Três alunos negros acusam o estudante José Evaristo Freitas de ameaça e injúria racial, além de comentários que remetem ao nazismo; em mensagem, ele disse: ‘Tu não é ariano, te coloco pra assar’
Por Rodrigo Castro, em O Globo
RIO – A mãe de um dos três alunos negros do Instituto Federal do Mato Grosso do Sul (IFMS) que acusam um colega de sala de aula de racismo e apologia ao nazismo afirmou, em carta, que o “sentimento é de impotência, de choro, ansiedade e dor”. Professora e mestranda em educação, ela desabafou sobre o preconceito racial no Brasil, criticou a forma como o caso é conduzido e relatou episódios contra seu filho, corroborando depoimento dele ao GLOBO.
“Vontade de dormir e só acordar quando o mundo estiver livre destas questões que buscam inferiorizar, simplesmente, por causa da cor da pele, e que em algumas vezes, o opressor também é vítima. Mas ao mesmo tempo entendemos que podemos transformar conceitos de inúmeras formas, dentre elas, com a discussão, denúncia, verdade e a reflexão sobre o assunto, e por isto resistimos, denunciamos e prosseguimos”, escreveu a mãe, que preferiu não se identificar para preservar o filho.
As vítimas acusam José Evaristo Diel Freitas, de 18 anos, de proferir ameaças e insultos preconceituosos tanto virtualmente como presencialmente por parte de José Evaristo Diel Freitas, de 18 anos. Em uma das mensagens, à qual O GLOBO teve acesso, o suspeito escreveu que “tu não é ariano, te coloco pra assar”. Também teria falado em “massacre” e “tortura”, embora seu pai — também seu advogado — negue.
A Polícia Civil investiga a denúncia após mães das vítimas registrarem um boletim de ocorrência no último dia 28. O caso é tratado inicialmente como ameaça e injúria racial. Segundo a delegada Fernanda Félix, titular da Delegacia Especializada de Proteção à Criança e ao Adolescente (Depca), “por ora, não existe materialidade para apologia ao nazismo”.
Na carta, a professora afirma que há “motivos suficientes para estar em alerta quanto ao assunto e denunciá-lo como foi feito”.
“Palavras-chave como nazismo, massacre, lista, negros, judeus, morte, assa, concentrar e entidade são suficientes para esta reflexão e ação das autoridades. Os campos de concentração nazistas não devem se repetir nem de brincadeira”, diz o texto.
A mãe menciona que o acusado se autointitulou nazista algumas vezes dentro do campus. Cita ainda que o estudante falou sobre um massacre ao menos uma vez e relata uma ameaça de morte nas proximidades do campus da instituição, o que vai de encontro ao depoimento da vítima.
No dia 24 de fevereiro, contou a vítima, o suspeito fez uma série de comentários racistas em uma lanchonete localizada a cerca de 500 metros do IFMS, onde alunos costumam comer. José Evaristo teria seguido um grupo de estudantes até o local, quando abordou uma menina se dizendo nazista.
— Ela olhou com espanto, e ele respondeu: ‘O que foi? Você é judia por acaso?’. Quando ela disse que sim, ele falou que podia ficar tranquila que ela seria a última a morrer. Apontou para mim e disse que eu seria o primeiro, porque sou maior e negro, então tenho mais massa escura. Em seguida apontou para o colega à minha esquerda e disse que ele seria o segundo por ser negro e menor. Depois apontou para um terceiro colega e não falou mais nada. E, no último, disse que ele deveria torturado — disse a vítima ao GLOBO.
A carta também repudia a maneira como o IFMS trata o ocorrido. A instituição disse inicialmente que, ao ser informada do episódio, a direção-geral do campus iniciou um processo de apuração e afastou, de maneira cautelar, o acusado. Mas destacou que não havia constatado a veracidade dos fatos.
“A dor das vítimas se repete a cada nova contação dos fatos e ainda mais quando percebe que a instituição diz que os fatos não são verídicos, conforme publicações em alguns meios de comunicação. Qual é a reflexão e a resposta que podemos entender diante desta afirmação? Não foi só o grupo de alunos negros que ouviu os relatos do acusado dentro do campus e nem fora dele. Ao Instituto falta poder de polícia, mas nas respostas poderia existir bom senso e empatia, sem medo de ameaças, mas firmados na verdade, nas testemunhas e na ética”, diz a mãe.
O IFMS se retratou sobre a nota e publicou novo posicionamento, no qual afirma que o acusado encaminhou um pedido de transferência da instituição e que a polícia foi comunicada pelos pais dos alunos e investigava o caso. Também essaltou que oferece assistência psicológica e social aos envolvidos e que estão sendo preparadas ações de conscientização.
Conversa sobre Apartheid
O advogado José Freitas, pai de José Evaristo, afirmou à reportagem que as acusações apresentadas carecem de provas. Ele disse ainda que a frase ‘tu não é ariano’ teria sido dita pelo filho após ser incitado por um grupo de colegas durante uma partida online de videogame.
Ele onfirmou que um dos episódios que teria dado origem à acusação aconteceu em uma lanchonete nas proximidades da escola, após uma aula sobre economia e politica social. Relata que um deles teria dito que o Apartheid — regime segregacionista implementado na África do Sul — teria sido pior que o Holocausto, o que teria feito seu filho intervir na conversa.
— Ele disse que não era bem assim. Disse que todos ali poderiam morrer no Holocausto por ter sangue misto. Meu filho se incluiu — afirmou. — É muito triste usarem o fato de ele ter ascendência alemã por parte de pai e colocarem a pecha de nazista. O crime de racismo se aplica a todas as raças. Nós somos seres humanos.
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Leia a íntegra da carta:
Fiquei perplexa nesta terça-feira (15 de março) com as publicações na mídia campo-grandense e até no Estado de Mato Grosso do Sul em relação ao caso de racismo e a apologia ao nazismo dentro e nas imediações do Instituto Federal de Mato Grosso do Sul. Desde o dia 24 de fevereiro de 2022 estamos em busca da resolução da situação, pois a ameaça aconteceu fora da unidade escolar, porque os alunos teriam aula no período vespertino e saíram para almoçar.
A auto intitulação de nazista foi dita algumas vezes dentro do Campus pelo acusado, conforme o relato das vítimas e de outros acadêmicos/as. A fala de massacre foi dita pelo menos uma vez, também com testemunhas. A ameaça de morte aconteceu na conveniência no dia 24 de fevereiro de 2022, nas proximidades da instituição. O acusado, que não foi convidado e nem tinha amizade com o grupo, (a relação se deu apenas para a realização de um trabalho escolar que não foi concluída), acompanhou os estudantes até o local da refeição. No caminho, as vítimas foram à frente e o acusado mais atrás. Para iniciar uma conversa com uma das acadêmicas mais uma vez se declarou nazista, conforme testemunha. Ela ficou assustada. Ele teria questionado se ela era judia. A jovem afirmou que pensava ser por conta do sobrenome. Então, conforme o relato das vítimas, ele afirmou com naturalidade, que ela seria a última pessoa da lista, porque o primeiro seria o adolescente de 18 anos e apontou para o mesmo. O motivo para o homicídio seria o fato de ele ser negro e grande. O segundo seria morto por ser negro e pequeno, e prosseguiu apontando para o terceiro, o quarto e último seria torturado, segundo a fala do acusado.
Em outro momento, num aplicativo de Internet, semelhante ao WhatsApp, o jovem, falando com outro aluno e identificado por um codinome escreveu que um outro estudante por não ser ariano seria posto para assar. Em outro momento disparou: você apenas tem que se “concentrar” e ainda, que não venceriam uma entidade. As mensagens foram apagadas dias depois, após as denúncias e registros de boletins de ocorrência. Os fatos podem ser confirmados por prints das conversas. Se analisarmos um pouco da História do Holocausto Nazista, encontramos motivos suficientes para estar em alerta quanto ao assunto e denunciá-lo como foi feito. Palavras-chave como: nazismo, massacre, lista, negros, judeus, morte, assar, concentrar e entidade são suficientes para esta reflexão e ação das autoridades. Os campos de concentração nazistas não devem se repetir nem de brincadeira. Sobre isto, Theodor Adorno clama para que Auschwitz não se repita (este foi o maior campo de concentração do holocausto nazista. Mais de 6 milhões de judeus e mais de 20 mil negros foram “sacrificados” lá). A ideia de supremacia racial, a discriminação, o racismo, o nazismo, a omissão em relação a estes casos e todas as formas de inferiorização já deveriam ter sido superadas pela sociedade brasileira, principalmente, começando nas famílias. Quando a família autoriza e reproduz o preconceito, o racismo, a discriminação, o pensamento e a personalidade autoritária contribui para a permanência da sociedade racista. Por exemplo, quando uma mãe questiona a cor de alguém de maneira subjetiva, repugnante, e diz que não fala com gente desta cor, ela permite, consolida, diz que pode inferiorizar. A ideia retrógrada e lamentável nos remete ao racismo científico, ao passado.
No momento em que qualquer instituição de ensino afirma que o assunto é brincadeira, omite fatos e informações, ela se mostra do lado do opressor ou da opressora. Um estabelecimento de ensino mostra quem ele é e também contribui para a consolidação de todas as inferiorizações. Criar espaços de discussões dentro da escola com ações pedagógicas é tão urgente quanto o ensino dos componentes curriculares, mas só isso não é suficiente. Os espaços educacionais precisam pensar e discutir sobre a “desbarbarização da humanidade”. Esta, conforme Adorno (1995), seria uma precondição imediata de sobrevivência. Para ele, a escola/instituição precisa se libertar dos tabus que a barbárie reproduz. Assim, Adorno conclui que a escola/instituição quando está consciente das barbáries e do que estas são, é capaz de trabalhá-las imediatamente (ADORNO, 1995). O que ocorreu no Campus do IFMS da capital do Estado, é um crime contra os Direitos Humanos. A dor das vítimas se repete a cada nova contação dos fatos e ainda mais quando percebe que a instituição diz que os fatos não são verídicos, conforme publicações em alguns meios de comunicação. Qual é a reflexão e a resposta que podemos entender diante desta afirmação? Não foi só o grupo de alunos negros que ouviu os relatos do acusado dentro do campus e nem fora dele. Ao Instituto falta poder de polícia, mas nas respostas poderia existir bom senso e empatia, sem medo de ameaças, mas firmados na verdade, nas testemunhas e na ética.
Em conversa na manhã desta quinta-feira (17 de março), o IFMS disse que elaborou uma nota pedindo desculpas pelo erro da Assessoria de Imprensa, ao divulgar informações incompletas e afirmar que os fatos não são verídicos. A reunião foi assistida por testemunhas.
A comissão para a análise do caso foi criada a pedidos e pressão das mães que se fizeram presentes no Campus, com observação para o convite aos servidores que entendam a discussão sobre o nazismo e o racismo. Pedimos ainda que a segurança fosse garantida dentro do local, mas, conforme podem relatar os acadêmicos, e eu, não houve mudança de rotina no portão de entrada, neste período.
A Instituição desde o primeiro momento em que recebeu a denúncia por e-mail na noite do dia 24 de fevereiro, cogitou que a situação era uma brincadeira. Quanto à “brincadeira” destacamos com Brito e Nascimento (2013) “que o racismo não se manifesta somente pela via do discurso verbal. Com frequência, o que comunica aquilo que a palavra não poderia dizer são os gestos, olhares, brincadeiras, ações que pronunciam um vasto repertório capaz de (re) produzir marcas subjetivas nas crianças em seu convívio escolar. ” Cogitaram ser conversa de adolescentes, porém estavam apurando as informações e que a família do acusado havia sido chamada para levá-lo para casa, no dia em que leram a denúncia e no primeiro dia útil após o carnaval.
Outro ponto que podemos pensar é sobre a conduta da Instituição em afirmar que o Nazismo estava sendo estudado pela turma o que não é comprovado pela ementa do curso. Foi solicitado o planejamento do professor, verbalmente, e não foi entregue. Depois, formulamos o pedido por e-mail. Desse modo, busca maneiras de justificar a prática do estudante acusado ao invés de criar meios de fazê-lo pensar e analisar sobre os fatos ocorridos junto com a família. Desta maneira, perpetuam na sociedade, situações como a ocorrida. O discurso de quem diz que tem negros na família e por isto não são racistas não se sustenta. A religiosidade também não garante que uma pessoa seja antirracista.
A Lei 10.639, foi sancionada em 2003 ao alterar a LDBE (Lei de Diretrizes e Bases Da Educação) e estabeleceu necessidade de se trabalhar conteúdos de História e Cultura Afro-brasileiras na educação nacional. A nova legislação estabeleceu ainda o Dia 20 de novembro como o dia da Consciência Negra. O avanço é tributado às reivindicações e denúncias do movimento social negro. Cinco anos depois, a Lei 11645/2008 alterou a lei 10639/2008, que manteve a obrigatoriedade do estudo da história e cultura afro-brasileira, e acrescentou a cultura dos povos originários. Ambas admitem a normatividade e inclusão das temáticas no currículo escolar. Destaca-se que o ensino pode estar inserido em todos os componentes curriculares. Considerando o currículo como predominante, o ensino para uma educação antirracista deve envolver o ambiente, a linguagem oral, a postura corporal, os sentimentos, as discussões, as respostas, as falas e a empatia de colocar-se no lugar da outra pessoa.
O Brasil é um país racista desde a abolição do período escravocrata e ainda acredita em mitos, como por exemplo, o mito da democracia racial. Uma vertente que afirma que no Brasil não existe racismo. É necessária esta desconstrução.
A sociedade brasileira demonstra intolerância em diversos segmentos sociais cotidianamente. Há expressão de violências contra as mulheres, os homossexuais, os negros/as, cigano/as, desfavorecidos/as economicamente e outros grupos. Faz-se necessário que seja dada maior atenção para o conflito diante de práticas tão inaceitáveis quanto as citadas neste momento. A verdade é essencial.
Como mãe de um dos jovens ameaçados estamos num período em que mescla-se sentimento de impotência, de choro, ansiedade, dor, vontade de dormir e só acordar quando o mundo estiver livre destas questões que buscam inferiorizar, simplesmente, por causa da cor da pele, e que em algumas vezes, o opressor também é vítima. Mas ao mesmo tempo entendemos que podemos transformar conceitos de inúmeras formas, dentre elas, com a discussão, denúncia, verdade e a reflexão sobre o assunto, e por isto resistimos, denunciamos e prosseguimos.
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Protesto no Parque da Redenção, Porto Alegre. Foto: Sul21