Em voto anti-indígena, Nunes Marques defende ruralistas

Por Leanderson Lima e Cristina Ávila, em Amazônia Real

Manaus (AM) e Brasília (DF) – Único indicado, até o momento, pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido) para o Supremo Tribunal Federal (STF), o ministro Kassio Nunes Marques votou a favor da tese do marco temporal. “É pau mandado”, resumiu Nara Baré, da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), em entrevista à Amazônia Real, traduzindo um sentimento que tomou conta dos indígenas na tarde desta quarta-feira (15). Se dependesse da vontade de Bolsonaro, dos ruralistas e de Nunes Marques, os povos indígenas só poderiam reivindicar os territórios que já eram ocupados por eles até a promulgação da Constituição de 1988. 

O julgamento, retomado nesta quarta-feira, foi novamente suspenso com o pedido de vista do ministro Alexandre de Moraes e, nessas circunstâncias, não tem data para ser retomado. 

Durante sua exposição, que durou 68 minutos e foi a segunda parte de seu voto, já com a apresentação do mérito, o magistrado Nunes Marques apresentou argumentos que vão na mesma direção do que pensa o presidente da República. “Posses posteriores à promulgação da Constituição Federal não podem ser consideradas tradicionais, porque isso implicaria o direito de expandi-las ilimitadamente para novas áreas já definitivamente incorporadas ao mercado imobiliário nacional”, disse.

“Se mudarem a interpretação da data, no campo de futebol da sua cidade, se aparecer índio deitado, aquilo passou a ser terra indígena. Vai ter que ser demarcado. Se for mudada a data do marco temporal, quem tem área produzindo soja pode esquecer. O cara que está produzindo sabe que daqui dez anos, se reconsiderarem o que está sendo votado, ele sabe que o que ele está fazendo não vai valer nada. Qual o estímulo que tem para investir hoje em dia?”, afirmou certa vez Bolsonaro.  

Na leitura do bizarro voto anti-indígena, Nunes Marques disse que a Constituição de 1988 traz o “indício” do marco temporal. “O artigo 67, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, determina que a União concluirá a demarcação de terras indígenas no prazo de cinco anos a partir da promulgação da Constituição. Tal norma transitória é forte indício de que o constituinte teve em mente a fixação de um marco temporal preciso para delimitação dos espaços físicos, que ficariam sob exclusivo usufruto indígena”, proferiu.

O voto de Marques, contudo, não levou em conta os argumentos apresentados pelos amici curiae (amigos da corte) como os da advogada Samara Pataxó.  “Já não basta historicamente terem nos imposto uma língua, uma fé, uma civilização? Ainda querem nos impor um padrão de sociedade, um padrão de desenvolvimento, um padrão de progresso e querem também limitar, interferir, ditar os moldes do nosso usufruto, e o gozo e efetivação dos nossos direitos territoriais, mesmo estando esses direitos consagrados na carta constitucional inclusive como cláusula pétrea”, defendeu Samara, durante sua sustentação oral, em 1º de setembro.

Na sua argumentação, Nunes Marques desconsiderou que o prazo de cinco anos jamais foi cumprido. Ou seja, se valesse o que diz o artigo 67, os governos de José Sarney, Fernando Collor e Itamar Franco teriam de ter demarcado todas as terras indígenas até 1993. Mas sua colocação indica que esse descumprimento por parte da União não é relevante.

Outro argumento ignorado por Nunes Marques foi o apresentado pelo advogado da Associação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Eloy Terena, que defendeu na fase de sustentações orais, que “adotar o marco temporal é ignorar todas as violações a que os povos indígenas estão submetidos. Demarcar terra indígena é imperativo constitucional”.

Embora tenha reconhecido que os indígenas Xokleng, em Santa Catarina, foram massacrados e tiveram suas “terras esbulhadas”, o magistrado do STF justificou que uma data no calendário, 5 de outubro de 1988, poderá superar conflitos e dar segurança jurídica.

Samara Pataxó, em live realizada nesta quarta-feira pela Apib para acompanhar o julgamento do marco temporal, reiterou que Marques nem fez questão de inovar nos argumentos. “É basicamente aquilo que os ruralistas defendem. Ele reafirmou o marco temporal, ele desconsidera o indigenato, inclusive em sua fala, ele traz o indigenato como um instituto defasado”, pontuou a advogada da Apib. Já o coordenador jurídico da entidade, Eloy Terena, ressaltou que Marques diverge de Edson Fachin no que diz respeito à proteção constitucional ao meio ambiente.

Advogada da Coiab, Cristiane Soares Baré afirmou que a leitura explicitou as intenções do voto de Nunes Marques. “Era um voto contrário que já esperávamos, tendo em vista que foi nomeado recentemente pelo Bolsonaro, trazendo alinhamento com o agronegócio. (Marques) Pediu para esquecer todas as formas de violências sofridas pelos povos indígenas, pois sucumbimos à invasão. Estou chocada”, disse a advogada à Amazônia Real

Para o advogado Ivo Macuxi, o voto do ministro Nunes Marques é muito ruim do ponto de vista do direito dos povos indígenas, e classificou o mesmo como uma tentativa de restringir os direitos territoriais dos povos originários.

Retorno em outubro

Cerca de 150 indígenas de dez povos originários de todas as regiões, representando o país, ficaram em Brasília, para acompanhar o julgamento do marco temporal pelo STF. Após a suspensão dos trabalhos, pelo pedido de vista do ministro Alexandre de Moraes, o coordenador-executivo da Apib, Kretã Kaingang, reuniu os manifestantes ainda na Praça dos Três Poderes, onde estavam concentrados, para falar sobre as próximas estratégias do movimento. Provavelmente voltarão à capital federal em outubro. Ele sinalizou que os indígenas podem fazer rodízios até o final do ano em Brasília.  

Mesmo em pequeno número, se comparado aos acampamentos que chegaram a ter até 6 mil indígenas, os representantes dos povos originários que estiveram em frente ao STF protagonizaram cenas surpreendentes. Chegaram aos poucos na Praça dos Três Poderes. Época de seca e calor intenso, que afeta o equilíbrio da saúde de qualquer ser humano, encontraram alívio no pequeno espelho d’água sob o olhar de uma escultura de Juscelino Kubitschek, cuja cabeça em pedra-sabão de 1,5 tonelada adorna o museu-monumento criado por Oscar Niemeyer. Eles sentaram na borda da água, mergulhando os pés, à sombra. E os Guarani cantaram na língua materna e tocaram violino, ritmado por chocalhos, em pé, também dentro d’água.

“Precisamos de pelo menos mais cinco votos. Estamos um a um”, calculou Kretã Kaingang. “Só por milagre seria diferente [o voto de Nunes Marques]. Precisamos acompanhar até o último voto e mostrar ao Supremo que mesmo com toda a demora do julgamento nós o apoiamos. Não vamos abaixar a cabeça nunca. Virão outros votos e serão favoráveis aos indígenas, contra o marco temporal”, previu.

O coordenador-executivo da Apib lembrou que pela segunda vez o ministro Alexandre de Moraes motivou a suspensão do julgamento do marco temporal. Em 11 de junho, o processo foi interrompido em plenário virtual por um pedido seu de destaque, depois de poucos minutos da pauta iniciada.  

“Essa é uma oportunidade de reparação da dívida do Estado com os povos indígenas. Há várias dívidas, mas a terra é a mais importante. Faremos agora um manifesto pacífico, como outros que temos feito, para pedir ao presidente do Supremo (Luiz Fux) que enterre o marco temporal. Essa tortura não pode continuar. Precisamos um ponto final, paz, sossego”, afirmou Kretã. E, assim, os indígenas fizeram rituais em frente à Corte, contra o Recurso Extraordinário (RE) 1.017.365, que terá reflexo em todos os processos demarcatórios de terras indígenas no Brasil. O RE foi ajuizado pela Funai sobre terras reivindicadas pelos Xokleng e o caso ganhou repercussão geral por iniciativa de Fachin.

Já o coordenador do Conselho Indigenista Missionário – Regional Sul (Cimi Sul) Roberto Liebgott, lembrou que o pedido de vistas de Alexandre de Moraes pode estar vinculado a um acordo entre os poderes públicos, já que este julgamento é  de interesse daqueles que sustentam o governo Bolsonaro, especialmente as  bancadas ruralista, minerária e evangélica, todas contrárias aos direitos indígenas no Brasil. “Nós todos devemos manter a mobilização e a esperança, bem como denunciar as violências, as manobras políticas e jurídicas”, alertou Liebgott.

Outras ameaças

Para Nara Baré, coordenadora-geral da Coiab, o magistrado Nunes Marques jamais iria contra o marco temporal. “Vai ser a favor dos ruralistas, desse desgoverno com certeza, é pau mandado”, disparou. Segundo ela, o movimento de resistência indígena deve centrar foco na tramitação do Projeto de Lei 490, que também trata da tese do marco temporal. Na opinião dos indígenas ouvidos pela Amazônia Real, os sucessivos adiamentos no julgamento do marco temporal indicam uma movimentação política para deixar essa decisão para os parlamentares.

O advogado Tito Sateré-Mawé apontou que o voto de Nunes traz insegurança jurídica, e ignora o passado de violência perpetuada pelo próprio estado contra os povos indígenas. Ele também traz a mesma preocupação de Nara Baré, no que diz respeito à tramitação do PL 490/2007. “Se o STF não dá esse ponto final, essa última palavra, a mensagem que passa ao Congresso é para continuar toda a tramitação da pauta anti-indígena”, afirmou.

Além do PL 490, Tito apontou o PL 190/2020, que trata sobre a mineração em terras indígenas, e até mesmo o projeto de decreto legislativo que pretende revogar a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). “São esses instrumentos que pretendem enfraquecer a proteção constitucional dos direitos indígenas”, alerta.

“Estamos concentrando forças no STF e desconcentrando do Congresso”, observou Kretã Kaingang. “Tem PLs ali que arrasam com a gente”, apontou o dedo para o prédio em frente à Praça dos Três Poderes. “Não podemos tirar o olho dos Projetos de Lei 490, o PL 2633/2020, o PL 190.” Essas matérias tramitam na Câmara dos Deputados e no Senado Federal, todas consideradas anti-indígenas, por ameaçar não apenas os territórios, mas os abrirem à exploração de recursos naturais em seus territórios, que já estão sendo devastados por desmatamentos, queimadas e garimpos ilegais. Há muitas dezenas desses projetos em tramitação.”

Além dos PLs, a luta é também contra atos administrativos de uma metralhadora giratória do governo Bolsonaro contra direitos dos povos originários, como a Resolução nº 4 da Fundação Nacional do Índio (Funai) que prevê novos critérios para identificar quem é indígena ou não, com exigências de esdrúxulas comprovações de “origem e ascendência pré-colombiana”.

As marchas e os acampamentos

“A pressão continua”, disse o secretário-executivo do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Eduardo de Oliveira, à Amazônia Real, referindo-se à permanência dos indígenas em Brasília. Segundo avaliação do Cimi, a entrada do marco temporal na pauta do STF foi reflexo das marchas e acampamentos que aconteceram desde abril em Brasília, com encerramento oficial no dia 11 de setembro, com a 2ª Marcha das Mulheres Indígenas, e mobilizações também nos estados, onde os indígenas têm feito protestos em estradas e cidades.

“No início de 2021, não tínhamos essa perspectiva”, afirmou Eduardo de Oliveira. Em sua opinião, o conjunto da sociedade, com posicionamento de artistas e instituições como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e Conselho Nacional de Direitos Humanos contribuíram para a retomada do julgamento.

Uma das principais forças articuladoras de bastidores é a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), que tem feito gestões para mostrar aos ministros do STF a gravidade do genocídio em curso toda vez que o presidente Bolsonaro solta uma de suas opiniões anti-indígenas ou avança com alguma tramitação no Parlamento de projetos de lei contrários ao interesses dos povos originários.

Os territórios indígenas sofrem ataques diários, invasores debocham dos indígenas e os chamam à briga dentro de territórios demarcados, aldeias são incendiadas, há assassinatos frequentes, muitas ameaças de morte, perseguição a lideranças, garimpos destroem rios da Amazônia. Povos isolados estão cada vez mais ameaçados.

“Em todos os contatos feitos por representantes da Igreja Católica (CNBB) junto aos ministros do STF, sobre qualquer assunto, o Recurso Extraordinário (RE) 1.017.365 entra em pauta”, relatou Eduardo de Oliveira. Ele ressaltou que o presidente da CNBB, Dom Walmor Oliveira de Azevedo, levou a questão (em 6 de outubro) à primeira reunião do Observatório de Direitos Humanos, idealizado pelo presidente do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e presidente do STF, ministro Luiz Fux. O arcebispo visitou o Acampamento Luta pela Vida, em 24 de agosto, acompanhado pelo secretário-geral da CNBB, Dom Joel Portella, e pelo presidente do Cimi, Dom Roque Paloschi, que é também secretário da Rede Eclesial Pan-Amazônica (Repam-Brasil).  

A força indígena

Eduardo de Oliveira enfatizou que a força indígena vai muito além dos movimentos nas ruas, citando especialmente a ADPF 709 (Arguição por Descumprimento de Preceito Fundamental), impetrada pela Apib em conjunto com partidos políticos (PSB, Rede, PSOL, PT, PDT e PC do B), que determinou ao governo a adoção de medidas para conter a pandemia em territórios indígenas. A Apib, que monitora o Covid-19 diariamente, foi fundamental, pois mesmo com o Legislativo tendo aprovado medidas emergenciais, o projeto foi vetado pelo presidente Bolsonaro.

“Somos autores, sujeitos de nossa história e capazes de nos representar. Temos qualidade técnica, tanto em pautas jurídicas como administrativas”, afirmou o advogado Dinaman Tuxá, coordenador-executivo da Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme), que constitui a base da Apib. Ele ressaltou as sustentações orais feitas por quatro juristas indígenas no STF no julgamento do marco temporal. “As sustentações orais representam o protagonismo que há tanto tempo buscávamos e quebra uma teoria que era tabu no Judiciário”.

Dinaman Tuxá se refere aos reflexos da tutela do Estado, que os considerava “relativamente incapazes” até a Constituição de 1988. Até este mês de setembro de 2021, uma única indígena, Joenia Wapixana, já tinha subido à tribuna do STF para uma sustentação oral. Em 2008, ela falou a 11 ministros na defesa do território Raposa Serra do Sol (RR). E saiu vitoriosa. (Colaborou Elaíze Farias)

‘É pau mandado’, resumiu coordenadora da Coiab, Nara Baré, traduzindo como os indígenas reagiram ao voto do ministro no julgamento do marco temporalNa imagem acima, grupo de indígena na Praça dos Três Poderes acompanham o voto de Nunes Marques (Foto: Cristina Ávila/Amazônia Real)

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