Chacinas: a perversa face do racismo de Estado. Por João Paulo Ayub Fonseca

Barbáries como a do Rio expressam política de extração de almas: corpos negros são reduzidos a matéria-prima e, logo, descartáveis. Visam fragmentar periferias; torná-las dividendo eleitoral e combustível a projeto de nação adoecido

Em Outras Palavras

O Brasil é o país que naturalizou a chacina. Constatação que não precisa de maiores evidências, já que a materialidade do fato está estampada em toda parte e qualquer um pode ver. A chacina está se transformando no projeto político de maior sucesso entre os governantes dos estados mais populosos da federação, como Rio de Janeiro e São Paulo, assim como daquele que foi eleito na última eleição para o governo federal.

Rio de Janeiro, 24 de maio de 2022, mais de 20 mortos: o mais recente episódio de matança, desta vez na comunidade da Vila Cruzeiro, zona norte do Rio de Janeiro, foi descrito pelo governador do estado como uma grande “demonstração de força”. Dias antes, em São Paulo, o atual prefeito orientou a prática policial através de um “protocolo” que tem ares de castigo exemplar: “se levantar a arma, levará bala da polícia”. No âmbito federal, os responsáveis pela chacina do Rio foram parabenizados pelo presidente em mais um gesto que edifica sua agenda eleitoral.

O Brasil é um país que devora seus filhos. Essa é uma marca que se atualiza a cada segundo, repetição interminável. O assassinato promovido pelo Estado se tornou a essência e o ser de um projeto de nação cuja originalidade maior e incontestável é a atividade da extração. A extração do pau-brasil levada a cabo pelos primeiros colonizadores inaugurou essa prática que nos define até hoje. Extraímos a cada dia, para além do que constitui as riquezas do solo, do subsolo e das florestas, os corpos de parte da população, uma porção de sangue destinada a abastecer a maquinaria do poder soberano brasileiro. Extração de almas.

A brutalidade que incide sobre a vida no país consiste na transformação radical dos corpos em matéria-prima produtiva e descartável. No entanto, desta vez está em jogo não somente o alimento que abastece as engrenagens das forças produtivas do grande capital, corpos que fornecem a energia das máquinas nas fábricas, computadores e redes virtuais; o corpo extraído nesta nova economia do poder é aquele que se expõe totalmente nu e desprotegido diante dos canos do fuzil. Sua matéria, reduzida a pedaços de carne, mancha de vermelho as vestes de um poder que consiste em fazer morrer setores marginalizados da população.

Este é o mais destacado projeto nacional: um projeto de soberania biopolítica sedimentado através de um pacto selado entre membros de grupos políticos profundamente enraizados em práticas criminosas. Como resultado, a política se tornou um jogo infame estabelecido num plano obscuro, onde também se observa a cumplicidade passiva das massas amedrontadas e domesticadas. Decide-se neste arranjo mortífero a vida que deve viver e aquela totalmente descartável, legião de proscritos, feita de pobres, pretos e favelados, em sua maioria alijados das estatísticas consideradas relevantes no contexto econômico mundial.

Michel Foucault identificou a operação desse poder de soberania através da combinação do racismo com o poder do Estado. Um dispositivo político cuja essência é uma prática antiga, velha conhecida de todos nós. Assim, entranhado em cada micropedaço da nossa história, o racismo se transforma em “racismo de Estado”. No curso proferido em 1975-76 no Collège de France, intitulado Em defesa da sociedade, diz Foucault:

“Com efeito, o que é o racismo? É, primeiro, o meio de introduzir afinal, nesse domínio da vida de que o poder se incumbiu, um corte: o corte entre o que deve viver e o que deve morrer. No contínuo biológico da espécie humana, o aparecimento das raças, a distinção das raças, a hierarquia das raças, a qualificação de certas raças como boas e de outras, ao contrário, como inferiores, tudo isso vai ser uma maneira de fragmentar esse campo do biológico de que o poder se incumbiu. […] Essa é a primeira função do racismo: fragmentar, fazer cesuras no interior desse contínuo biológico a que se dirige o biopoder.”

Acontece que, no interior do dispositivo de poder consolidado pela forma política do “racismo de estado”, algo mais entra em cena. Um toque à brasileira, digamos assim, que acaba resultando num cenário assustador: policiais enraivecidos, armados e sedentos de carne e de sangue; protocolos militares explícitos que orientam o gesto mortífero. Uma força desenfreada que alimenta o circuito maligno sobre o qual investem agentes políticos na disputa pelo poder. O racismo de Estado se tornou no Brasil um dividendo eleitoral.

Qualquer sonho de futuro não poderia dar certo na medida em que estamos afundados em terra movediça encharcada de sangue. Estamos desde sempre marcados, à força das armas, pelo sangue derramado. Infelizmente, o Brasil não pode negar sua destacada originalidade no que se refere a produção de matéria-prima de sangue e de carne destinada a promover a combustão cotidiana no interior da máquina do poder. Este é o resultado do impacto desta força destrutiva presente em grande escala em cada esquina na periferia das cidades. Devemos reconhecer que a chacina se tornou uma prática que capitaliza os projetos eleitorais e fundamenta a imagem da soberania nacional.

Não há nada capaz de florescer sob o solo desta terra irrigada pelo sangue de alguns. E que fique bem estabelecido, não se trata de matança desordenada. O alvo é preciso: o catálogo dos grupos inferiorizados é fabricado com esmero desde a fundação do país. O resultado é a construção de um Estado em que a promoção da morte, paradoxalmente, deve fortalecer o corpo vivo da nação. Nas palavras de Foucault, ao expor a lógica subjacente ao racismo de Estado: “quanto mais as espécies inferiores tenderem a desaparecer, quanto mais os indivíduos anormais forem eliminados, menos degenerados haverá em relação à espécie, mais eu – não enquanto indivíduo mas enquanto espécie – viverei, mais forte serei, mais vigoroso serei, mais poderei proliferar.”

Para boa parte da população, tudo se passa na esfera fechada de um grande espetáculo midiático. A operação de eliminação dos “males” sociais é cirúrgica: uma metodologia que tomou de empréstimo o modelo de combate às pragas que avançam sobre os lares consagrados dos cidadãos de bem. Temos, então, o retrato de uma curiosa perversão: como aqueles que admiram e contabilizam o efeito do veneno sobre as pragas mortas e espalhadas pelo chão, as imagens dos corpos que enchem aos poucos o Instituto Médico Legal das grandes cidades servem ao deleite dos que apostam nos projetos políticos fundamentados no “racismo de Estado”.

Enfim, cá estamos num país cujo nome, oriundo da extração do pau-brasil, pode se reafirmar num repetido gesto brutal de eliminação da vida. O Brasil, país cuja essência é a extração, extrai dos corpos de sujeitos assassinados o combustível que sustenta a permanente construção de um projeto de nação adoecido. Pagamos todos o preço por quem faz da prática da chacina, operador fundamental do racismo de Estado, a política soberana da nação.

JOÃO PAULO AYUB FONSECA – É psicanalista e doutor em Ciências Sociais pela Unicamp com tese intitulada “Arte é sangue, é carne – a riqueza e a miséria da palavra no romance de Graciliano Ramos”. Autor de Introdução à analítica do poder de Michel Foucault (Intermeios, 2015).

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.

twelve − 2 =