Cruzada extremista: como age o negacionismo cultural nos museus

Em ações do Ibram e Iphan, bolsonarismo investe contra mais importante coleção afroreligiosa do país, sob guarda do Museu da República, no Rio, e ameaça desestruturar todo o Sistema Nacional de Museus

Por Jotabê Medeiros, em ARTE!Brasileiros

Entre 1891 e 1946, mais de 500 objetos sagrados das religiões afrobrasileiras foram apreendidos pela polícia do Estado do Rio de Janeiro, que movia então intensa perseguição aos rituais do candomblé e da umbanda que chegaram ao Brasil com cidadãos negros escravizados. Expostos como “Coleção de Magia Negra”, permaneceram por um século sob a posse do Museu da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro. Mães e pais de santo eram acusados de charlatanismo e curandeirismo e seus objetos rituais eram apreendidos como provas do “crime”.

Em julho do ano passado, após quase cem anos sob tutela da polícia, as 519 peças do acervo foram doadas ao Instituto Brasileiro de Museus (Ibram) e transferidas para o Museu da República, sendo incorporadas ao patrimônio brasileiro. A cessão foi resultado de uma luta popular encabeçada pela ialorixá Mãe Menininha de Oxum a partir de 2018. Os objetos são os mais antigos do tipo que se tem notícia, o que mobilizou a comunidade museológica e trouxe euforia à militância afrobrasileira. Anéis de metal que pertenceram a líderes religiosos, joias, 22 cachimbos, 60 esculturas, 13 tambores, cerca de 10 peças de indumentária (200 dessas peças já eram tombadas pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, o Iphan, o primeiro tombamento etnográfico do País). Uma história subterrânea emergia da preciosa coleção, abrigada pelo Museu da República na rua do Catete, 153, no coração do Rio de Janeiro, no dia 21 de setembro de 2020 – os símbolos e desenhos talhados no material possibilitam ampliar a compreensão dos cultos, das origens, da força e das estratégias de sobrevivência de uma época em que as manifestações religiosas de matriz africana eram alvo de perseguição no país.

Há alguns dias, entretanto, aquilo que sugeria um final feliz (como a consolidação de um notável avanço civilizacional, histórico, etnológico, cultural e social) trombou de novo com aquela antiga barreira do preconceito e da ignorância que tinha criminalizado a umbanda e o candomblé no passado. Quando o Ibram já fotografava, descrevia e preparava a coleção para expô-la ao público, se deparou com uma súbita e inesperada ordem de cima para interromper todo o trabalho de documentação e para enclausurar o material.

Segundo apurou a reportagem, a ordem de interromper a preparação da coleção teria vindo direto do Diretor de Cooperação e Fomento do Iphan, Tassos Lycurgo, um pastor e extremista cristão, frequente orador da igreja Defesa da Fé. As peças do Acervo Nosso Sagrado (assim rebatizado pela reivindicação da comunidade negra) já estavam em pleno exame no Departamento de Difusão, Fomento e Economia do Ibram. Mas porque o pastor Lycurgo, que é do Iphan, outra autarquia federal, ganhou essa autoridade sobre uma coleção do Ibram sob a guarda do Museu da República? Acontece que Lycurgo, colocado no atual cargo há um mês, dirige agora o Sistema Nacional de Patrimônio Cultural (SNPC) do país, responsável por coordenar ações do setor que tratam da cooperação nacional e internacional, promoção e difusão, formação e pesquisa aplicada e a gestão documental e do conhecimento.

Ninguém sabe dizer quando (ou se) serão retomados os trabalhos no Acervo Nosso Sagrado. A equipe do Museu da República conseguiu, a duras penas, montar uma mostra virtual antes da lacração. A ação do Ibram se insere numa cruzada extremista que já se espalha como uma metástase por todo o sistema de cultura do País, casos da Ancine, do Iphan, da Fundação Casa de Rui Barbosa e da Fundação Cultural Palmares. Lycurgo, pastor do Ministério da Defesa da Fé em Natal (RN), afirmou em seu site que uma de suas missões é “apresentar de maneira científica, histórica e filosófica razões para seguir Jesus Cristo”.

Quando Tassos Lycurgo assumiu no Iphan, em dezembro de 2020, a arquiteta Marcia Sant’Anna, uma das maiores especialistas em patrimônio cultural e histórico da Bahia, advertiu, como se em uma premonição: “Muitos bens culturais  registrados no Brasil como patrimônio imaterial estão vinculados a sistemas religiosos que precisam ser respeitados e acolhidos como importantes manifestações da cultura e das distintas visões de mundo que caracterizam a sociedade brasileira. Assim, a política de salvaguarda não pode e nem deve estabelecer hierarquias ou juízos de valor com relação a essas manifestações. As postagens e declarações do senhor Tassos Lycurgo não nos autorizam a pensar que esses princípios serão observados”.

A implosão do sistema museológico tem dupla função: além de impor a agenda do extremismo ideológico, religioso e fundamentalista do governo, possibilita também a ocupação funcional, o preenchimento do chamado cabide de empregos – boa parte dele destinado ao contingente de oficiais da reserva a reboque do bolsonarismo. No Ibram, foi nomeado em 16 de junho o coronel da reserva do Exército Paulo Guilherme Ribeiro Fernandes como diretor do Departamento de Planejamento e Gestão Interna dos museus. Mais que um militar, Fernandes vem de uma aventura temerária: era coordenador-geral de Planejamento do Ministério da Saúde na malfadada gestão do general Eduardo Pazuello, que assumiu o ministério quando haviam 15 mil mortos pela pandemia de Coronavírus e, quando foi demitido, já contabilizava 280 mil mortos em seu currículo. Uma das ações de “planejamento” do grupo de Pazuello, a cargo justamente do setor do coronel Fernandes, foi a distribuição de oxigênio para hospitais, que terminou com um morticínio de dimensões indescritíveis em Manaus, no Amazonas.

Acomodado agora nos museus, após a queda de Pazuello, o coronel Fernandes já apresentou suas armas: ele pretende tirar da condição de unidades gestoras autônomas (Unidades Administrativas de Serviços Gerais, as UASGS) todo o sistema museológico brasileiro. Os museus do Rio de Janeiro, por exemplo, que são atualmente unidades gestoras (Museu Nacional de Belas Artes, Museu Villa Lobos, Museu Histórico Nacional, Chácara do Céu, Museu da República) deixarão de ser autônomos e suas ações ficarão concentradas num único escritório regional. O que possibilita ao coronel fazer tal ingerência é uma portaria do Ministério da Economia publicada no dia 12 de dezembro de 2019 (Portaria 13.623) que permite o “redimensionamento do quantitativo das Uasg pelos órgãos da administração pública federal”.

Revestida de uma casca de legalidade imoral, o avanço do obscurantismo tem graves efeitos coletarais. Qualquer resistência a essa cruzada motiva perseguições e hostilidade nas agências (vide o caso recente da Anvisa, Agência Nacional de Saúde, que está sob ataque violento de negacionistas por decisões sobre vacinação infantil), assim como autarquias e instituições públicas de cultura. Isso levou os servidores contatados pela reportagem a negarem-se a dar depoimentos para o texto.

O autoritarismo e a falta de transparência tingem de insegurança e espírito antidemocrático praticamente todas as instituições dos setores museológico e patrimonial na esfera federal. Parecem atos aloprados, de fanáticos, mas têm método e sistemática. Um dos ataques mais recentes foi contra a estrutura do Prêmio Rodrigo Melo de Andrade Franco, premiação de excelência da área do patrimônio, com 34 anos de existência. A edição 2021 do prêmio sofreu uma série de alterações substanciais na dinâmica da premiação nesta 34ª edição, notadamente na etapa final, que é nacional. As alterações, feitas sem consulta prévia e anuência da equipe que integra a Comissão Organizadora da Premiação, atentam contra os princípios de transparência e lisura preconizados pelo serviço público, além de afetar a dinâmica do concurso e da rede de técnicos e experts que participam da premiação. O tempo exíguo para que o júri faça o exame dos 125 inscritos também contou negativamente na qualidade do processo.

O setor museal é uma área estratégica em todas as Nações desenvolvidas. Em países como França e Inglaterra, sua capacidade de autogestão e força curatorial atuam como âncoras econômicas e de desenvolvimento. No Brasil, a preocupação com o setor é relativamente recente, começando a ser política de Estado só a partir dos anos 1930, no governo Vargas. Hoje, parte substancial das políticas da área é tocada pelo Ibram, que ainda é responsável pela administração direta de 30 museus federais.

Subordinado à Secretaria Especial de Cultura, por seu turno submetida ao Ministério do Turismo, o Ibram vive o pesadelo de toda a cultura nesse período: a centralização autoritária e o espectro da censura. Por exemplo: uma circular do secretário Mario Frias, de 2020, obriga hoje a que todas as instituições vinculadas submetam a ele, com sua vasta experiência de ex-ator de soap opera, todas suas publicações – sejam em sítios, perfis, mídias digitais e portais oficiais, “visando uniformizar a comunicação”. Imaginem o Museu do Louvre tendo de passar por algo assim. A autonomia museológica é o único antídoto para tal postura.

Os museus vivem já há algum tempo uma aguda encruzilhada face às novas tecnologias e demandas do mundo contemporâneo. Para além dos problemas atuais, que são arcaicos, provocados por um governo arcaico, a museologia tem os desafios de “sacudir, diversificar, experimentar novos caminhos de inovação e superar as tradicionais discussões”, segundo diagnosticaram especialistas do País todo reunidos em um simpósio este ano. Essas exigências vão ser testadas no ano que vem, quando voltam à ativa os gigantes Museu do Ipiranga, em São Paulo, e o Museu Nacional, no Rio (destruído por um incêndio em setembro de 2018).

A pandemia de Covid-19, malgrado todos os danos, é consenso que ensinou aos museus uma lição. Ao se verem paralisados, sem seu público, sem visitação, eles trataram de modernizar seu papel na vida social e a abordagem pública. Museus de paleontologia e antropologia passaram a incrementar sua função para além da educação, do caráter exibicional e da geração de ciência, passando a gerar também conhecimento. Aprenderam a fazer todo o planejamento de forma remota e a desenvolver as estratégias expositivas à distância, de uma forma que vem sendo considerada muito satisfatória. Incrementaram o uso de holografia e interatividade e a comunicação e o diálogo com a sociedade. Para além dos fantoches do autoritarismo, do retrocesso e do desmonte, os museus já projetam o futuro.

Abebé de Oxum – Objeto com força espiritual para afastar energias negativas. No candomblé, espelho sagrado em que Oxum admira a própria beleza. Da coleção de Museu da República. Foto: Oscar Liberal/ Divulgação

Enviada para Combate Racismo Ambiental por Emilia Wien.

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