Procurador federal, conhecido por sua luta contra a corrupção e por uma vida austera, defende que a renda básica universal pode ser uma alternativa para a construção de uma sociedade mais digna
Por: Ricardo Machado, em IHU
A desigualdade e a pobreza que formam a coluna vertebral que sustenta a história social do Brasil ganham corpo, carne, sangue e ossos com a população marginalizada que segue sendo vilipendiada. Embora as “Casas grandes” não tenham mudado tanto de endereço, o Estado tratou de dispersar as “senzalas”, mas manteve o estado de coisas no qual a mentalidade escravocrata sobrevive.
“O Brasil ainda é o ‘Brasil das Casas Grandes e das Senzalas’. As senzalas atuais têm as formas de favelas, palafitas, presídios, celas nas delegacias, camburões, barracos e covas nas ruas e matas (sem teto) etc., onde especialmente pessoas negras, reificadas, sobrevivem, crucificados, torturados, em situações inumanas, desumanas, diabólicas, um verdadeiro holocausto, genocídio e ecocídio, combinados”, sustenta Luiz Francisco Fernandes de Souza, em entrevista por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
Quando consideramos o número da população carcerária, incluindo menores infratores em centros de reabilitação e pessoas internadas em manicômios, a população total, segundo o entrevistado, soma algo como 1 milhão de habitantes. “O Sistema prisional no Brasil é uma forma de (continuação da) escravidão, uma máquina de moer carne humana (especialmente negra), uma senzala, um Gulag, um campo de concentração e torturas nazista, um Moloch que faz um holocausto humano”, ressalta.
Em um contexto de profunda degradação moral e social, uma renda básica de cidadania torna-se algo essencial para dirimir os efeitos da desigualdade. “A Renda Básica ajuda na ampliação do salário-mínimo e no encurtamento da jornada de trabalho, tal como na criação e manutenção de milhões de pequenas e microempresas familiares de serviços, comércio, artesanato, artes e produção em geral”, propõe o entrevistado.
Luiz Francisco Fernandes de Souza é um procurador da República brasileiro atuante em famosas investigações de corrupção de importantes nomes da política nacional. Ingressou no Ministério Público da União – MPU em 1993 e a partir de 1995 foi para o Ministério Público Federal – MPF. Passou por diversas universidades Universidade Nacional de Brasília – UnB, Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e dos Territórios – ESMPDDFT e, inclusive, Unisinos, tendo se formado em Direito no Centro Universitário de Brasília – Uniceub. É autor de diversos livros, dos quais destacamos A Igreja quer abolir a estrutura Gulag-Senzala-Máquina de Moer carne humana negra, humanizando o sistema penal (E-book Kindle, 2021), O Socialismo Democrático Ecossocialista e Abolicionista é a atual Fórmula, ideal-síntese da Igreja (E-book Kindle, 2021) e O Amor entre a Doutrina Social da Igreja e o Socialismo Democrático (E-book Kindle, 2021). Também é autor do livro Socialismo – uma Utopia Cristã (São Paulo: Editora Casa Amarela, 2003).
Confira a entrevista.
IHU – Para introduzir e contextualizar nossa entrevista, em primeiro lugar gostaríamos que o senhor descrevesse como percebe a questão dos direitos humanos no Brasil atual.
Luiz Francisco Fernandes de Souza – A situação do Brasil, no que tange aos Direitos Humanos de várias gerações, especialmente direitos humanos sociais, é obscena, abominação pura. É igual à ministra Damares, é a negação dos Direitos humanos, situação que fere todas as normas.
O Brasil ainda é o “Brasil das Casas Grandes e das Senzalas”. As senzalas atuais têm as formas de favelas, palafitas, presídios, celas nas delegacias, camburões, barracos e covas nas ruas e matas (sem teto) etc., onde especialmente pessoas negras, reificadas, sobrevivem, crucificados, torturados, em situações inumanas, desumanas, diabólicas, um verdadeiro holocausto, genocídio e ecocídio, combinados.
O Brasil tem cerca de 20 milhões de pessoas vivendo em 13.151 “aglomerados subnormais” (favelas, palafitas etc.), em 734 cidades (dados de 2019, cf. IBGE, Pnad e POF; e site 247), com 5,1 milhões de moradias que não atendem a padrões urbanísticos mínimos.
Temos a polícia mais letal e mais torturadora do planeta. No que tange aos trabalhadores, temos um dos piores salários, precarização total.
O Brasil tem cerca de 1.380 presídios, com mais de 800 mil presos adultos. Há também uns 50 mil presos em tipos de manicômios ou alas manicomiais nos presídios e uns 50 mil menores presos. O total é algo como umas 900 mil pessoas, mas como é cíclico, chega-se a um milhão e meio de torturados e crucificados vivos.
Temos mais de um milhão de crucificados vivos nos presídios, uns 20 milhões nas favelas, 14 milhões de desempregados, analfabetos, subempregados, escravos do UBER etc. Outros 70 milhões de abandonados, marginalizados, pisados, esmagados e reificados.
IHU – Em linhas gerais, do que se trata seu recente livro A Igreja quer abolir a estrutura Gulag-Senzala-Máquina de moer carne humana negra, humanizando o sistema penal?
Luiz Francisco Fernandes de Souza – Exponho algumas das ideias da Pastoral Carcerária, do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCRIM, da Associação Juízes para a Democracia – AJD, Centro de Estudos em Desigualdade e Discriminação – CEDD/UnB, Instituto de Defesa do Direito de Defesa, a Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas – ABACRIM, de estrelas brilhantes como Friedrich Spee, Luís Gama, Alessandro Baratta, Nils Christie, Thomas Mathiesen, Angela Davis, Loic Wacquant, Aury Lopes Jr., Gustavo Badaró, Pedro Serrano, Maria Lúcia Karam, Marcelo Semer, Lenio Luiz Streck, Juarez Cirino, Ariano Suassuna, Marat e outros. São algumas das fontes que adoto, com todos meus limites e defeitos.
Tentei resumir o que a Igreja, a Pastoral Carcerária e os Movimentos de Direitos Humanos querem: erradicar o holocausto-genocídio e humanizar, gradualmente, o sistema penal do Brasil, que é um dos piores do mundo.
O Sistema prisional no Brasil é uma forma de (continuação da) escravidão, uma máquina de moer carne humana (especialmente negra), uma senzala, um Gulag, um campo de concentração e torturas nazista, um Moloch que faz um holocausto humano (sacrifícios humanos, a Mamon-Baal-Moloch, cf. Enrique Dussel e Porfírio Miranda), uma forma desumana, inumana, diabólica de torturar pessoas. Realimenta crimes, tortura, reifica e destrói a subjetividade e os corpos dos réus, sendo a principal fonte de crimes.
Somos o terceiro país que mais encarcera, mas somos o campeão em HOLOCAUSTO humano, em destruição de nossos jovens proletários.
Neste livro, listo algumas das abominações do sistema penal e do sistema prisional e também medidas para humanizar o Estado, especialmente abolir as penas fechadas e melhorar gradualmente as prisões, para superá-las.
IHU – Como a perspectiva punitivista com projetos como o “pacote anticrime” denota uma visão penal hegemônica no Brasil? Quais são os limites deste paradigma?
Luiz Francisco Fernandes de Souza – A perspectiva punitivista é, no fundo, o ódio da Casa Grande, dos descendentes de donos de escravos e dos bilionários e multimilionários, da bancada da Bala e da Universal-Assembleia (sucursal do Tea Party), puro fascismo. O mesmo que há nos EUA, na extrema direita de Trump e do Partido Republicano. Os limites? Não há limites. Há um holocausto-gulag-campo de concentração com cerca de um milhão de pessoas (presos, mais menores e doentes nos manicômios).
IHU – O senhor tem acompanhado o trabalho da Pastoral Carcerária no Brasil?
Luiz Francisco Fernandes de Souza – Eu acompanho pela leitura. Aprovo tudo. Só gostaria que fossem mais radicais, mais incisivos, mas toda a linha da Pastoral é boa, é garantista e abolicionista.
IHU – Qual tem sido a contribuição do pontificado de Francisco no debate concernente aos direitos humanos?
Luiz Francisco Fernandes de Souza – Francisco disputa com São João XXIII, na minha opinião, o posto de melhor Papa. Os discursos de Francisco nos encontros com os Movimentos populares são ótimos e também seus textos sobre ecologia. Estou rezando para que o Papa faça uma encíclica que endosse claramente o socialismo democrático, participativo, como opção e ideal histórico atual da Igreja, colocando a cúpula da Igreja em ótima sintonia com a Aliança Progressiva e a Internacional Socialista, que juntam uns 200 partidos de esquerda, trabalhistas e socialistas democráticos. Assim, será possível converter a Organização das Nações Unidas – ONU em um Estado Mundial, Confederação, abolir paraísos fiscais, criar tributos tipo a Taxa Tobin, implantar relações de cooperação, comércio justo, diminuir armas até abolir ou ter número ínfimos – e isso vale para as armas pessoais.
IHU – De onde veio a inspiração de relacionar temas da justiça social, ambiental e humana ao cristianismo, estratégia que aparece em vários livros de sua autoria?
Luiz Francisco Fernandes de Souza – Eu fui noviço jesuíta, em 1985. E escrevi o livro “Socialismo, utopia cristã”, com prefácio de Frei Betto e apresentação de Dom Moacyr Grecchi (minuta feita por Clodovis Boff). É a linha que sigo desde criança.
IHU – Um tema correlato aos direitos humanos é o da renda básica universal. Como o senhor vê esse tipo de política econômica e social? Qual seria o impacto em um país como o Brasil?
Luiz Francisco Fernandes de Souza – Defendo todo tipo de ajuda estatal. O Produto Interno Bruto – PIB é apenas algo como entre um sétimo a um décimo das riquezas. Para exemplificar, pense, por exemplo, em pontes construídas há 50 anos. Elas fazem parte do PIB de 50 anos atrás, mas ficam como riquezas. A estrada tem um valor. A reparação e conservação vai fazer parte do PIB, mas o valor da estrada fez parte do PIB de quando foi construída, todas essas coisas são riquezas, mas são integram o PIB.
Neoliberais tentam reduzir tudo a PIB para evitar tributação, mas há muito supérfluo dando sopa para um bom Estado. Piketty é a maior autoridade em tributo. O PIB mundial hoje é de 100 trilhões de dólares. As riquezas, porém, chegam a uns 700 trilhões. O PIB do mundo, em 2007, era de 56 trilhões de dólares. No relatório Global Wealth Report 2021, do Banco Credit Suisse, consta que, no mundo, há 56,1 milhões de pessoas que tem mais de um milhão de dólares (108 mil, somente no Brasil). As riquezas somadas dos 56,1 milhões de milionários chega 418,3 trilhões de dólares. Menos de três mil pessoas têm fortunas acima de 500 milhões de dólares.
Conclusão: há muito, muito, muito para um Estado redistribuidor, que tribute ricos, e tire supérfluos, para criar Renda básica e ampla proteção ao trabalho, para aumentar demanda efetiva e fazer florescer a economia real, de micros e pequenas empresas. Piketty examina com minúcias as riquezas da França (é francês) e dos EUA e mostra a fartura de matéria para tributar, especialmente mansões não produtivas, pura ostentação, carrões, jatinhos, e outras gracinhas e brinquedinhos dos ricos, enquanto os pobres morrem de fome. Os ricos são mestres em ocultar, para fugirem da tributação. Logo, o PIB deve ser 12 vezes maior, pois basta acrescer os paraísos fiscais e o total oculto da sonegação, que chega a dezenas de trilhões. Ricos são ultra peritos em ocultar o patrimônio.
O Estado poderia tributar muito mais, como explicou Piketty, poderia tributar e colher quatro trilhões, renegociar a dívida pública e cancelar boa parte, e aí termos ótimas estatais, ampla educação pública, ampla saúde pública, amplo setor público, infraestrutura pública econômica que ajuda cada empreendedor pobre, cada microempresa familiar, tudo com Reforma agrária agroecológica.
Defendo a transformação (manutenção e melhora) da Bolsa Família, para termos uma Renda Básica e Cidadã, mas em todo o mundo. Uma Renda Básica misto de Renda Cidadã, que, no Brasil, é o Bolsa Família. O Bolsa Família deve ser expandido e complementado por vários outros tipos de ajuda estatal, com base no Cadastro Único. Ajuda para enterros, ajudas para absorventes, ajuda para material escolar, microcréditos, abundância de cursos, orientação técnica, ajuda para gás, expansão para gratuidade de transporte público etc.
A CNBB apoiou o projeto de lei do Senador Eduardo Suplicy, hoje convertido em Lei Suplicy, que visa estabelecer gradualmente uma renda cidadã, uma renda básica que o Estado pagaria mensalmente a todas as pessoas, apenas por existirem, por serem pessoas, para abolir a miséria.
Da mesma forma, a CNBB apoiou o projeto da Bolsa Família (atingindo, hoje, mais de 50 milhões de pessoas), tal como aprova os projetos de expansão e melhoria da Bolsa Família.
O Bolsa Família deveria ser expandida, tendo um leque maior de ajudas, inclusive para enterros, gás de cozinha, combinado com acesso gratuito a transporte público etc. Autores como Philippe Van Parij pesquisaram bem isso. O correto é termos uma Bolsa Família mundial, ligada a um Estado mundial.
A Renda Básica ajuda na ampliação do salário-mínimo e no encurtamento da jornada de trabalho, tal como na criação e manutenção de milhões de pequenas e microempresas familiares de serviços, comércio, artesanato, artes e produção em geral. Michał Kalecki e Keynes, como Krugman, Paul Singer, Belluzo e outros explicam bem a sinergia e como a Bolsa ajuda na criação de mercado popular simétrico, medido, com proteção e regramento estatal bom.
IHU – Em sua trajetória profissional o senhor sofreu perseguições de políticos que ocuparam cargos importantes em diferentes níveis do Executivo, inclusive federal. Como foi esse período? Quais foram as principais dificuldades?
Luiz Francisco Fernandes de Souza – Graça a Deus, nunca fui punido. Expliquei o que fiz em uns 40 procedimentos e fui inocentado no final. Hoje, já estou no Abono Permanência, poderia estar aposentado desde 2019, pois comecei a trabalhar aos 14 anos, como menor aprendiz no Banco do Brasil. Tenho quase 40 anos de serviço público.
IHU – Por que o Conselho Nacional do Ministério Público tentou suspender o senhor anos atrás? O que aconteceu? Há ainda desdobramentos disso?
Luiz Francisco Fernandes de Souza – O caso número “1” do Conselho Nacional do Ministério Público foi meu. E nunca tive outro. Foi arquivado, no final, sem condenação alguma.
IHU – O senhor é conhecido por manter uma vida austera, longe das extravagâncias que caracterizam parte de membros do Ministério Público. De onde vem esse modo de ser?
Luiz Francisco Fernandes de Souza – Fui para São Leopoldo no início de 1983, para ingressar no pré-noviciado. Entrei no Noviciado (da Companhia de Jesus) em 1985. Infelizmente fui atropelado e tive muitos ossos quebrados, pondo platina. A saúde ficou horrível e tive que sair. Eu tinha pedido demissão no Banco do Brasil e parei os estudos. Não podia ficar anos esperando para tirar a platina e ficar bom de saúde. Então, retomei concursos e estudos e me formei em Direito, tive pós-graduação e ingressei no Ministério Público Federal – MPF. Estou feliz onde estou. Já dei mais de 100 mil pareceres pro misere e garantistas e tentei influenciar minha instituição por dentro. Critiquei sempre a Lava Jato, Deltan e Moro. E tenho verdadeira abominação por Bolsonaro.
IHU – Deseja acrescentar algo?
Luiz Francisco Fernandes de Souza – Escrevi já treze livros, catorze com o primeiro, que irei reeditar até fevereiro. Tento mostrar que um bom cristão deve ser socialista-democrático, tendo como exemplos países como Noruega, Irlanda, Islândia, Dinamarca, Nova Zelândia e o que houver de melhor nos mais de 200 partidos socialistas democráticos do mundo.
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