Necropolítica: Os sobrenomes e códigos do racismo no Brasil

Por Nilma Bentes [1]

Sim, muitos são os sobrenomes do racismo: institucional, ambiental, cultural, educacional, religioso, alimentar, recreativo, são alguns. Tal como fala o prof. Luiz Hanns sobre corrupção[2], o racismo no Brasil é sindrômico, endêmico e sistêmico. No institucional, o ‘corpo normativo’ naturaliza práticas racistas de tal forma, que ninguém sente culpa pois é assim que funciona; no ambiental, a gentrificação é forte exemplo (sobretudo em áreas urbanas), da mesma forma que a construção de estradas, de hidrelétricas, colocação de linhas de transmissão de energia (e tudo o mais, em nome do ‘desenvolvimento’), dentro de áreas indígenas, quilombolas e de outros segmentos fincados nas áreas que ocupam há séculos; no cultural, além de ultravalorizar produções eurocêntricas (músicas, ballet clássicos), segmentos da branquidade se apropriam da criatividade negra e enriquecem; na educação formal,  é só entrar na escola que logo vamos nos europeizando; no religioso, além de importantes segmentos do cristianismo não valorizarem  negros e mulheres (em uns, não ordenam, ou pouco ordenam como sacerdotes ou é diminuto o número de santos e santas pretas ) e, pior, não respeitam as religiões afro-negras, indígenas e afro-indígenas; no racismo alimentar, a qualidade dos alimentos não garante uma nutrição adequada – comer só o que pode comprar, e o que pode comprar, muitas vezes só enche a barriga mas nutre pouco; no recreativo, faz tempo que somos objeto de anedotas pejorativas, humilhantes  e usados para reafirmar teatralmente ou não, nessa modalidade de racismo  ‘engraçado’.

E os códigos? Ah sim, o primeiro é o genético – nascer negro, sobretudo de pele preta, já é tatuagem negativa; ter o código de endereçamento postal (CEP) periférico, já mostra toda a insalubridade do viver, o que apoia a curto e/ou longo prazos a necropolítica[3], até porque a polícia, por exemplo, adota, impunemente, leis diferentes para moradores do ‘centro’ e ‘periferias’ (nestas é porrada, bala, caveirões, etc.); o código de barras –  usa mecânica quântica – sinaliza mais para shoppings, lojas, supermercados da elite, etc.; o código penal, por sua vez, é mais utilizado adivinhem contra ‘quens’? E sobre o  reconhecimento facial, quais códigos usam? Em estando a humanidade numa, provável, era de capitaloceno entrando no digitaloceno, o que fazer? Alguém já escreveu que após ser estapeado e “oferecer a outra face para bater”, não se sabe o que  Jesus Cristo fez. Há  necessidade sim, de em muitas vezes,  se usar a raiva criativa, do contrário, a subalternização das populações negra e indígena não vai ter fim, neste “Brasil varonil”.

É fato que o escravismo negro durou (“legalmente”) mais de quatrocentos anos e que a abolição não foi real, uma vez que  não foi acompanhada de medidas que possibilitasse nossa inserção no sistema capitalista, o qual substituiu o escravista, e que (a exemplo do que já ocorria com os ‘libertos’, que poderiam ser re-escravizados a qualquer momento), o racismo continuado, que encharca a sociedade até hoje, nos colocou /coloca em uma  espécie de ‘liberdade condicional’, pois não conseguimos nos expressar com graus de liberdade que têm as pessoas brancas, por força do grave racismo cotidiano. Assim, uma das grandes indagações e desafios que nos são colocados e, a rigor, colocado para o todo social, é: Como agir para impedir a continuidade disso, como asfixiar, neutralizar a prática do racismo e fazer avançar a construção de uma sociedade equânime? Como fazer isso ‘compalungas’, ‘afro-compas’?

Juntar ‘nós conosco mesmos’ e com as relativamente poucas pessoas brancas que sabem ser dever delas apoiar a construção de uma substancial democracia – nunca existiu democracia no Brasil. Sim; como fazer avançar a construção de uma sociedade equitativa? Com fortes atividades voltadas ao aumento da autoestima coletiva da população negra? Certamente não dá pra fazer toda gente negra deitar em divã de Freud.  Quem sugere o quê? Reformas: política democratizadora, tributária equalizadora, educacional não eurocêntrica/decolonial? Apostar na firme aplicação da Lei 10.639, exigindo que as universidades[4] preparem professoras e professores nesse sentido? Democratizar a grande, média e pequena mídia; aprovar mais políticas de ações afirmativas (PAAs); derrubar PEC 95 (teto de gastos), e outras antissociais; respeitar convenções internacionais – inclui, entre outras, a Declaração e Plano e Ação de Durban 2001[5], a 169 , da OIT[6] .  Fazer uma ‘revolução com um incrível exército pretaleone'[7]? Montar um tribunal contra crimes cometidos contra a população negra? Fazer valer princípios anti-neo-necroliberais[8], onde: o coletivo submenta o individualismo; valores positivos da ancestralidade sejam respeitados; se diga não, à mercantilização da natureza inumana e humana (água, florestas, minérios, órgãos e as próprias pessoas, etc.); se diga não, ao consumismo; afirme-se que a cooperação supere a competição; que o mercado sirva à sociedade e não o inverso; que a economia seja subordinada à ecologia e não como é hoje. Que o autocuidado, o cuidar dos outros e do planeta[9], sejam a tônica de nosso viver,  impedindo que a ganância de poucos acentue as mudanças climáticas  prejudiciais ao viver nesta Terra.  Como examinar isso no Brasil onde somos (pessoas negras) cerca de 56% da população e onde o racismo, o machismo/sexismo, pobreza-riqueza não são problemas a serem resolvidos só pelas vítimas dessas e de outras discriminações.

Parece que articular princípios/saberes afro, indígenas, euro e outros, será necessário. Penso, também, que o racismo anti-negro é mais difícil de combater porque mulheres/homo-bi-transsexuais, pobreza, deficiência, existem no mundo inteiro (mais de sete bilhões de pessoas, em mais de 190 países ), e permeiam todas as classes sociais, e que, embora pessoas negras (e indígenas), sejam hiper oprimidas nas Américas, são em número menor [10] e estão concentradas na camada de mais baixa renda.

Diz um provérbio africano: “Quer ir rápido, vá sozinho; quer ir longe, vá em grupos”, considerando alguns ensinamentos do ubuntu[11] como:  ‘Sou, ajo, porque somos’; ‘tudo está inter-relacionado, em movimento contínuo e simultâneo – viver é gerúndio’; ‘comunidade é composta por mortos-viventes,  viventes/vivos’, e ‘o  ainda-a- ser-nascido’, e é uma das tarefas dos viventes, fazer com que o ainda-a-ser-nascido, se torne, de fato, nascido. Bem, as dificuldades não vão impedir a continuidade da luta, alguém já falou: ‘lutando a gente pode vencer ou perder; não lutando, a gente já perdeu!’ Então vamos continuar, pois, “Metade da humanidade são mulheres, a outra metade são filhos delas” (Efu Nyaki)[12]

Setembro de 2021 – Axé.

[1] Engenheira agrônoma, ativista do movimento negro, uma das fundadoras do CEDENPA-Centro de Estudos e Defesa do Negro do Pará; co-fundadora da Rede Fulanas NAB – Negras da Amazônia Brasileira; propositora da Marcha das Mulheres Negras 2015.

[2] Ver Youtube  “Casa do saber”: o racismo tem várias causas, é capilarizado, percorre toda a sociedade . Aqui é só analogia, pois acredito na eliminação da discriminação racial, embora saiba difícil do racismo e preconceito pois estes estão no campo das ideias e a discriminação é a prática dessas ideias.

[3] Não esquecer que necropolítica (Achille Mbembe) ) não é só fazer  viver alguns e deixar (ou fazer  morrer outros  (pop negra, no caso) só por bala/asfixiamento/pancada, é também por outros caminhos: inclui violência obstétrica, discriminar na pandemia, insalubridade nas moradias, deixar sem teto, sem terra, sem comida/alimentos nutritivos, etc.

[4] Aliás, insistir, defender a educação pública e de qualidade é super importante, a meu ver.

[5]  III Conferência Mundial Contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas

[6] Organização Internacional do Trabalho

[7] No Brasil a população negra chega a mais de 120 milhões, mas o movimento negro é diminuto diante da  ancianidade – gravidade do racismo;  a mobilização é difícil não só porque a ‘mídia hegemônica branca’ apoia racistas  e fortalece a introjeção, principalmente, das ideologias da inferioridade racial/ democracia racial/ embranquecimento, fazendo com que a maioria da população negra (ainda), praticamente, não se envolva na aglutinação de forças para buscar a equidade. 

[8] Bem Viver-Ubuntu-Teko Porã-Florestania-Feminismo Decolonial

[9] Inclui saberes desde escravismo: ‘mãe preta/ama de leite-ama seca/ babá’ e falas de Bernardo Toro

[10] Insisto: não no Brasil, onde somos (pessoas pretas + pardas), cerca de 54% da população.

[11] A Filosofia do Ubuntu e Ubuntu como uma filosofia (Mogobe Ramose); Ubuntu/Botho como uma ecofilosofia e ecosofia (Lesley Le Grange); ver site do prof. Wanderson Flor do Nascimento

[12] Terapeuta nascida na Tanzânia – neste texto,  parafraseada.

Márcia Palhano, da Comissão Pastoral da Terra do Maranhão (CPT-MA Região Sul), na Aldeia São José, do Povo Krikati, Maranhão.

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