Brasil tem pelo menos 27 movimentos de camponesas

Levantamento do De Olho nos Ruralistas identificou organizações onde as mulheres aparecem já no próprio nome, no feminino; esse número ainda não inclui os braços setoriais de outros movimentos, como o MST; elas lutam por território, manutenção das culturas tradicionais e igualdade de gênero

Por Nanci Pittelkow e Luma Prado, em De Olho nos Ruralistas

Desde 1981, mulheres do campo, das florestas e das águas criaram pelo menos 27 organizações especificamente femininas, com o gênero embutido no próprio nome. Entre elas estão o Movimento das Mulheres Camponesas, a Articulação das Mulheres Pescadoras, o Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coço Babaçu, as Raizeiras do Cerrado e o Movimento da Trabalhadora Rural do Nordeste.

Essas organizações “no feminino” reúnem camponesas dos mais diferentes perfis, de artesãs a pescadoras, e abrangência territorial. São movimentos, coletivos, associações e articulações locais, regionais e nacionais, ligados ao território e aos viveres tradicionais, e que incluem ações e discussões como agroecologia ou preservação ambiental. Em todos eles a questão da equidade de gênero está na pauta.

Esse levantamento inédito ainda não inclui os braços setoriais — de gênero — de outras organizações, como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), dos quais trataremos ao longo de uma série de reportagens. Apenas os movimentos que têm as mulheres no próprio nome. Confira a lista:

MOVIMENTOS DO SÉCULO 21 TENDEM A FOCAR EM ATIVIDADES ESPECÍFICAS

Se, nos anos 90, eles surgiram com um caráter mais amplo e abrangente, na linha de “rede de mulheres”, “grupo de trabalhadoras”, a partir dos anos 2000 eles se localizam e fortalecem atividades mais específicas, ligadas ao extrativismo ou `produção artesanal. É o caso de Sergipe, com os movimentos das marisqueiras e das catadoras de mangaba. “Algumas das mulheres fazem parte dos dois movimentos”, diz Alícia Santana Salvador, coordenadora do Movimento das Catadoras de Mangaba de Sergipe.

Entre as organizações mais conhecidos está o Movimento das Mulheres Camponesas (MMC), fundado em 1995 e presente em todas as regiões e em dezessete estados. Ele reúne arrendatárias, meeiras, ribeirinhas, posseiras, boias-frias, extrativistas, pescadoras artesanais, sem-terra, assentadas, entre outras. Em comum, a luta pela propriedade da terra e o acesso aos bens naturais.

Outra organização mais conhecida é a das Quebradeiras de Coco Babaçu, que lançaram o movimento interestadual em 1991, partem da demanda pelo direito ao babaçu livre, uma planta aproveitada integralmente na casa e na subsistência, ao mesmo tempo que se combate a invasão do território. A luta das quebradeiras vem acontecendo de geração em geração, como este observatório já noticiou, e hoje reúne mais de 300 mil mulheres. O programa De Olho na História também já contou a história de uma de suas principais articuladoras, Dona Dijé.

Atuar com organizações em rede é um aspecto que deve ser fortalecido e, muito provavelmente, incorporado às formas de atuação de outros movimentos, conforme as líderes ouvidas pela reportagem. “Principalmente nesse contexto tão hostil em que vivemos hoje”, opina Vilênia Venâncio Porto Aguiar, assessora da secretaria de mulheres da Contag. “

Os movimentos com nome e presença feminina também são tema da primeira edição de 2022 do De Olho na Resistência, programa semanal de notícias sobre os povos do campo.

‘AS MULHERES TÊM CUIDADO COM O TODO’, DIZ PESQUISADORA DA CONTAG

Além do protagonismo de criação de organizações como essas, as mulheres ampliaram ao longo dos anos sua participação nos movimentos já existentes, assumindo lideranças e criando núcleos voltados para as demandas e questões das camponesas. Para Lucineia Durães, dirigente nacional do MST, as ações mais radicais atualmente são protagonizadas por mulheres.

A assessora da Secretaria de Mulheres da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), Vilênia Venâncio Porto Aguiar, detalha certas características que distinguem a atuação das mulheres em seus meios, como a afinidade com a preservação, enquanto a lógica dos homens algumas vezes é mais monetária. “A mulher pega o quiabo que sobrou do quintal, coloca na sacola e vai vender na feira”, exemplifica. “Já para o homem, se a soja render mais, planta, coloca veneno e pronto”.

Ela lembra de uma conversa com uma mulher que hoje tem o maior banco de sementes da cidade dela, na região de Missões, no Sul do país. Eles tinham uma unidade diversificada, produziam um pouco de tudo. Quando os bancos prometeram crédito para incentivar a plantar soja, o marido resolveu aderir. “Ela pensou assim, ‘no meu pedaço ele não vai mexer. Se só tivermos soja, o que a gente vai comer?’”, conta Vilênia. A preocupação era com a fome dos filhos e a guarda das sementes era uma maneira de garantir a subsistência se a soja não desse certo. Vilênia, que também é pesquisadora, aponta: “As mulheres têm essa ligação com o cuidado com o todo”.

A história e ações de alguns desses movimentos serão contados pelo observatório ao longo dos próximos dias.

CAMPONESAS ORGANIZADAS CRIARAM A MARCHA DAS MARGARIDAS

Duas líderes emblemáticas já foram retratadas na editoria e no programa De Olho na História: Elizabeth Teixeira, nascida em 1925, e Margarida Maria Alves (1933-1983). Elas marcaram a história da luta das mulheres no campo. Foi a partir dos anos 80, com a redemocratização, o novo impulso dos movimentos sindicais e sociais e a maior difusão das pautas feministas e de igualdade de gênero, que as mulheres passaram a conquistar mais espaços e se organizar para pautas específicas. Em termos de representatividade, a ampliação progressiva da participação política das mulheres no meio sindical resultou na aprovação, em 1998, da cota mínima de 30% de mulheres nos cargos de direção da Contag, o que depois foi estendido às federações e sindicatos. A paridade de gênero na organização foi aprovada em 2013.

Extrapolando o movimento sindical, a 1ª Marcha das Margaridas aconteceu em 2000, reunindo 20 mil mulheres do campo em Brasília. O encontro acontece a cada quatro anos, sempre no primeiro ano de cada governo, para apresentar suas demandas e acompanhar a atuação do Estado em relação aos temas apresentados. “Na última marcha, as mulheres se recusaram a negociar com o governo Bolsonaro”, conta Vilênia Aguiar. “As pautas da marcha de 2019 foram apresentadas somente para a sociedade, pois sabíamos que não seria possível dialogar com esse governo”. De Olho nos Ruralistas acompanhou as manifestações de 2019.

Vilênia é autora da tese “Somos todas margaridas – Um estudo sobre o processo de constituição das mulheres do campo e da floresta como sujeitos políticos”. Ela conta que os temas foram se ampliando ao longo das décadas, indo da representatividade a questões como desigualdade, violência sexista, desenvolvimento rural sustentável, saúde, educação, autonomia econômica, agroecologia, segurança alimentar, proteção dos bens comuns. Outra característica da marcha é cada grupo caminhar com suas indumentárias, cantos e cores, cultivando suas identidades diversas.

Segundo a pesquisadora, outras organizações de mulheres podem se formar em breve. Na Bahia, mulheres das comunidades de Fecho e Fundo de Pasto já se reúnem para discussões e formações políticas para enfrentar a escalada de agressões às comunidades tradicionais no estado, além de combater a violência de gênero e a discriminação. No norte de Minas Gerais, entre os coletores de flores sempre-vivas que participam da Comissão em Defesa dos Direitos das Comunidades Extrativistas (Codecex), as mulheres já se reúnem em três comunidades, a partir das necessidades de cada região.

Imagem principal (De Olho nos Ruralistas/Reprodução): esta reportagem é destaque também do programa em vídeo De Olho na Resistência

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