdição do prédio afetará os funcionários. “Mas isso é só um efeito colateral”, ele rebate, justificando que a Funarte “não pode ficar parada no tempo”.

— Não diria que estamos promovendo um enxugamento. Colocaria mais como uma reorganização, reestruturação, modernização. É uma rearrumação, vamos dizer assim — argumenta Nery Costa. — Mas isso não tem relação com reduzir postos de trabalho. É mais uma questão de modernização de uma empresa que está há muitos anos sem uma mexida profunda. A gente tem que atingir nossas metas, que são a difusão. E o mundo mudou muito, tem outras mídias aí. É um momento novo, né?

Enviada para Combate Racismo Ambiental por Beth Rueda.

Museu Rodin, Paris. Foto: Tania Pacheco

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