Patologização de pessoas transsexuais: quando a chaga social é projetada no âmbito da individualidade

por Prof. Dr. Ângelo Oliveira-IFCE/Campus Quixadá

A dialética orgânico-social estrutura a síntese constitutiva do sujeito. É mister destacar que os polos formadores de um par dialético não se dissipam por meio do tensionamento antagônico inerente ao fenômeno. Em outras palavras, a dinâmica gerada pela contradição entre tese e antítese produz a síntese, que é a superação desses extremos opositores. No entanto, superar não significa suplantar, ou seja, a síntese incorpora em si as instâncias da contradição e confere-as uma nova forma.

Nessa direção, embora saibamos que somos seres sociais, este fato não nega ou exclui a base biológica a qual se fundamenta a vida. Essa condição orgânica é a própria vida em sua forma primeira. Contudo, tal realidade seria insuficiente para assegurar a existência humana, posto que sua condição de vida não é dada a partir da esfera meramente biológica. E exatamente por essa necessidade mulheres e homens produzem um acervo cultural conferindo-lhes assim sua “natureza” social.

O campo da sexualidade humana, não é diferente das questões acima levantadas. O sexo pode ser compreendido enquanto unidade biológica socialmente produzida para a compreensão humana de um elemento orgânico. Já a sexualidade nasce das construções sócio-históricas a das múltiplas relações constitutivas das seguridades humanas em interface com seu aspecto universal. De acordo com Rocha e Pozzetti (2016, p. 3):

Para a biologia, o que determina o sexo de um ser humano são seus órgãos reprodutores. Entretanto, isso não define o comportamento masculino ou feminino de alguém. O sexo é um critério biológico, enquanto o gênero é um critério social. O primeiro refere-se às células reprodutivas de alguém, enquanto que o segundo refere-se à forma de expressão social da pessoa.

A orientação sexual de uma pessoa se situa no campo do desejo relacional. Ou seja, denota por quem se desenvolve interesse afetivo e sexual. Se o despertar de indivíduo se dirigir para alguém do mesmo sexo biológico trata-se de uma orientação que se situa no campo da homossexualidade. Se o interesse relacional se volta para o sexo oposto, vê-se diante de uma suposta heterossexualidade. Cumpre destacar a impossibilidade de reduzirmos a orientação sexual a uma lógica binária expressa por meio da dualidade heterossexualidade/homossexualidade. Antes, as formas de vivência da sexualidade são fluidas, transitórias e contraditórias.

No caso do gênero, se um indivíduo se identifica com o sexo biológico que possui, o entendemos como uma pessoa cisgênero. Porém, se este não se enquadra nas determinações sociais que convencionam determinado sexo e gênero, estaríamos diante de pessoas transexuais ou travestis. É importante destacar que essa condição de existência não tem a ver com procedimentos cirúrgicos que proponham a redesignação sexual.

Frente a configuração de uma sociedade pautada por valores padronizadores e excludentes, que beneficia a um grupo em detrimento da opressão dos que não se encaixam em seus padrões, produzem-se inúmeros mecanismos de legitimação da violência. Dentre esses dispositivos encontra-se o que na ótica de Michel Foucault pode ser conhecido como biopoder.

Os organismos oficiais de saúde por meio de seus dispositivos tais como manuais, orientações, notas técnicas e outras normativas, utilizam-se desse biopoder para classificar e aprisionar os sujeitos desviantes em um lugar de impotência. Patologias e rótulos são suturados ao sujeito por meio de laudos e diagnósticos incapacitantes.

A exemplo disso observamos que no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais-DSM-5, estabelece que os critérios diagnósticos para a disforia de gênero[1] são a “incongruência acentuada entre o gênero experimentado/expresso e o gênero designado de uma pessoa, com duração de pelo menos seis meses, manifestada por no mínimo dois dos seguintes:”

1. Incongruência acentuada entre o gênero experimentado/expresso e as características sexuais primárias e/ou secundárias…

2. Forte desejo de livrar-se das próprias características sexuais primárias e/ou secundárias em razão de incongruência acentuada com o gênero experimentado/expresso…

3. Forte desejo pelas características sexuais primárias e/ou secundárias do outro gênero.

4. Forte desejo de pertencer ao outro gênero (ou a algum gênero alternativo diferente do designado).

5. Forte desejo de ser tratado como o outro gênero (ou como algum gênero alternativo diferente do designado).

6. Forte convicção de ter os sentimentos e reações típicos do outro gênero (ou de algum gênero alternativo diferente do designado).

B. A condição está associada a sofrimento clinicamente significativo ou prejuízo no funcionamento social, profissional ou em outras áreas importantes da vida do indivíduo (APA, 2014, p. 452-453).

Como podemos perceber, o manual é mais uma tentativa patologizante que busca impor um lugar de adoecimento àqueles que ousam subverter a ordem naturalizante da heterossexualidade. Quando o instrumento afirma que “o desejo de livrar-se das próprias caraterísticas sociais primárias”, o manual diagnóstico induz ao pensamento de que o gênero é biológico e por isso deve estar naturalmente alinhado ao sexo apresentado pelo sujeito.

Diante dos pontos destacados, levantamos a indagação: o que haveria de normalidade na negação das possibilidades de existência humana que a reduz a uma lógica castradora e binária? A quem servem os modelos de sexualidade hegemônicos? É necessário, pois, atentar para o fato de que as tentativas de submissão e subjugamento do outro podem revelar para além da inabilidade em lidar com a diferença, a expressão da luta pela permanência de uma estrutura de poder que garante os privilégios históricos de um modelo social erigido sob os ditames machistas e da heterossexualidade compulsória. Revela-se, portanto, o caráter doentio de uma sociedade ilusória que impõe aos indivíduos a introjeção e a reprodução de seus males e sofrimentos.

REFERÊNCIAS

American Psychiatric Association. Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais DSM-5. tradução: Maria Inês Corrêa Nascimento et al. 5. ed. Porto Alegre, Artmed, 2014.

ROCHA, N. P. P.; POZZETTI, V. C. O meio ambiente do trabalho dos transgêneros. Anais do SICASA e ANPPAS Amazônia. Anais. Manaus (AM) UFAM/ANPPAS, 2016.

ROCHA, N. P. P.; POZZETTI, V. C. A patologização da identidade “trans”: uma violação aos direitos fundamentais. Revista DIREITO UFMS | Campo Grande, MS | v.4 | n.2 | p. 175 – 185 | jul./dez. 2018


[1] Termo utilizado pelo DSM-5 para caracterizar pessoas transexuais em uma perspectiva clínico-patológica.

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