Por Thais Carrança, da BBC News Brasil
Com um custo de 0,5% do PIB (Produto Interno Bruto), o Bolsa Família conseguiu em seus 18 anos de história reduzir a pobreza e a pobreza extrema, diminuir a mortalidade infantil, aumentar a participação escolar feminina, reduzir a desigualdade regional do país e melhorar indicadores de insegurança alimentar entre os mais pobres.
Enquanto todos esses benefícios eram colhidos, a fertilidade da população de baixa renda diminuiu – mostrando que uma das ideias difundidas inicialmente para atacar o programa, a de que ele seria um incentivo para que famílias buscassem ter mais filhos para receberem mais, não tinha fundamento.
E a maior parte da primeira leva de beneficiários deixou o programa, encontrando uma “porta de saída”, conforme reportagem recente do jornal O Estado de S. Paulo.
Embora o programa necessitasse de ajustes – como ser ampliado em número de beneficiários e valor dos benefícios, além de ser reajustado periodicamente como os salários, para que seus beneficiários não fossem prejudicados pela inflação -, os resultado positivos são visíveis.
Eles foram reconhecidos internacionalmente ao longo dos anos e constatados nos mais de 19 mil estudos sobre o programa registrados da Plataforma Lattes do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico).
’18 anos de história desperdiçados’
“Sabe quantos desses estudos foram usados para embasar a extinção do Bolsa família? ZERO”, lamentou em uma rede social a economista Tereza Campello, que foi ministra do Desenvolvimento Social e Combate à Fome durante o governo Dilma Rousseff (PT).
“São 18 anos de uma história de sucesso desperdiçados”, acrescentou Campello.
O Bolsa Família foi revogado pela Medida Provisória que criou o Auxílio Brasil (MP 1.061/2021), publicada no Diário Oficial da União em 10 de agosto. A MP passou a valer imediatamente, mas ainda terá que ser votada pelo Congresso em até 120 dias para que o novo programa se torne definitivo.
O Auxílio Brasil é a tentativa do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) de imprimir uma marca própria na assistência social, apagando — às vésperas das eleições de 2022 — o nome fortemente associado às gestões petistas.
Nesta sexta-feira (29/10), os beneficiários do Bolsa Família fizeram o último saque de valores do programa.
A partir de novembro, há uma grande incerteza sobre o que vai acontecer com essa parcela da população, já que o Auxílio Emergencial também chegou ao fim agora em outubro e o Auxílio Brasil ainda não tem fonte de receitas definida, pois o Congresso não votou essa semana a PEC dos Precatórios – esperança do governo Bolsonaro para abrir espaço no teto de gastos para bancar o novo programa.
Enquanto o país aguarda uma solução para a assistência social aos mais vulneráveis, em meio ao avanço da fome e da inflação, relembre oito resultados do Bolsa Família, que chega ao fim após 18 anos.
1) 3,4 milhões de pessoas fora da pobreza extrema
O Bolsa Família foi criado em 2003, durante o primeiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), e tornou-se lei no ano seguinte.
O programa tinha como público alvo todas as famílias com renda por pessoa de até R$ 89 por mês, consideradas em situação de extrema pobreza, ou com renda até R$ 178 mensais (em situação de pobreza) com crianças ou adolescentes até 17 anos.
Com condicionantes como a permanência das crianças na escola, o acompanhamento de saúde das gestantes e a vacinação em dia, o programa teve como objetivo “quebrar o ciclo geracional da pobreza”, isto é, a tendência de os filhos das pessoas pobres acabarem vivendo na mesma pobreza em que seus pais.
Estudo publicado pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) em 2019, constatou o resultado positivo do programa em tirar famílias da situação de pobreza e pobreza extrema.
Segundo a pesquisa, em 2017, mais de 3,4 milhões de pessoas haviam deixado a pobreza extrema por causa do Bolsa Família, e 3,2 milhões passaram acima da linha de pobreza graças ao programa.
Ainda assim, alertavam os pesquisadores, 64% dos beneficiários continuavam em situação de extrema pobreza, um resultado do baixo valor do benefício – que em 2017, era de em média R$ 180 e, atualmente, passados quatro anos e muita inflação, estava ainda em R$ 190.
2) Redução de 16% da mortalidade infantil
Um estudo publicado em setembro deste ano na revista científica PLOS Medicine, liderado pelas pesquisadoras Dandara Ramos e Nívea Bispo da Silva, analisou uma amostra de mais de 6 milhões de crianças com idades abaixo de 5 anos, entre 2006 e 2015.
Comparando famílias beneficiárias do Bolsa Família com outras fora do programa, as pesquisadoras constataram que o programa de transferência de renda reduziu em 16% a mortalidade de crianças de 1 a 4 anos.
O efeito foi ainda mais significativo para famílias com mães negras e nos municípios mais pobres, onde a redução chegou a 26% e 28%, respectivamente.
“Os resultados reforçam a evidência de que programas como o Bolsa Família, de eficácia já comprovada para a redução da pobreza, também têm grande potencial para melhorar a saúde e a sobrevivência infantil”, destacaram as pesquisadoras, no estudo.
3) Aumento da participação escolar feminina
O Bolsa Família foi criado em 2003 com uma condicionante de frequência escolar para crianças entre 6 e 15 anos. Em 2008, um programa complementar foi criado (Benefício Variável Jovem) para contemplar jovens entre 16 e 17 anos.
Pelas regras, a frequência escolar deveria ser de pelo menos 85% das aulas para crianças e adolescentes de 6 a 15 anos e de 75% para jovens de 16 e 17 anos. O cumprimento das condicionantes dava aos participantes do programa um valor adicional no benefício.
Um estudo publicado em 2015 no periódico científico World Development constatou que o Bolsa Família teve resultados relevantes para o avanço da educação feminina.
Analisando dados de mais de 11 mil domicílios entre 2005 e 2009, os pesquisadores constataram que o programa aumentou a participação escolar das meninas em 8 pontos percentuais e a progressão entre séries (quando o aluno passa de uma série escolar para a seguinte) em 10 pontos percentuais. Não foram encontrados resultados significativos para os meninos.
Para os pesquisadores, esse resultado talvez seja explicado pela menor dependência das mães beneficiárias do Bolsa Família do trabalho doméstico de suas filhas.
“É possível que a redução no tempo gasto pelas meninas com trabalho doméstico permita a elas mais tempo para estudar”, avalia o grupo liderado pelo pesquisador Alan de Brauw, do Instituto de Pesquisa em Política Alimentar Internacional de Washington, nos Estados Unidos.
4) Redução da desigualdade regional
O Bolsa Família foi responsável por 14,8% da redução da desigualdade regional no Brasil entre 1995 e 2006, constatou um outro estudo produzido pelo Ipea, publicado em 2013.
O papel do programa na redução da desigualdade foi maior do que o do BPC (Benefício de Prestação Continuada, salário mínimo pago a idosos e pessoas com deficiência de baixa renda), que contribuiu para a redução das diferenças regionais de renda em 8,9%.
O importante papel do Bolsa Família na redução da desigualdade regional se deve ao maior número de beneficiários nas regiões Norte e Nordeste, as mais pobres do país.
“Por exemplo, o valor recebido pelo Estado do Maranhão equivalia a 1,8 e 4,7 vezes os valores recebidos, respectivamente, pelo Distrito Federal e São Paulo. Em termos médios, o valor recebido pelos dez estados mais pobres é quase o dobro (1,9 vez) daquele recebido pelos dez estados mais ricos”, exemplificam os pesquisadores do Ipea.
“Do ponto de vista das políticas de combate à desigualdade regional (…), é interessante notar que, embora não sejam diretamente políticas regionais e espaciais, as políticas sociais de transferências de renda trazem efeitos consideráveis sobre a distribuição regional de renda”, concluem Raul da Mota Silveira Neto e Carlos Roberto Azzon, autores do estudo.
5) Melhora dos indicadores de insegurança alimentar
As famílias atendidas por programas de transferência de renda tendem a gastar uma parcela importante do benefício com a compra de alimentos, principalmente para as crianças.
Em 2012, um estudo revisou outras dez pesquisas anteriores sobre a relação entre o recebimento do Bolsa Família e a alimentação das pessoas, constatando que em cinco deles a conclusão foi que o programa tem impacto positivo na segurança alimentar e nutricional.
Um desses estudos foi realizado pelo Ibase (Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas), e ouviu 5 mil beneficiários, de 229 municípios brasileiros em 2007.
“87% relataram gastar o benefício recebido com a compra de alimentos. Questionados sobre o que ocorreu com a alimentação da família após o recebimento do benefício, mais de 70% responderam que aumentou a quantidade e a variedade de alimentos consumidos e 63% responderam que passaram a comprar mais alimentos preferidos pelas crianças”, encontrou a pesquisa do Ibase, segundo a revisão publicada na Revista Panamericana de Salud Pública.
No entanto, um outro efeito não tão positivo também foi encontrado: três dos estudos revelaram que as famílias gastaram mais com alimentos calóricos e de baixo valor nutricional, como biscoitos, alimentos industrializados e açucarados.
“O Programa Bolsa Família pode auxiliar na promoção da segurança alimentar e nutricional das famílias beneficiárias, ao propiciar às populações em vulnerabilidade social maior capacidade de acesso aos alimentos”, observam os pesquisadores, ponderando, porém, que o programa poderia ter melhor efeito se combinado com ações de incentivo à alimentação saudável.
6) Efeito multiplicador no PIB
Cada R$ 1 gasto com o Bolsa Família gera um impacto de R$ 1,78 no PIB (Produto Interno Bruto) brasileiro, mostrou estudo realizado pelos pesquisadores Marcelo Neri, Fabio Monteiro Vaz e Pedro Herculano de Souza.
O efeito multiplicador de 1,78 é maior do que o de todas as demais formas de transferência de renda, constaram os pesquisadores, como BPC (1,19), seguro-desemprego (1,06) e abono salarial (1,06), por exemplo.
“Os efeitos multiplicadores são maiores quanto mais focalizadas são as transferências nos mais pobres, porque estas famílias possuem maior propensão marginal a consumir”, explicam os pesquisadores.
Quer dizer: as famílias pobres só não consomem mais porque não têm renda para isso. Assim, quando recebem mais dinheiro, tendem a consumir o valor recebido, movimentando a economia.
7) Queda da fecundidade feminina
Apesar do argumento persistente de que o Bolsa Família incentivaria as mulheres a terem mais filhos, a fecundidade das mulheres de baixa renda diminuiu de 5,5 filhos em 1991, para 4,6 filhos em 2000 e 3,3 filhos em 2010, segundo outro estudo publicado pelo Ipea, da autoria de José Eustáquio Diniz Alves e Suzana Cavenaghi.
Assim, embora não se possa atribuir a queda diretamente aos efeitos do Bolsa Família, fica evidente que o programa não alterou a trajetória de declínio da taxa de fecundidade brasileira, iniciada na década de 1960.
“As mulheres que fazem parte do maior contingente de renda coberto pelo Programa Bolsa Família apresentaram uma redução do número médio de filhos tanto na última década do século 20, quanto na primeira década do século 21”, observam os pesquisadores.
“Ou seja, a fecundidade da população mais pobre do Brasil vinha caindo antes da implantação do Programa Bolsa Família e continuou a cair depois da ampliação da cobertura da transferência de renda.”
8) 69% acharam a “porta de saída”
Na quinta-feira (28/10), o presidente Jair Bolsonaro disse, em entrevista ao apresentador Sikêra Jr., da Rede TV , que quem recebe Bolsa Família “não sabe fazer quase nada”.
“Não tem como tirar o Bolsa Família do pessoal, como alguns querem. São 17 milhões de pessoas que não têm como ir mais para o mercado de trabalho. Com todo o respeito, não sabem fazer quase nada. O que a juventude aprendeu com quase 14 anos de PT, tendo o ministro [Fernando] Haddad lá na educação?”, disse Bolsonaro.
No entanto, levantamento realizado pelo jornal O Estado de S. Paulo revelou que dos 1,15 milhão de contemplados na primeira leva do Bolsa Família, em outubro de 2003, 795 mil – ou 69% do total – conseguiram deixar o programa.
A reportagem conta, por exemplo, o caso de Simara Martins, de 34 anos e filha de uma ex-beneficiária do Bolsa Família.
Vanilda, a mãe de Simara, começou a vender pamonha com os R$ 110 recebidos pela família. Com a renda do negócio e a entrada das filhas no mercado de trabalho, conseguiu sair do programa, seis anos após ingressar nele.
Simara hoje é dona de uma confecção de roupas de praia e emprega sete pessoas. Ela é um exemplo dos resultados positivos do Bolsa Família em interromper o ciclo de pobreza intergeracional.
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Foto: Agência Senado
Enviada para Combate Racismo Ambiental por Diogo Rocha