Por Ana Maria Alcantara, colaboração para o UOL
A cientista social J.S. ficou indignada quando escolheu o livro infantil “ABECÊ da Liberdade: A história de Luiz Gama” para presentear o filho de uma amiga. Na obra sobre a infância do escritor e advogado Luiz Gama (1830-1882), figura histórica da luta abolicionista no país, leu cenas em que crianças negras no porão de um navio negreiro pulavam corda com correntes e achavam graça em brincar de escravos de Jó enquanto navegavam rumo à escravidão.
Após ser questionada pela reportagem do UOL, a Companhia das Letras, editora da publicação, resolveu bloquear a venda do livro em seu site e recolher a obra em livrarias.
J.S. é uma mulher branca e ficou chocada com as imagens, que classificou como “violência simbólica”.
“Foi uma surpresa e um choque ler a cena das crianças brincando de ciranda dentro do navio negreiro. Eu fiquei me perguntando se passaria pela cabeça de alguém fazer a mesma cena com crianças em Auschwitz, sabe? Iam achar bonitinho as crianças brincando de ciranda antes de entrar no incinerador?”, questiona, fazendo menção ao Holocausto, que vitimou milhões de judeus durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945).
Lourival Aguiar, doutorando em Antropologia pela USP (Universidade de São Paulo) e pai de um menino de 7 anos, também fez críticas à publicação, que adquiriu com a intenção de ler para o filho.
Como pai e pesquisador de relações raciais, foi constrangedor ler o livro. O maior problema, para mim, é a romantização deste período de terror da história do Brasil. A maneira como está colocado no texto e nas ilustrações tira a importância do que foram esses fatos. A escravização foi real. O sofrimento foi real e deixou marcas históricas na forma como o negro é visto.
(Lourival Aguiar, doutorando em Antropologia pela USP)
Lançado originalmente em 2015 pelo selo Alfaguara da Editora Objetiva, o livro foi automaticamente incorporado ao catálogo da Companhia das Letrinhas quando a editora Objetiva foi adquirida pelo grupo. Uma segunda edição foi publicada em 2020, sem alterações, e vendeu cerca de duas mil cópias em todo o Brasil.
A publicação é escrita por José Roberto Torero e Marcus Aurelius Pimenta, com ilustrações de Edu Oliveira.
Em nota à reportagem, a Companhia se retratou aos leitores: “Lamentamos profundamente que esse ou qualquer conteúdo publicado pela editora tenha causado dor ou constrangimento a algum de nossos leitores ou leitoras”.
Segundo Isabela Santiago, da Divisão Infantil de Marketing da editora, agora os exemplares em consignação nas livrarias e distribuidoras de todo o país estão sendo recolhidos e a atual edição está em processo de avaliação e revisão pela editora.
Infelizmente, esse título não passou por revisão ao ser reimpresso com o novo selo. Mas, quando nos chegou a crítica vinda da leitora que procurou o UOL, ele já estava em processo de releitura interna, que em breve seria repassada aos autores. Assumimos nossa falha nesse processo e estamos em conversa com os autores para a devida revisão do livro. Esta edição está fora de mercado e não voltará a ser comercializada.
(Isabela Santiago, da Divisão Infantil de Marketing da Companhia das Letras)
Contrapontos
Um dos autores do livro, Marcus Aurelius Pimenta, explicou ao UOL que a produção do livro não foi acompanhada por nenhum especialista ou autor negro.
“É difícil uma pessoa não se emocionar com a história [de Luiz Gama] e comigo não foi diferente. O José Roberto Torero também se encantou com o personagem e fomos fazer as pesquisas. Não havia muitas fontes, nem tantas informações novas, mas era o suficiente para se preparar uma estrutura”, explica.
Para Torero, o livro é um romance histórico para crianças e foi reescrito dez vezes até a versão final. “É um romance, uma obra de ficção. Não há a busca de exatidão histórica. A ideia é ter liberdade para criar”, argumenta.
Além das brincadeiras no navio negreiro, o livro traz cenas em que jovens negros chegam a achar divertido ter de dançar para mostrar seus atributos físicos enquanto estão sendo vendidos como escravos. Sobre este tratamento alegre e harmonioso, o escritor argumenta que “a ironia é uma forma de trabalhar a dor”.
Se as crianças não soubessem o que ia acontecer [na escravidão], talvez elas brincassem. Crianças brincam em velórios, por exemplo. É uma forma de fugir da dor. Também tínhamos que ser fiéis ao Luiz Gama, um homem que tinha muito humor, tanto que escreveu “Trovas burlescas”. Talvez fosse mais fácil fazer algo dramático. Mas resistimos a essa tentação. Uma criança é mais complexa do que isso.
(José Roberto Torero, um dos autores de ABECÊ da Liberdade: a história de Luiz Gama)
Após analisar as edições do livro, a historiadora Beatrice Rossotti identificou “sérios erros históricos”. “Os relatos de escravizados mostram que as crianças não brincavam nos navios negreiros. As condições eram precárias, muitas pessoas morriam no percurso. Não havia espaço para brincadeiras lúdicas. As correntes eram grandes e pesadas, não teria como pular correntes como se pula cordas”, pontua.
Para ela, o cenário de diversão e as supostas ironias do texto criam no imaginário dos leitores a ideia de que a escravização de pessoas negras foi algo leve e até divertido. “O livro propõe-se a contar uma parte do que foi a história do Brasil, tanto é que se intitula Abecedário da liberdade, mas relativiza o que foi uma das experiências mais traumáticas que a população negra já vivenciou em sua história”, finaliza.
Ana Célia Silva, professora titular aposentada da UNEB (Universidade do Estado da Bahia), também identificou trechos que considera problemáticos após ler a primeira edição do livro.
Na página 26, por exemplo, o navio negreiro é acompanhado por golfinhos, o que sugere um navio de passeio com pessoas felizes a bordo, diz Silva, também especialista em representação de afrodescendentes em livros didáticos. Para ela, a produção da publicação é um exemplo prático do racismo estrutural no Brasil.
“Os equívocos identificados podem não significar intenções deliberadas de reducionismo da desumanidade do regime escravista e recalque intencional da diversidade étnico-racial da população negra no país. Em muitas situações, ocorre a internalização e naturalização da desumanização e recalque do outro. Esse texto pode estar incluso nessa hipótese”, diz.
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Enviada para Combate Racismo Ambiental por Regina Moreira