O órgão indigenista oficial e sua escalada contra os povos originários. Por Roberto Liebgott

A trajetória da Funai, ao logo de tantos anos de acertos e desacertos, nunca foi tão sombria e danosa como a de agora, sob o governo Bolsonaro, escreve Roberto Liebgott

CIMI

A Fundação Nacional do Índio (Funai), criada em 1967 em substituição ao Serviço de Proteção ao Índio (SPI), vem, ao longo de seus mais de 50 anos de existência, se adaptando aos contextos políticos, às perspectivas econômicas e à Constituição Federal.

Em sua trajetória, contou com a atuação de louváveis servidores, que muitas vezes colocaram suas vidas em risco pela defesa das comunidades. Mas também foi povoada por servidores omissos em relação à missão oficial do órgão indigenista.

Ao longo dos anos, a Funai sofreu críticas, protestos e duras avaliações dos indígenas e indigenistas, porque, em geral, não conseguia desempenhar, a contento, as suas funções quanto à implementação de políticas que assegurassem, efetivamente, os direitos dos povos originários.

“A Funai sofreu críticas, protestos e duras avaliações dos indígenas e indigenistas, porque, em geral, não conseguia desempenhar, a contento, as suas funções”

No primeiro período de sua existência, a Funai atuou a partir da concepção integracionista e como tuteladora dos povos indígenas, promovendo o controle das comunidades e de seus territórios, inclusive na administração dos bens materiais e culturais. Foram os seus servidores que introduziam, dentro das áreas indígenas, as práticas de arrendamento, desmatamento e comercialização dos produtos.

O órgão indigenista oficial passou a ser guiado – em 1973 – pelo “Estatuto do Índio”, estabelecido na Lei 6001/1973, ainda em vigor e caracterizado por reger a lógica assimilacionista, portanto, de tornar os “índios em não índios”. Mas, bem mais do que isso, agia para facilitar a exploração econômica das terras. Foi no período de 1967 a 1988 que a Funai estimulou, junto com os militares, políticas que podem ser caracterizadas como genocidas, porque previa a extinção indígena ou a sua integração forçada à comunhão nacional. Perspectiva que não se concretizou graças à reação e mobilização dos povos, que passaram a se articular através das grandes assembleias, de suas organizações locais, regionais e nacionais, portanto resistindo ao integracionismo estatal, protegendo seus territórios, suas vidas e culturas.

Com o advento da “Assembleia Nacional Constituinte”, em 1986, os povos indígenas e entidades de apoio, dentre elas o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), promoveram um grande mutirão pela vida e pelos direitos a serem inscritos na nova Constituição Federal. Foi, aquele período, um dos mais brilhantes e iluminados da história dos povos indígenas. Lá, eles se posicionavam, se comportavam como protagonistas e passaram a ser aceitos, não mais como tutelados, mas como sujeitos de direitos. E, depois de muitos debates, análises, estudos, elaboração de propostas, apresentaram, ao Congresso Constituinte, o que é hoje o “Capítulo VIII – Dos Índios”, artigos 231 e 232 da Constituição Federal de 1988. Neles estão expressos o fim da tutela, o direito às diferenças étnicas e culturais, aos modos de ser, viver e de se organizar – de acordo com as lógicas ancestrais de cada povo e comunidades; lá estão inscritos os direitos à terra, como originários, tradicionais, inalienáveis, indisponíveis e imprescritíveis; lá estabelece que a União deve demarcar e proteger as terras como patrimônios públicos e destinadas – com usufruto exclusivo – aos povos; e, lá no artigo 232, há a previsão de que os indígenas, todos eles, devem ser tratados, respeitados e reconhecidos como sujeitos de direitos, rompendo-se, em definitivo, com o integracionismo e com a tutela.

Os novos parâmetros constitucionais obrigaram o Estado a se atualizar e redefinir suas práticas administrativas. Deixaria de ser tutelador e passaria a guiar suas ações através do reconhecimento dos povos em suas diferenças, promovendo a proteção de suas terras e criando espaços – na execução dos serviços – com a participação indígena.

“Eles se posicionavam, se comportavam como protagonistas e passaram a ser aceitos, não mais como tutelados, mas como sujeitos de direitos”

Foi, naquele fim de década da redemocratização do país, momento profícuo de aprendizado e redefinição de práticas políticas e jurídicas.

O protagonismo dos povos acabou se concretizando no dia a dia, através de suas presenças contundentes nos espaços públicos, tornando-se cada dia mais visíveis, exigindo que seus direitos fossem assegurados.

Por outro lado, os movimentos que se opunham aos indígenas – grupos econômicos, partidos políticos, militares –, aliados aos sucessivos governos, promoveram a desobediência aos direitos indígenas e, ao longo das décadas, colocaram freios administrativos, jurídicos e impediram a concretização das determinações constitucionais.

As violências, as invasões, as práticas de racismo, o autoritarismo e a exploração predatória dos territórios não cessaram. A devastação das florestas foi ininterrupta e as agressões contra a vida, em geral premeditadas, ocorreram de forma perversa.

A Funai, nesse ambiente, tentou, por vezes, agir no sentido de atender as demandas indígenas, com movimentos que demonstravam avanços, mas também colocou muitos obstáculos, contemporizando e acomodando interesses de grupos econômicos – do ruralismo, dos madeireiros, garimpeiros, entre tantos outros.

A trajetória da Funai, ao logo de tantos anos de acertos e desacertos, nunca foi tão sombria e danosa como a de agora. Pode-se dizer que, no desgoverno de Jair Bolsonaro, a Funai mudou de natureza, passando a agir pela desconstrução de direitos, pela desterritorialização dos povos e gestando interesses econômicos que assolam o patrimônio público.

A Funai, ao que parece, foi alçada a uma espécie de agência nacional de negócios em terras indígenas. A presidência do órgão indigenista faz vistas grossas às invasões, aos desmatamentos, à degradação ambiental, à garimpagem, aos incêndios e ao loteamento de terras. Tem chegado ao ponto de não coibir o proselitismo religioso, quando permite que missões fundamentalistas tenham acesso aos povos isolados. Nesse ambiente houve a necessária intervenção da Suprema Corte para impedir a entrada de missões religiosas nas comunidades indígenas em situação de isolamento. Cabe salientar que o juízo da 1ª Vara Federal de Santarém, no Pará, tornou o presidente da Funai réu por descumprimento de decisões judiciais.

“Ao que parece, a Funai foi alçada a uma espécie de agência nacional de negócios em terras indígenas”

Embora a Funai conte com bons e valorosos servidores – que aliás são sistematicamente perseguidos internamente por aqueles que comandam o órgão –, a sua estrutura e funcionamento foram contaminadas por setores anti-indígenas, por delegados, policiais aposentados, crentes, latifundiários e outros sujeitos que atuam, declaradamente, contra os interesses e direitos indígenas. Eles propagam a depredação dos bens indígenas, colocam as terras da União à disposição da grilagem e da garimpagem. Atuam não para proteger, fiscalizar e fazer respeitar os bens e o patrimônio público, mas para que estes sejam dilapidados. Muitos prevaricam e, portanto, precisam ser investigados, denunciados e responsabilizados judicialmente.

E isso tudo não vem sendo feito em segredo. Ao contrário, a presidência da Funai expõe, torna público, através de medidas administrativas, de instruções normativas e pareceres orientações internas de políticas antidemarcação e de não atuação no âmbito do Judiciário, para fazer a defesa dos interesses da União e do patrimônio indígena. Ao contrário, retiram-se dos processos para facilitar a saga predatória. Há informações de servidores, dos bons agentes da Funai, de que está havendo pedidos de usucapião em terras indígenas, o que é uma aberração jurídica, sem que haja qualquer tipo de questionamento administrativo ou jurídico. Além do abandono das ações cíveis, a Funai também se retira da defesa dos indígenas nas ações criminais, onde, quase sempre, estão em jogo as relações de tradicionalidade e conflito cultural.

Neste contexto, só há três caminhos: os povos indígenas agirem intensamente contra essas práticas, denunciando-as no país e no exterior; as forças políticas progressistas precisam se envolver e combater o desgoverno, como se estivessem numa grande batalha pela defesa do país; e o Ministério Público Federal (MPF) deve proceder a uma ampla e irrestrita investigação no sentido de  apurar eventuais crimes na atual administração e responsabilizar civil e criminalmente todos os que contribuem para as práticas delituosas.

Em verdade, a situação atual é intolerável. Não podemos assistir a tudo como se não houvesse um amanhã. O amanhã, sem uma ação imediata contra o desgoverno e a antipolítica indigenista, será mais sombrio do que hoje e a destruição em curso, será irreversível.

Porto Alegre, 03 de outubro de 2021

II Marcha Nacional das Mulheres Indígenas, setembro, 2021. Foto: Hellen Loures /Cimi

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