No TaquiPraTi
A vida não é aquela que uma pessoa viveu,
mas a que ela recorda e como recorda para contá-la”
(Gabriel Garcia Márquez. 1996)
Como é que o Zé Buchinho, que está morto, foi aparecer logo agora na minha residência em Niterói, tal como eu o vi, em 1954, repimpado na banca de tacacá da dona Alvina no bairro de Aparecida? Quase setenta anos depois, ele dá o ar de sua graça com sua imagem ao início nebulosa e fantasmagórica, mas que aos poucos vai ganhando nitidez através de vários canais: um filme, um programa de TV, um artigo científico e duas conversas.
O filme Reminiscence (EUA 2021), que ainda não vi, está em cartaz nas capitais brasileiras com o título Caminhos da memória. Li a sinopse. O cenário é Miami arrasada: inundações, ruas alagadas, um calor de 50 graus que lembra Manaus na enchente do rio Negro. A ação ocorre num futuro próximo. Um cientista inventa a máquina da memória capaz de levar pessoas para um passado sem aquecimento global, mas usada também em investigação policial para quebrar o sigilo da memória da bandidagem. Ah, uma máquina dessa na CPI do Senado era para “não ficar um do centrão”. Heleno dixit.
Os caminhos da memória me levam a ver na TV “Que história é essa, Porchat?”. Diante da pergunta “qual a primeira lembrança que você tem da vida”, um entrevistado responde: o cheiro do mingau na creche. Outro retrocede ao útero materno. Será? Fiquei encucado. Ainda não existe o personal google com um botão que, ao ser acionado, faz aflorar a “memória mais antiga”. Por enquanto, máquina de memória só em ficção. Na realidade, a gente escolhe uma ou outra lembrança, que muda dependendo do contexto. Construímos, então, uma versão, sempre alterada cada vez que é narrada.
Memória e fala
Até aqui o Zé Buchinho ainda não mostrou a sua cara, mas vem caminhando a passos largos sem que eu perceba que ele se aproxima. Intrigado com os mecanismos que acionam as memórias de nossa infância, me pergunto porque esquecemos umas e lembramos outras? Aí leio um artigo que não procurei, mas que chegou às minhas mãos. Sua autora, Jeanne Shinskey, é pesquisadora do Departamento de Psicologia da Universidade de Londres e dirige o Baby Lab – um laboratório focado sobre as memórias da infância. Ouso fazer aqui um resumo com o risco de sacrificar o rigor científico, já que sou leigo no assunto.
– “A maioria de nós não tem nenhuma memória dos primeiros três ou quatro anos de nossas vidas – ela escreve, afirmando que quase nada lembramos do que ocorre antes dos sete anos. Portanto, quando alguém responde à pergunta do Fábio Porchat provavelmente apresenta “apenas lembranças baseadas em fotos ou histórias contadas a nós por outras pessoas”. Ou então está fantasiando. Afinal, como quer Nabokov, a memória é “um músculo da imaginação”.
Esta “amnésia infantil” sempre atraiu a atenção dos psicólogos, preocupados em entender porque bebês e criancinhas não têm a capacidade de armazenar lembranças como os adultos. Jeanne estudou crianças a partir dos seis meses, nas creches e acompanhou-as no pré-escolar. O problema – ela diz – não é tanto formar memórias, mas mantê-las e recuperá-las em processos que envolvem várias regiões do cérebro. O hipocampo, lugar da memória, ainda está se desenvolvendo até os sete anos, da mesma forma que o processo de aquisição da linguagem:
– “A capacidade da criança de verbalizar sobre um evento no momento em que aconteceu determina se ela lembrará dele meses ou anos depois. Isso sugere que as memórias pré-verbais são perdidas se não forem traduzidas para a linguagem”.
Little Tripe
Dessa forma, as narrativas compartilhadas em família, que relembram eventos passados na infância, contribuem para manter o acesso à memória ao longo do tempo, “incluindo a cronologia dos acontecimentos, seu tema e seu grau de emoção”, segundo pesquisas sobre o papel da linguagem neste processo. É isso aí. Durante a pandemia, em reuniões diárias via whatsApp com minhas oito irmãs, a nossa infância é sempre o tema principal. Uma delas mencionou um lance com a cantora de fados, Fátima Buchinho, filha de portugueses que moravam na nossa rua.
Epa! Aqui a imagem do Zé Buchinho, irmão da Fátima, começa a se insinuar em minha memória de criança, mas permaneceu adormecida até o dia seguinte, quando outra história me foi narrada por um puta contador, que cuida do meu computador (ah, infame trocadilho!). Alex, meu sobrinho, depois de colocar meus arquivos na nuvem, relembrou Ernani Pires, locutor de turfe, que narrou mais de 71 mil páreos e usou a imaginação para inventar uma corrida de cavalos como se estivesse no Jockey. Essa foi a porta aberta para o Zé Buchinho invadir o meu hipocampo, trazendo com ele a banca de tacacá.
Quer dizer, não foi bem o Zé Buchinho, mas o locutor esportivo Joe Little Tripe, apelido que lhe foi pespegado pelo teacher Antônio Carauassu, professor de inglês do Colégio de Aparecida. Se alguém lhe pagasse três ou quatro cuias de tacacá, o Little Tripe irradiava todo o jogo do Nacional x Rio Negro com uma cuia vazia servindo de microfone. Inventava lances geniais com tanto realismo, que ninguém duvidava de que estava numa cabine da Rádio Baré.
Um dia, já energizado com vários tacacás, Zé Buchinho encaçapou um bolo de macaxeira, várias tapiocas, banana frita no palitinho, além de dez “espera-me no céu” – os famosos croquetes de pirarucu, tudo financiado pelo Pedro Marceneiro, um vascaíno doente. Assim remunerado em espécie, Joe Little Tripe irradiou a vitória de 1 x 0 do Nacional de Manaus contra o Flamengo do Rio, gol de Pepeta, numa locução interrompida por comerciais: “Casa Tem-Tem, a casa do pobre e do rico também” ou “Sapataria Onça, os melhores calçados do Brasil-sil-sil” ou ainda como permuta publicitária: “Banca da Alvina, onde só tem gente fina”.
Narrar sem ver, galvao ve, buxinho nao
Brasil x Hungria
Mas a narração do Zé Buchinho que mais me marcou ocorreu em 18 de julho de 1954 – um domingo, eu acho – lembro bem porque foi o dia em que completei sete anos, portanto com o hipocampo já formado na avaliação da psicóloga Jeanne. O presente de aniversário do meu padrinho Dantas foi pagar cuias de tacacá e croquetes para o Little Trip irradiar o último jogo do Brasil na Copa do Mundo de 1954 na Suíça.
Juntou gente para ouvir a narração de um jogo ocorrido duas ou três semanas antes. Durante 90 minutos, numa locução sublime e inesquecível, reprisada e enriquecida pela voz de Zé Buchinho, desfilavam os jogadores húngaros de nomes, alguns impronunciáveis, que ele havia decorado: o craque Puskás, Grosics, Czibor, Bozsik enfrentando a seleção brasileira com Castilho, Djalma e Nilton Santos, Didi, Julinho e outros.
A locução foi tão real que, no final, moradores do bairro como Roberto Galinha, Jaburu e Haroldo Bem-te-vi choravam rios de lágrimas por causa da eliminação da seleção canarinho: Hungria 4 x 2 Brasil.
Meninos, eu vi ou acredito que vi. É assim que eu recordo e narro a saga do Zé Buchinho, o Galvão Bueno de igarapé, com uma vantagem: Buchinho narrava um jogo que não via e Galvão Bueno não vê o jogo que narra.
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P.S. – Jeanne Shinskey: “This is why we can’t remember our early childhood memories” Royal Holloway University of London. August 13, 2021. CNN Health. https://edition.cnn.com/2021/08/13/health/childhood-memories-partner-wellness/index.html