Pochmann: a possível reinvenção da política

Regressão produtiva do Brasil, nas últimas décadas, bloqueou a mobilidade social e feriu direitos. “Andar de baixo” desencantou-se com as instituições… Bolsonaro explora este vazio. Mas resposta pode ser democracia de alta intensidade

por Marcio Pochmann*, em Outras Palavras

“… tem que entender o que o povo quer.
 Se não sabe, volta para a base e vai procurar saber.”
(Mano Brown)

Na última década do século passado, o ingresso desastrado na globalização desencadeou a forma pela qual o “andar de cima” da sociedade brasileira foi desembarcando do projeto político emancipador de nação. Parcela significativa da burguesia industrial jogou a toalha, tornando-se rentista pela substituição dos lucros na produção pelo capital dependente dos juros elevadíssimos ou comerciante amante da supervalorização do real para auferir ganhos na venda de mercadorias montadas internamente a partir da importação de componentes e insumos externos.

Em ambos os casos, o Estado brasileiro, submetido ao assalto neoliberal, foi o principal sustentáculo da orgia valorizadora do estoque de riqueza no “andar de cima”. Tanto assim que o total da despesa pública agregada (União, estados e municípios) saiu de 28,5% do PIB, em 1990, para 45,3% do PIB, em 2020.

Sem dinamismo econômico, o capitalismo passou a percorrer trajetória declinante, assumindo certo sentido neocolonial da espera por um “milagre de fora”, conforme revelara Sérgio Buarque de Holanda ao tratar do passado patriarcal e agrário brasileiro no seu livro Visão do Paraíso. Na dependência de oportunidades forjadas a partir do exterior, restava somente a espontaneidade a uma economia mobilizada pontualmente e de tempos em tempos.

Assim, o Brasil da globalização neoliberal dos anos 1990 se fragilizou frente aos instáveis fluxos internacionais das commodities de produção primária, devastando biomas, se necessário, para mais rapidamente extrair dinheiros da natureza. Pela lógica neoextrativista, o avanço da pauta de exportação transcorreu associada, muitas vezes, à dependência tanto externa de tecnologia e insumos importados quanto interna da ruína nas comunidades originárias e das “flexibilizações das legislações trabalhistas” a rebaixar o trabalho a condições análogas ao passado escravista.

A resposta da política do distributivismo “à la Proudhon” teve o grande mérito de postergar o desastre que se avizinhava. Os vibrantes impulsos à modernização consumista não se mostraram suficientes para soerguer a estrutura produtiva, embora terminassem fortalecendo os fundamentos da sociabilidade do dinheiro, cujo descarte social passou a assumir centralidade na dinâmica do individualismo, do salve-se quem puder.

A transformação na política

Diante do horizonte da desmontagem da sociedade industrial que asfixiou a mobilidade social ascendente por massivo desemprego aberto e ocupações crescentemente precarizadas, mesmo com a elevação da escolaridade, o “andar de baixo” da sociedade brasileira começou a entrar em cena. A seu jeito, expressou crescente inquietude com a lógica eleitoral da Nova República, reduzindo a política à mera gestão, permeada por ranking de indicadores de melhoras, que quase nada alterava as condições estruturais de vida e trabalho das massas sobrantes nas periferias urbanas e nos mercados de terras rurais.

Foi nesse contexto que a direita brasileira encontrou a via própria para responder e crescer, transformando a política em negócio rentável. Seus representantes surfaram a onda dos influenciadores e celebridades em redes sociais monetizadas, conectando as mais diversas estratégias de sobrevivência legais ou ilegais em proliferação, justamente no “andar de baixo” da sociedade.

Os negócios na política prosperaram, conformando os mercados das emendas impositivas e das famosas “rachadinhas”, atraindo proximidade com as práticas do fanatismo religioso e banditismo social expresso por certas igrejas, milícias e crime organizado. Isso porque foram essas “instituições” que conseguiram armar, em nova base material, o novo tripé de comando de ocupação e renda que emergiu da própria ruína da sociedade industrial.

O fim do ciclo político da Nova República instituído pelo golpe de 2016 refletiu o esgotamento da política enquanto gestão democrática, rapidamente dominada pela versão da política como negócio rentável. O impasse dos sobrantes (ou inorgânicos ao capitalismo acomodado) que decorreu da desistência histórica do “andar de cima” da sociedade há mais de três décadas está de volta.

Conforme já identificado por Caio Prado Júnior (Formação do Brasil Contemporâneo), grande parte da população herdada do período escravocrata, por não caber no projeto de capitalismo nascente, foi transformada em sobrantes, acolhidos pelo fanatismo religioso e banditismo social presente na República Velha (1889-1930). A saída disso foi construída pela Revolução de 1930 que procurou incorporá-los na forma de classe trabalhadora ocupada com identidade salarial e pertencimento à cidadania regulada através da urbanização e industrialização nacional.

A partir de 1990, a desindustrialização promovida pela forma de entrada na globalização interrompeu o avanço na taxa de assalariamento, acompanhada por uma diversidade de reformas trabalhistas redutoras de direitos sociais e trabalhistas. Concomitante com o desemprego e a ocupação precária, a nova população sobrante cresceu, exposta à dinâmica do empreendedorismo de sobrevivência e ao assistencialismo de última instância ofertado por igrejas e filantropia.

Em vista da lógica dos trambiques de qualquer natureza, dos fraudadores de todas as esferas, de empreendedores do acaso e dos depredadores de rapina, somente a reinvenção da política pode oferecer guarida ao novo rumo de país. Que não seja a política enquanto gestão, tampouco aquela dos negócios, rentáveis ou não, mas a política da outra maioria que, ao saber diferenciar os adversários, transforma a realidade de todos para melhor, sobretudo daqueles situados no “andar de baixo” da sociedade.

*Economista, pesquisador e político brasileiro. Professor titular da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Foi presidente da Fundação Perseu Abramo de 2012 a 2020, presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, entre 2007 e 2012, e secretário municipal de São Paulo de 2001 a 2004. 

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