Por Luiz Marques, em Terapia Política
O psicanalista Bruno Bettelheim, ao recapitular o período em que esteve internado na condição de judeu em um campo de concentração nazista, afirma que nunca viu um soldado da SS (Schutzstaffel / Esquadrão de Proteção) gastar o tempo com maus-tratos aos prisioneiros – fora do horário de serviço, com o que contestou as interpretações que apontam o sadismo como motivo para a conduta dos funcionários do Fuehrer. Os estereótipos comportamentais não auxiliam no entendimento do fascínio despertado pela pulsão destrutiva do nazismo. O sentimento de dever imperioso pautava a tropa, que suspendia o juízo moral sobre o conteúdo do que os superiores determinavam fazer.
O neofascismo é um movimento de massas que se serve de tipos vários, entre os quais o guarda penal que matou o militante do PT, Marcelo Arruda, após invadir a festa de aniversário do petista com gritos de apoio ao homo demens que desgoverna o país. Detalhe: estava de folga ao cometer o ignóbil assassinato. A violência catártica, somada às próximas, joga água no moinho das covardias anticonstitucionais. A contribuição do bolsonarismo à extrema direita é uma overdose irracional.
O verde-amarelismo neofascista abriga indivíduos de diferentes complexidades psicológicas, coisa que confere um valor explicativo secundário às avaliações subjetivas. No vazio de utopias da chamada pós-modernidade, o que importa salientar é que o irracionalismo cava espaços em meio aos ressentidos de toda espécie. Isto é, entre os rebeldes a favor da ordem desigualitária. Estes, a exemplo do comandante Rudolf Hoess, responsável pelo extermínio de três milhões de pessoas em Auschwitz, mentem no testamento ao assegurar que nunca foram “homens com um mau coração”. Cabe aos que mantêm a capacidade de revolta, dos justos, pôr na coleira les bêtes humaines.
Uma militância de novo tipo despertou diante da incapacidade de a democracia tradicional atender as demandas, represadas, por reconhecimento. Militância que não discute política – contenta-se com falar mal dos políticos e das instituições (partidos e parlamentos), e dos movimentos progressistas que lutam por justiça social, com empatia em relação ao sofrimento do povo. Trata-se de pequenos burgueses inseridos em uma cultura de hierarquias rígidas, dominantes na microfísica do poder conquanto subordinados na macrofísica da dominação, que descobriram no iliberalismo o elã do super-homem nietzschiano para justificar suas existências medíocres, mergulhadas na alienação.
Com a derrota na Segunda Guerra, o fascismo clássico foi pulverizado na Europa. Na Itália, a seguir, reagrupou-se em torno da organização fundada com o sugestivo nome de Partido do Homem Comum (Uomo Qualunque). Na Alemanha, já em 1946, os grupos remanescentes do antissemitismo se concentraram no recém-criado Partido da Direita Alemã (Deutsche Rechtspartei). Em 1948, para surpresa geral, venceram as eleições em Wolfsburg (cidade onde funciona a Volkswagen, batizada em referência ao apelido de Hitler nos círculos militares, Wolf / Lobo), o que forçou as autoridades inglesas ocupantes a declarar nulo o pleito para a Prefeitura municipal. Em ambos os casos, as agremiações fizeram adaptações programáticas para sobreviver. Lobisomens voltam na lua cheia.
No Brasil, idem, com o esfacelamento do domínio colonial direto e a desagregação do escravismo, foi preciso redefinir o cosmo mental, moral e social em função do desenvolvimento do capitalismo e da inovadora esquadria de classes. Afloraram então outras formas econômicas de exploração e subalternização dos negros e mulatos. O racismo foi encoberto pelo mistificador “preconceito de não ter preconceito”, na expressão de Florestan Fernandes, no artigo “Nos marcos da violência”, in: A Ditadura em Questão (TAQ). Com efeito, sociedades estratificadas possuem uma massa de violência institucionalizada para legitimar a violência intersticial, oculta por trás dela. As dobras de estratificação persistentes nas mudanças estruturais necessitam trocar de roupa, rotinizar no cotidiano o novo direito positivo, dispersar pelo corpo social e unificar nos tentáculos do Estado.
Os atentados sob o fascismo histórico, assim como sob o colonialismo escravista, ancoravam-se nos poderes existentes em cada época. Em nenhuma das situações acima, a violência se restringiu à dimensão simbólica. Foi aplicada brutalmente contra os corpos. Mesmo nas “comunidades políticas plenamente desenvolvidas”, para evocar Max Weber, o monopólio da violência nunca é absoluto. Existem modalidades que não partem do poder político e, por conseguinte, são consideradas “ilegítimas”, segundo o Oxford English Dictionary. Algumas, exercidas com a permissão velada ou com o estímulo escancarado do próprio Estado. Não significa que haja uma quebra do monopólio estatal da violência, senão a autorização do topo hierárquico aos particulares aficionados do governo lesa-pátria e lesa-moralidade, em curso – para atos de agressão contra os oposicionistas.
Para o advogado Kakay, “a morte de Marcelo é retrato da violência que o presidente Bolsonaro impôs, e tem de ser responsabilizado por isso”. Ser vítima ou ser carrasco são as opções colocadas na conjuntura hegemonizada por apelos contínuos à necropolítica. Em tal contexto, o filósofo Vladimir Safatle conclui que o projeto bolsonarista é fazer de todo brasileiro um robô miliciano, indiferente à morte daqueles que são reputados como “inimigos”, a começar pelos identificados com os ideais do humanismo: “a milícia se torna o modelo fundamental de organização política”.
O Observatório da Violência Política e Eleitoral, integrado por pesquisadores do Grupo de Investigação Eleitoral (Giel), da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UniRio), confirma a tese. Houve aumento de 23% no número de episódios violentos no primeiro semestre de 2022, em comparação com a eleição de 2020. São 214 casos, culminando no crime do Paraná, contra 174 casos ocorridos há dois anos. A facilidade para a compra de pistolas e fuzis, somada à abertura de Clubes de Tiro, mecanizou e industrializou a violência em escala jamais vista. Tudo legalizado pela Polícia Federal (PF).
Há mais armas entregues à sociedade do que às Forças Armadas, hoje. Um escândalo, aos olhos do processo civilizatório. Não aos de governantes que praticam a violência caleidoscópica: devastação ambiental, ataques à pesquisa científico-tecnológica e às universidades, depredação do patrimônio público, eliminação de direitos trabalhistas e previdenciários, desindustrialização, desemprego, fome e fake news. Compreende-se que Engels, na Situação da Classe Operária na Inglaterra (1845), avalizasse o reverso proletário que pregava “guerra aos palácios, paz às choupanas”.
Com efeito, o neofascismo é a face política da violência incrustada nas políticas baseadas no neoliberalismo, que orienta as ações sob a governança da dupla Bolsonaro / Guedes, em favor das classes proprietárias e do capital internacional. Não é por nada que ainda encontram sustentação na parcela do empresariado neocolonialista, incapaz de conciliar uma proposta de desenvolvimento econômico com os vetores da democracia e da soberania nacional. Fazem o serviço sujo, com gosto. Por igual, não é por nada que se rodeiam de militares sem luzes e sem a mínima noção intelectual, cívica ou geopolítica do que significa defender os interesses nacionais, num mundo globalizado.
Nesta perspectiva, o ódio social cumpre um papel estruturante na distopia sinalizada pela destruição simbólica e física: a) dos sujeitos protagonistas por um mundo mais igualitário; e b) dos alicerces econômicos (Petrobras, Pré-sal, Eletrobras, Embraer, etc) para a edificação de um Estado de Bem-Estar Social. A intenção é impedir a materialização de uma república orientada para a felicidade da maioria, em vez de conduzida à cobiça privada. “O ódio é o substrato sensível dos protofascismos emergentes, na medida em que cauciona o estado de guerra permanente e inerente a essas formas de exacerbação autoritária, portanto, uma das principais figuras da disrupção atual da sociedade civil”, escreve com razão Muniz Sodré, em A Sociedade Incivil: mídia, iliberalismo e finanças (Vozes).
Vem do Nordeste a coragem e a consciência política que se recusa a aceitar o avanço da violência na “pátria amada”. Depois de ver a foto de um bolsonarista afixada, de maneira provocativa, na porta de seu gabinete na Assembleia Legislativa, com o gesto da arminha, uma deputada potiguara sentenciou. “Se eles querem nos meter medo, a gente se junta e se pinta de vermelho, ergue as nossas bandeiras, desfila nossas toalhas, põe adesivo no peito e honra a história de luta de Marcelo, de Dom, de Bruno, de Marielle, de todos os mortos pela intolerância política”, bradou a guerreira Isolda Dantas (PT/RN). Indignação na veia dos que se insurgem contra o poder das milícias.
***
Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.
Ilustração: Mihai Cauli e Revisão: Celia Bartone
Sobre o tema, leia também “A culpa” de Julio Pompeu.