O avanço do agronegócio no Brasil se dá a partir da “expropriação do pequeno produtor, sobre a floresta no chão e sobre os direitos territoriais indígenas e de outras comunidades tradicionais e camponesas”, diz a assessora política do Instituto de Estudos Socioeconômicos – Inesc
As transformações do agronegócio ao longo das últimas cinco décadas e sua expansão para todo o território nacional, inclusive para a Amazônia, “mais concentra ganhos e socializa perdas do que gera, como resultado esperado do desenvolvimento, um processo de redução das desigualdades socioeconômicas no campo-floresta-águas”, afirma Tatiana Oliveira, em entrevista concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
Segundo ela, o agronegócio tem aprofundado as desigualdades regionais “na medida em que é um vetor da catástrofe ambiental atual”. Entre os efeitos gerados pela chegada do setor na Amazônia, a pesquisadora destaca a perda da sociobiodiversidade, a perda de autonomia econômica dos povos e comunidades e a destruição dos modos de vida das populações locais.
Na entrevista a seguir, ela também comenta o projeto “Arco Norte”, que tem como finalidade instalar uma infraestrutura logística na Amazônia para garantir a exportação de commodities. “O desenho deste ‘arco’ abrange de Porto Velho, em Rondônia, passando pelos estados do Amazonas, Amapá e Pará, até São Luís, no Maranhão. O plano é facilitar o transporte de cargas (não pessoas), em particular, soja e milho produzidos ao norte do Mato Grosso para o mercado internacional”, explica.
Tatiana Oliveira é mestra e doutora em Ciências Políticas pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. É assessora política do Instituto de Estudos Socioeconômicos – Inesc e pesquisadora associada ao Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais – Clacso.
Confira a entrevista.
IHU – Quais são os principais processos socioeconômicos que geram desmatamento na Amazônia?
Tatiana Oliveira – Do ponto de vista socioeconômico, é possível associar o desmatamento na Amazônia brasileira a uma série de processos já, há muito, conhecidos: megaempreendimentos de infraestrutura logística e energética; mineração; expansão da fronteira agrícola pelo agronegócio, no sistema de plantations para exportação; garimpo; extração ilegal de madeira e grilagem de terras. Assim, quando pensamos as causas socioeconômicas do desmatamento na Amazônia é preciso sublinhar a forte relação entre o que governos e mercados decidem que deve acontecer com/na Amazônia e os crimes ambientais que acompanham o crescimento dos negócios na região. Também é importante entender que, sob pressão de interesses econômicos externos, as dinâmicas socioterritoriais locais passam a ser regidas por uma racionalidade de “fato consumado”, antecipação e conquista, o que intensifica a dimensão do desastre socioambiental.
Fato consumado
A noção de “fato consumado” foi usada pela antropóloga Sabrina Nascimento (aqui) para descrever a suspensão tácita de normas legais que deveriam condicionar a instalação de grandes empreendimentos, em particular o licenciamento ambiental. Este dispositivo – mais uma vez, tácito – foi e tem sido usado pelos governos brasileiros como meio para apressar a execução de obras de grande porte classificadas como prioridades nacionais. A reforma da lei de licenciamento ambiental, em discussão no Congresso Nacional, se aprovada e sancionada, será um marco para a prática do fato consumado, porque institucionaliza o clima de apatia legal acerca do que é permitido ou não a investidores em relação ao cuidado com o meio ambiente e com as pessoas potencialmente afetadas por um empreendimento. O ponto é que, embora o governo considere algumas iniciativas como prioridades nacionais, não é raro que os lucros concentrados pelos investidores superem, em muito, os benefícios esperados (porém nunca realizados) para a população em geral. Então fica a pergunta: Prioridade para quem e para o quê? Qual a finalidade?
Ineficiência programada
A autora analisa o caso da construção da hidrelétrica de Belo Monte, localizada na Bacia do Rio Xingu, mas outros exemplos poderiam ser citados. A conclusão de Nascimento – com a qual concordo – é que há uma espécie de ineficiência programada no que tange ao funcionamento e à aplicação destas normas, abrindo espaço para uma sequência de atos ilegais e violações de direitos que são, então, naturalizados, porque já aconteceram. A partir daí, resta para a população o trauma, às vezes a indignação, e, na melhor das hipóteses, a mitigação dos impactos supostamente imprevistos e indesejados. A dificuldade para a aplicação efetiva das normas de proteção ambiental existentes se tornou ainda maior com o notório desmonte da governança socioambiental – que foi reiteradamente denunciado por estudos do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc, aqui e aqui) – e com o aparelhamento dos órgãos ambientais, indigenista e fundiário, os quais, no atual governo, vêm sofrendo com perseguições e com o afastamento de funcionários públicos de carreira, substituídos por militares e policiais militares, conforme denúncia da Associação Nacional dos Servidores do Meio Ambiente – Ascema Nacional. (aqui)
Além disso, as ideias de antecipação e conquista significam que o mero anúncio de um empreendimento produz uma série de efeitos que podem levar à degradação ambiental e à elevação dos níveis de conflito social (veja, por exemplo, o relatório da Comissão Pastoral da Terra sobre conflitos no campo aqui). A grilagem de terras é um exemplo clássico e está em jogo, por exemplo, na proposta de construção de uma ferrovia (a EF-170 ou Ferrogrão) para o transporte da soja brasileira vendida no exterior (saiba mais aqui e aqui). O professor Maurício Torres, da Universidade Federal do Pará – UFPA, há anos estuda este fenômeno e cunhou uma expressão que se popularizou por evidenciar o quadro a que me refiro. Ele diz: “dono é quem desmata”. A frase é boa porque sintetiza as causas da insegurança fundiária na Amazônia, localizando-a no entremeio de uma disputa sobre definições possíveis para a ideia da propriedade (“dono”) e do crime ambiental (“desmata”).
Regimes de propriedade
A propriedade não deve ser necessariamente privada. Subsistem, na Amazônia, outros regimes de propriedade, incluindo a propriedade coletiva. E este é um dos motivos pelos quais o governo ataca reiteradamente povos indígenas e comunidades de cultura antiga, como os quilombolas. O objetivo é tornar a terra um ativo financeiro, já não mais um ativo imobiliário, mas mobiliário. Essa operação transforma toda a lógica da acumulação relativa à comercialização da terra no Brasil e se relaciona tanto com as pressões para aprovação de novos marcos para uma política fundiária e de ordenamento territorial, quanto com o processo de digitalização de informações rurais, tal como o denunciado pela organização Grain. (aqui)
Marco temporal
Essa relação, dono-desmata(mento), não é banal e precisa ser recuperada em um contexto no qual as múltiplas formas de organização da propriedade e a própria ideia do desmatamento são colocadas em xeque pelo governo brasileiro. Para ilustrar, basta dizer que, com o Código Florestal, o legislador instituiu a “autodeclaração” da propriedade, bem como inventou a generosa categoria de “desmatamento ilegal”, o que, em contrapartida, autoriza um desmatamento considerado legal. Um exemplo mais atual é o julgamento do marco temporal sobre a demarcação das terras indígenas. Por um lado, a tese do marco temporal pode ser interpretada como um ataque contra uma perspectiva de propriedade, ainda operante, que recusa o acento privatista da legislação fundiária brasileira e afirma o seu caráter coletivo pelo bem-viver de um povo, uma comunidade. Ambos estão previstos no texto constitucional, mas se dirigem a situações distintas: a existência de terras coletivas tituladas não exclui, nem nunca excluiu, a possibilidade do latifúndio monocultor. Por outro lado, o julgamento pode determinar o futuro da preservação das florestas no Brasil.
IHU – Quais têm sido os impactos do agronegócio na Amazônia e qual sua extensão?
Tatiana Oliveira – Primeiro, é preciso dizer que o agronegócio não é monolítico e que, não obstante a memória viva que ele carrega das monoculturas escravocratas, o setor se transformou ao longo do tempo. Acontece que, ao contrário do que diz a propaganda do agro, essa transformação, enunciada sempre em uma chave positiva e grandiloquente, como “modernização” e “desenvolvimento”, mais concentra ganhos e socializa perdas do que gera, como resultado esperado do desenvolvimento, um processo de redução das desigualdades socioeconômicas no campo-floresta-águas. Na verdade, o agro aprofunda essas desigualdades na medida em que é um vetor da catástrofe ambiental atual. Dito de outra maneira, uma leitura das desigualdades socioeconômicas na Amazônia não pode deixar de lado considerações sobre o estado da conservação ambiental. Isto porque os modos de vida dos povos amazônidas e a sua sobrevivência (física, espiritual e cultural) dependem da roça e da caça, do extrativismo florestal e da coleta e das águas dos rios. É esse elemento de domesticidade, ou seja, de não mercado, que muitas vezes segura o povo e evita que passem fome.
Vimos isso durante a pandemia. Assim como houve organização comunitária na favela para a distribuição de cestas básicas, no campo-floresta as cooperativas agroecológicas comandaram a mobilização social para a distribuição de alimentos (saudáveis e sem agrotóxicos). Não existe floresta sem gente – esse é um grande mito, divulgado pela ditadura militar e reproduzido pelo atual governo! Andre Baniwa escreveu um texto recente sobre isso, que finaliza com a frase tocante “somos floresta gente e somos gente floresta” (aqui). Não é de hoje, os povos da floresta tentam chamar a atenção para esse ecossistema complexo e cooperativo entre humanos e não humanos. Então, quando o agronegócio e os empreendimentos de infraestrutura logística e energética, que ele atrai, se territorializam, toda essa vida começa a se desfazer; vira “pedra”, como ensina a cultura Baniwa.
Deslocamento da fronteira agrícola no Brasil e efeitos na Amazônia
Pensando a trajetória histórica de deslocamento da fronteira agrícola no Brasil, da década de 1970 até hoje, a gente observa que o avanço do agronegócio sai do Sul do país em direção, primeiro, ao Centro-Oeste (encostando no norte do Mato Grosso). Depois, se expande para o Nordeste e chega, finalmente, ao Norte. Nesse caminho, a paisagem monótona da monocultura para exportação e dos pastos rasga os cerrados brasileiros (que abrangem Mato Grosso, Minas Gerais, Maranhão e oeste da Bahia) e alcança a Amazônia (em áreas de planalto, propícias para o cultivo da soja, no Amazonas e no Pará). De um lado, você tem um dos biomas mais ricos em biodiversidade e água potável do planeta. De outro lado, você tem a maior floresta tropical do mundo, cuja evapotranspiração interfere diretamente na qualidade do ar que nós respiramos e no regime de chuvas. Com o agronegócio chega a logística internacional. Não tem agronegócio sem logística. E essa relação é um exemplo emblemático do subdesenvolvimento brasileiro. Apesar de gerarem lucros altos para a elite agrária nacional, a lavoura ainda representa um setor de baixo valor agregado, se analisarmos em um espectro amplo quais são as atividades econômicas que comandam ou determinam os rumos do capitalismo global, a saber, gestão, pesquisa e desenvolvimento de produtos e logística.
Então, para resumir, vou destacar três efeitos da chegada do agronegócio na Amazônia:
(i) perda da sociobiodiversidade como resultado do desmatamento, das queimadas e do modelo de monocultura;
(ii) perda de autonomia econômica dos povos e comunidades como consequência da desorganização de economias populares locais, gerando empobrecimento e proletarização;
(iii) epistemicídio, no sentido da destruição dos modos de fazer, criar e viver dessas populações.
IHU – Quando se fala em estruturas de logística dentro da Amazônia, de que ordem são esses equipamentos? Como funcionam e a que se destinam? O que são os corredores logísticos da Amazônia e quais são os principais destinos?
Tatiana Oliveira – A escala e a densidade (em termos da malha de transportes) variam muito se consideramos a Amazônia como um todo. Nunca é demais lembrar que o território denominado “Amazônia” abrange, só na sua porção brasileira, nove estados e mais de 800 municípios, correspondendo a 60% do território nacional. Mas a logística internacional envolve projetos de grandes dimensões no porte desses equipamentos, nos custos de implantação, na variedade de setores econômicos que mobiliza e no esforço de financiamento exigido das sociedades. Estamos falando desde a construção civil até tecnologias mecânicas, robótica e de informação altamente refinadas. E em termos de financiamento, estamos falando de trilhões de dólares.
Arco Norte
No Brasil, observamos a proliferação acelerada de projetos que visam a construção de equipamentos logísticos, tais como rodovias, ferrovias, hidrovias, além de portos, no Norte do país. Trata-se do chamado “Arco Norte”, cujo objetivo é instalar uma infraestrutura logística intermodal, isto é, vários modais interconectados, no coração da Amazônia. O desenho deste “arco” abrange de Porto Velho, em Rondônia, passando pelos estados do Amazonas, Amapá e Pará, até São Luís, no Maranhão. O plano é facilitar o transporte de cargas (não pessoas), em particular, soja e milho produzidos ao norte do Mato Grosso para o mercado internacional.
Hoje, existem duas rotas principais para a saída da soja pelo norte do país: Rondônia e Pará. Pelo lado de Rondônia a soja é escoada de caminhão pela BR-364 até alcançar a hidrovia do Rio Madeira. Pelo lado do Pará a soja produzida, digamos, no município de Sorriso ou Novo Progresso, sobe na direção de Itaituba, distrito de Miritituba, pela BR-163 e pela BR-230 (Transamazônica) até alcançar as Estações de Transbordo de Cargas às margens do Rio Tapajós. Em ambos os casos, a carga é atravessada por navegação interna (fluvial), via balsa, até o Rio Amazonas. Daí, a carga é transferida para grandes navios de exportação e cruza o Oceano Atlântico até o seu destino, geralmente, na Europa ou na China.
Uma curiosidade é que, em 2016, o Congresso publicou o resultado de uma consultoria que argumenta favoravelmente ao investimento público no Arco Norte, sendo um dos autores deste estudo o atual ministro da Infraestrutura, Tarcísio Gomes de Freitas (aqui). Então, aproveitando o Programa de Parcerias e Investimentos – PPI, uma agência governamental de privatizações, impulsionada já desde o governo Michel Temer, ele está tentando colocar em prática essa política. O que é importante dizer aqui é que toda essa infraestrutura está planejada para atender às demandas de exportação das commodities agropecuárias e minerais produzidas no país. E vale reforçar: a produção para a exportação é o que diferencia o modelo de negócios do “agro” em comparação com a agricultura familiar, que produz alimento para o mercado interno.
Eficiência econômica versus custos socioambientais
Lendo esta entrevista, alguém poderá dizer que os ganhos de eficiência econômica derivados do investimento no Arco Norte justificam os custos socioambientais que ele provoca. A minha posição é diferente. Embora existam muitos problemas com a abordagem que o governo faz da questão logística, eu vou sublinhar dois deles. Em primeiro lugar, a questão democrática. Como uma “engenharia”, a logística é sempre apresentada aos cidadãos como uma questão técnica, isto é, cuja compreensão (e última palavra) está a cargo de um grupo restrito de especialistas. Recentemente, confrontado com a oposição da sociedade civil à construção da Ferrogrão (que citei anteriormente), a resposta do ministro foi dizer que nós, sociedade, não entendemos e não sabemos do que estamos falando. A resposta do ministro não foi muito diferente na discussão que teve com Eraí Maggi, em julho deste ano, quando o “rei da soja” colocou em dúvida a demanda projetada para a Ferrogrão, alegando que a malha ferroviária da Rumo já cumpriria esse papel.
Em ambos os casos, o que está em jogo é a possibilidade de a comunidade política intervir sobre decisões que afetam diretamente o seu cotidiano. Projetos de infraestrutura logística envolvem riscos ambientais, econômicos e sociais elevados. Não é razoável querer impô-los à sociedade e a potenciais afetados, sem debate, nem consentimento. O que o governo precisa fazer é discutir com a população e apresentar alternativas. Isto não está acontecendo. E o Ministério da Infraestrutura adota uma postura de “rolo compressor”. No que diz respeito ao consentimento, é importante dizer que, sendo razoável esperar de um governo que ele consultasse a sua população sobre a implementação de projetos de peso, como os de infra logística, essa consulta é obrigatória, prevista em lei, caso povos indígenas estejam entre as populações afetadas por um projeto. E é obrigatório porque o Brasil é signatário da Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho – OIT, que estabelece a consulta livre, prévia e informada dos povos indígenas e comunidades tradicionais, segundo seus “protocolos de consulta” autonomamente elaborados.
Assim, em caso de não consulta e, portanto, de não consentimento, o empreendimento que fosse levado adiante poderia ser considerado ilegal. Mas, conforme disse inicialmente, o poder econômico sempre pode contar com o “fato consumado” como expressão de uma certa plasticidade da legislação brasileira. Para dar um exemplo, no caso da Ferrogrão, o governo fez audiências públicas, mas não respeitou protocolos de consulta dos povos indígenas do Médio Rio Tapajós, em especial, os Munduruku. O Ministério Público – MP e o Supremo Tribunal Federal – STF já reconheceram ilegalidades na forma como o projeto tem sido conduzido. No primeiro caso, sob provocação de grupos indígenas que reivindicam o seu direito à consulta. No segundo, porque o governo editou a Medida Provisória nº 758/2016, que virou a lei nº 13.452/2017, para a desafetação do Parque Nacional do Jamanxim, no Pará, uma área de preservação integral que não pode sofrer modificação sem debate público. Os impasses jurídicos permanecem.
IHU – Como essas ações na Amazônia contribuem para o aumento do aquecimento global?
Tatiana Oliveira – Quando discutimos as mudanças climáticas e o aquecimento global delas resultante desde o ponto de vista dos países do Norte Global, a principal ameaça são os combustíveis fósseis. Quando olhamos para o Brasil, o fator que mais contribui para o aquecimento global é o que chamamos de “mudança no uso da terra e florestas”, com 44% das emissões de gases de efeito estufa.
Mas o que isto quer dizer? Por exemplo, se você tem uma região de floresta nativa e desmata essa região para implantar soja ou pasto, isso é mudança no uso da terra. Em seguida, no segundo e terceiro lugares, aparecem, respectivamente, agricultura, com 28% das emissões, e energia, com 19% – segundo dados compilados pelo Observatório do Clima. (aqui) O estado do Pará, que citei anteriormente como um dos estados brasileiros pressionados pela interiorização da logística na Amazônia, ocupa o primeiro lugar no ranking de emissões por estados brasileiros. (aqui) Nele, a mudança no uso da terra e florestas responde por 85% das emissões, e a agropecuária, 11%. Isto significa que desmatamento, queimadas e agropecuária correspondem a quase a totalidade das emissões de gases de efeito estufa neste estado.
A infraestrutura é também um reconhecido vetor de desmatamento. E já é possível ver, com mapas de calor, por exemplo, uma sobreposição entre os principais focos de incêndios florestais no interior da Amazônia e o traçado de infraestruturas logísticas, existentes ou planejadas. Para se ter uma ideia, o anuário estatístico da Agência Nacional de Transportes Aquaviários – ANTAq registra aumentos sucessivos nos níveis de navegação interna (fluvial) para o atravessamento de commodities agrícolas pelo Norte do país. Na comparação entre 2020 e 2010, a Agência mostra um aumento de 482% na movimentação de grãos pelos portos (públicos ou privados) do Arco Norte. Em 2010, não havia registro das grandes tradings globais, conhecidas como ABCDs, entre o Médio e o Baixo Rio Tapajós, isto é, entre Itaituba e Santarém. As empresas que reunimos sob a sigla “ABCDs” são: ADM, Bunge, Cargill e Louis Dreyfus. Juntas, elas controlam cerca de 80% da produção e da comercialização global de soja.
Hoje, todas elas e outras, como a Hidrovias do Brasil (aqui), ocupam a beirada dos rios, seja porque construíram os próprios terminais portuários privados, seja arrendando o espaço para sua operação em terminais públicos. Por isso, é possível dizer que a infraestrutura, além da soja, ajuda a levar o fogo para dentro da floresta. Por fim, alguns dos municípios mais ameaçados por essa conjunção de fatores (agropecuária, desmatamento, queimadas, infraestrutura) localizam-se às margens do Rio Tapajós. Esta é uma região onde há um mosaico de terras indígenas, assentamentos agrários e áreas de conservação da natureza, fruto de décadas de luta dos movimentos indigenistas e ecoterritoriais brasileiros. Tudo isso está, hoje, sob ameaça.
IHU – Até que ponto o agronegócio “sustenta” o Brasil e a partir de que ponto é o Brasil que, na verdade, sustenta o agronegócio? Qual o custo social e ambiental dessa estratégia?
Tatiana Oliveira – Essa pergunta é importante porque abre a possibilidade para uma discussão sobre a maneira pela qual o capitalismo contemporâneo organiza uma certa lógica de expropriação e acumulação. É comum ouvirmos falar de uma transição neoliberal no mundo contemporâneo. Mas o que isso quer dizer? Uma das principais características desta transição é o lugar ocupado pelo sistema financeiro no processo de acumulação. Não é à toa que os níveis de investimento em capital vêm baixando no mundo todo: parar todos os setores produtivos, enquanto o investimento financeiro cresce.
Financeirização
Diferente do que acontecia no capitalismo industrial, hoje são as finanças que apresentam as maiores oportunidades de lucros. Entender essa nova dinâmica da economia é fundamental para produzirmos uma interpretação que faça sentido quando confrontada com os níveis crescentes de desigualdade e miserabilidade que testemunhamos, e, ainda, com as respostas oferecidas pelo Estado a esta realidade. A especialidade do sistema financeiro é fazer transferências massivas de rendas, que saem de um lugar e vão para o outro. A especialidade do Estado é conduzir o processo de desenvolvimento econômico. A autoridade política é constituída, modernamente, com esta finalidade e sob a promessa de distribuição da riqueza produzida coletivamente. No entanto, o que vemos é um duplo movimento em que, de um lado, muita gente tem perdas acentuadas de renda e propriedade, enquanto, de outro lado, os já muito ricos concentram as riquezas socialmente produzidas.
O Estado, no Brasil, mas não só, tem se organizado para garantir a legislação necessária a uma redistribuição de renda que favoreça os já muito ricos e para estimular a adesão popular a esse esquema, por meio do controle e da disciplina de corpos e territórios. Regras fiscais austeras fazem isso. O endividamento das famílias faz isso. A liberalização do fluxo financeiro, a abordagem da terra e da natureza como ativos financeiros e o tratamento das pessoas ou do humano como “capital” refletem exatamente isso. Este fenômeno está presente no contexto urbano e no contexto rural. E se dá tanto entre as classes sociais dentro de um país, quanto nas relações entre os diferentes países. Que negócio tem o Estado como seu fiador? É assim que o Brasil sustenta o agro (e não o inverso).
Agronegócio e concentração fundiária
No debate público atual, o agronegócio declara que o seu problema é a área plantada. O agro está empenhado em aprovar reformas legislativas que lhe garantam financiamento, estabilidade e liberdade de mercado, não só para comercializar os seus produtos, mas também para dispor das suas terras como bem entenderem. Em outras palavras, o agro, que já concentra terras em um nível surreal, quer mais, e, para isto, entende que ninguém pode ter direito à terra no Brasil (senão o agro). Os defensores do agronegócio dizem que existem um “bom” agro e um “mau” agro. Cadê o “bom” agro se manifestando contra o marco temporal? Se o “bom” agro confia tanto na tecnologia para aumentar a produtividade por hectare, por que a sanha em torno da concentração fundiária? Me parece que a conta não fecha. Mais do que isso: A expansão do agro, o desmatamento e as queimadas que o acompanham, a perda da sociobiodiversidade, a violência e o empobrecimento que esse sistema de produção gera no campo não está dissociado desse movimento global do capitalismo.
Assim, quando lemos notícias sobre o crescimento dos subsídios governamentais ao agronegócio, sobre a amortização de dívidas e multas, a comparação entre esta realidade e o que acontece com o pequeno produtor é inevitável e brutal. É sobre a expropriação deste pequeno produtor, sobre a floresta no chão e sobre os direitos territoriais indígenas e de outras comunidades tradicionais e camponesas que o agronegócio garante o seu avanço e crescimento. É assim que se tem garantido os lucros do agro. Precisamos discutir amplamente mudanças no modo de produção das commodities agropecuárias. À luz dos direitos o agro não é pop, e sim destruidor da biodiversidade e de vidas. Que modelo de produção e consumo de fato necessitamos? Como ser sustentável? Estes debates ainda não estão resolvidos.
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Tatiana Oliveira (Foto: Reprodução | Facebook)