Os indígenas foram surpreendidos, na tarde desta quarta-feira (17), com a chegada de jagunços e de funcionários de uma empresa de energia elétrica no território; segundo lideranças, o clima é de tensão
Na tarde dessa quarta-feira (17), o Povo Akroá Gamella, da Terra Indígena (TI) Taquaritiua, no Maranhão, foi surpreendido com a chegada hostil de funcionários de uma empresa de energia elétrica, acompanhados de jagunços – que se identificaram como policiais. Há anos, essa empresa tenta, sem qualquer consulta e respeito aos indígenas, instalar postes e linhões dentro da TI Taquaritiua, área que vive um moroso processo de demarcação pela Fundação Nacional do Índio (Funai) desde 2014.
De acordo com lideranças – que não serão identificadas por questão de segurança –, a madrugada do dia 17 para 18 de novembro foi “em claro”. “Haviam mais ou menos 60 homens trabalhando pela empresa de energia e nós sabemos que ficou alguém nos vigiando à noite. A qualquer momento eles podiam vir aqui e fazer alguma coisa contra a gente. Temos que ter cuidado, esse governo está acabando com tudo”, afirmou.
Mas a tensão não acabou nesse momento. Nesta quinta-feira (18), a TI Taquaritiua amanheceu com a presença dos jagunços: eles estavam no local para ajudar na instalação das torres de energia elétrica. Já no período da tarde, policiais militares dirigiram-se à Aldeia Cajueiro, na TI Taquaritiua, e colocaram, à força, algumas lideranças dentro da viatura. Há relatos de que os celulares, entre outros equipamentos de comunicação dos indígenas, foram tomados pela polícia.
“Levaram celular e câmeras. Agora à tarde [18 de novembro] usaram bala normal [arma de fogo], spray de pimenta, bala de borracha. Eles [policiais] estão ameaçando todo mundo, tanto homem quanto mulher”, disse uma das lideranças.
Em resposta aos atos de violência, e em meio à tensão, os indígenas informaram aos policiais que, judicialmente, não há “nenhum tipo de autorização” para fazer a implantação dos postes e do linhão no território. Segundo relatos dos indígenas, a Polícia Militar, ao invés de buscar informações sobre a atuação dos criminosos, foram apenas atrás dos indígenas, e de forma “truculenta”.
Processo histórico
De acordo com Lucimar Carvalho, assessora jurídica do Cimi Regional Maranhão, já foram feitas diversas denúncias sobre o caso. “Já denunciamos ao Ministério Público Federal, à 6ª Câmara [de Coordenação e Revisão -Índios e Minorias], para a Defensoria Pública da União. Já pedimos também para que suspendessem esses empreendimentos já que, até o momento, não foi conduzido da maneira correta. Ou seja, com a participação e consulta ao povo sobre o licenciamento”.
Desde 2016, a empresa tenta dar continuidade ao processo de implantação do linhão de energia, que, segundo Lucimar, rasga a TI Taquarititua ao meio. “A ação dessa empresa é completamente descabida. Primeiro que o licenciamento corre pela Secretaria Estadual de Meio Ambiente, enquanto deveria ser pelo Ibama [Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis]. Além disso, deveriam respeitar o componente indígena, que é o termo de referência para essas situações. Os impactos no território sequer foram observados. Já passa um trecho de uma linha de transmissão e há uma tremenda devastação embaixo dessas linhas”, afirmou a assessora do Cimi.
Mas, infelizmente, essa não é a primeira situação do tipo que ocorre no território: há um quadro crônico de conflitos na região devido à longa espera de demarcação do território. “Desde 2014, o povo requer, junto à Funai, o seu processo de identificação e de demarcação do território. Nesses processos de retomada do Povo Akroá Gamella, ocorreu um massacre, em abril de 2017, feito por políticos e fazendeiros da região”, relembrou Lucimar.
Outros conflitos
Em julho deste ano, a TI Taquaritiua também foi alvo de criminosos: uma família de posseiros instalou cercas no interior do território. À época, os não indígenas disseram que estavam “apenas medindo a área”. Mas, dias depois, retornaram ao local para executar a ação, que ocorreu na entrada da Aldeia Centro do Antero, próxima ao povoado Santeiro.
Enquanto os posseiros faziam o cercamento, na manhã do dia 12 de julho, os indígenas cantavam e realizavam rituais ao lado da área, em protesto contra a ação. Naquele momento, as lideranças haviam afirmado que as polícias civil e militar apareceram no local, mas não falaram nada com os indígenas. No final da tarde do mesmo dia, a instalação das cercas foi interrompida, mas a ação continuou.
A situação foi denunciada pelo Conselho de Lideranças do Povo Indígena Akroá Gamella, pelo Conselho Indigenista Missionário(Cimi) Regional Maranhão e pela Comissão Pastoral da Terra do Maranhão (CPT MA) por meio de um ofício enviado ao Ministério Público Federal (MPF), à Polícia Federal, à Defensoria Pública da União (DPU), à Funai, à Secretaria de Direitos Humanos do Maranhão e ao Programa Estadual de Proteção de Defensores de Direitos Humanos do Maranhão.
“As ameaças de cercamento são históricas, assim como são históricos os processos de resistência do Povo Akroá Gamella diante da continuidade de ações de invasores em insistir em cercamentos do seu território tradicional”, destaca o documento remetido às autoridades à época.
O conflito histórico se intensificou nos últimos anos e resultou, em abril de 2017, num massacre contra o Povo Akroá Gamella, no qual mais de 20 indígenas foram feridos e dois tiveram as mãos cortadas.
Segundo a denúncia, a família que havia feito o cercamento integra o sindicato dos criadores de gado da região, o que, na avaliação das entidades, “representa uma clara articulação para a continuidade de ofensivas contra os direitos constitucionais indígenas”.
Além disso, as entidades e os indígenas também haviam ressaltado que esta família teve “papel preponderante na articulação que culminou com o massacre contra o Povo Akroá Gamella no dia 30 de abril de 2017”.
Após a grande repercussão do ataque contra os indígenas e uma ação civil pública do MPF, em novembro de 2017 a Funai constituiu, por meio de uma portaria, o Grupo de Trabalho (GT) responsável pela identificação e delimitação do território dos Akroá Gamella. O processo ainda encontra-se estagnado.
Além da morosidade no processo demarcatório, as entidades também apontaram, no documento que medidas da Funai como a Instrução Normativa (IN) 09/2020, que permite a certificação de propriedades privadas sobre terras indígenas ainda não homologadas, favorece conflitos e ações como a que ocorre no território Gamella.
A IN 09 já foi suspensa em diversos estados por ações do MPF, mas não no Maranhão. “A continuidade da validade aqui no Maranhão da IN 9 da Funai acaba por incentivar tais procedimentos e ameaças contra os povos indígenas”, ressalta o ofício.
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Indígenas do povo Akroá Gamella próximos à uma torre de transmissão, na TI Taquaritiua. Foto: Povo Akroá Gamella