Contato com agrotóxicos pode levar a dano do DNA, causar câncer, problemas renais e doenças no sangue

Projeto Brasil Sem Veneno apresenta mapa inédito sobre impactos do uso de agrotóxicos na saúde humana; revisão científica reúne pesquisas que detectaram a presença de agrotóxicos na urina, no sangue e em fios de cabelo de trabalhadores rurais e seus familiares

Por Schirlei Alves, especial para O Joio e O Trigo e De Olho nos Ruralistas

No auge da pandemia de Covid-19, quando as vacinas começaram a chegar, uma das peças de desinformação que mais circulou nas redes sociais e causou pânico foi a de que o imunizante poderia “alterar o DNA” humano. A informação falsa foi amplamente compartilhada por grupos negacionistas, que tinham a intenção de desqualificar a eficácia das vacinas e desencorajar a imunização em massa da população. Vários cientistas e especialistas da área deram entrevistas a veículos de comunicação e agências de checagem desmentindo a informação. Mais de um ano após o início da vacinação, os números de mortes e casos graves da doença despencaram.

Que a vacina não é capaz de alterar o DNA nós já sabemos. Mas existe um outro agente com potencial de causar, sim, dano ao DNA: o agrotóxico. É o que mostram 12 estudos presentes na revisão sistemática “Os impactos dos agrotóxicos na saúde humana nos últimos seis anos no Brasil“, publicada em março deste ano na revista científica International Journal of Environmental Research and Public Health. O trabalho é assinado pela imunologista e pesquisadora do Instituto Butantan, Mônica Lopes Ferreira, e outros oito pesquisadores da instituição.

A revisão sistemática analisou 51 pesquisas produzidas por 27 instituições públicas brasileiras. Os estudos tratam de possíveis doenças e impactos que podem ser causados por conta da exposição aos agrotóxicos. Todos os trabalhos foram revisados por pares e publicados em revistas científicas reconhecidas.

Muitos fazem um levantamento epidemiológico, que é baseado na coleta de dados e na quantificação do número de ocorrências de uma determinada condição de saúde em uma população exposta aos agrotóxicos, como a incidência de câncer. As informações são comparadas a outro grupo de pessoas com perfil semelhante, mas que não estão na mesma condição de exposição. Outros estudos avaliam casos de intoxicação, quando é possível correlacionar a exposição aos agrotóxicos a sintomas como dor de cabeça, náuseas e vômitos.

Há ainda os estudos que buscam avaliar efeitos nas células, como danos ao DNA. Segundo a professora e pesquisadora das universidades Federal do Rio Grande do Sul, Luterana do Brasil e La Salle, Juliana da Silva, essas pesquisas buscam uma avaliação preventiva às doenças crônicas, como o próprio câncer – que pode aparecer após anos de exposição. “É importante ressaltar que, em todos os casos, quando falamos de exposição a vários agrotóxicos e fertilizantes, não é possível confirmar a substância específica que provocou a doença”, explica ela, que é especialista em genética toxicológica.

Para facilitar o entendimento sobre que órgãos podem ser afetados e quais danos à saúde podem ocorrer, preparamos um mapa do corpo humano. Entre os possíveis danos, as pesquisas encontraram disfunção renal, intoxicação, alteração no desempenho cognitivo, câncer de pele, alteração hematológica, alteração hepática, transtornos mentais e tentativas de suicídio, malformação congênita, tremores, deficiência auditiva, desreguladores endócrinos, cefaleia, alterações na tireoide e testosterona masculina, danos aos hormônios reprodutivos e alteração do DNA.

Alguns dos estudos não avaliaram o desenvolvimento de uma doença específica ou sintomas, mas detectaram a presença de agrotóxicos na urina, no sangue e em fios de cabelo de agricultores e seus familiares, inclusive em crianças que vivem nas propriedades rurais. Uma das pesquisas identificou a presença de metais pesados no sangue de agricultores que trabalham em vinhedos no Sul do Brasil. Além disso, há entre as pesquisas estudos sociais sobre as condições de trabalho dos produtores rurais. Esses achados servem de base para pesquisas futuras sobre as consequências à saúde da exposição aos agrotóxicos.

ESTUDOS APONTAM MUTAÇÃO GENÉTICA

A pesquisadora Juliana da Silva, que assina pelo menos seis dos artigos revisados, explica que o dano ao DNA provocado por agentes químicos pode causar câncer. “O câncer surge, em geral, a partir de uma mutação genética, ou seja, de uma alteração no DNA da célula, que passa a receber instruções erradas para as suas atividades”, explica.

O aparecimento ou não da doença, porém, depende de uma série de fatores ambientais e genéticos, incluindo a capacidade do indivíduo em reparar danos no DNA. Hábitos como alimentação e consumo de álcool e drogas, também influenciam. De acordo com ela, todos esses quesitos são levados em consideração nos estudos científicos:

— Nós temos não só genes de metabolização, mas de reparo do DNA. Existe, por exemplo, um tipo de doença chamada Xeroderma pigmentoso. São pessoas que são extremamente sensíveis à radiação ultravioleta por apresentarem mutações nos genes de reparo do DNA. Se essas pessoas se expõem à radiação, vão apresentar um risco muito maior de desenvolver câncer de pele.

Um dos estudos presente na revisão sistemática observa que a exposição aos agrotóxicos afeta justamente os genes de reparo do DNA, favorecendo as lesões cromossômicas – que são um passo inicial para o desenvolvimento de câncer. O artigo foi publicado por pesquisadores da Universidade Federal do Ceará (UFC) em 2021.

Ao menos 90 agricultores do município de Limoeiro do Norte participaram deste estudo. Eles tinham, em média, 40 anos. Para fazer a análise, os pesquisadores dividiram os agricultores em três grupos: agricultura comercial, composto por trabalhadores que produzem em larga escala e estão expostos diariamente a uma alta concentração de agrotóxicos; agricultura familiar, que são os produtores que cultivam para subsistência e cujo excedente da produção é vendido para os mercados locais; e agricultura orgânica, cujos agricultores não fazem uso de agrotóxicos há pelo menos dez anos – este último, usado como grupo controle.

Os participantes da pesquisa responderam a um questionário presencial, com informações demográficas e hábitos de vida diária. Segundo seus relatos, por exemplo, os agrotóxicos mais usados nas plantações da região são fosfonometil com glifosato e o paraquat. Os agricultores também cederam amostras de medula óssea. A coleta foi feita entre 2017 e 2018.

Os pesquisadores observaram a presença de mais anomalias cromossômicas nos grupos de trabalhadores da agricultura comercial quando comparados com os grupos da agricultura familiar. No grupo da agricultura orgânica não foram detectadas alterações significativas.

“A nossa pesquisa foi a primeira a mostrar que os genes que devem corrigir o DNA quebrado não estão funcionais”, explica Ronald Feitosa Pinheiro, um dos autores da pesquisa. “Os genes que deveriam te proteger, não estão te protegendo: esse é o mecanismo suspeito”.

ALERTA AO CONSUMO DE ALIMENTOS

De acordo com Ronald, a pesquisa enfrentou dificuldades para ser publicada em decorrência das disputas em jogo quando o assunto são os agrotóxicos – especialmente em revistas científicas americanas. Mas conseguiu respaldo em uma publicação europeia: a Environmental Toxicology and Pharmacology.

Embora o estudo tenha sido realizado em agricultores diretamente expostos aos agrotóxicos, o pesquisador faz um alerta também para o consumo dos alimentos cultivados com essas substâncias. “Tenho sérias preocupações [com o consumo] do tomate, do chuchu e outros alimentos que não têm a casca grossa” alerta. “Tenho suspeita que estamos nos alimentando com produtos intoxicados de agrotóxicos, precisamos avaliar isso com cuidado”.

Segundo Juliana da Silva, nem sempre é possível identificar qual substância realmente é responsável pelo dano observado nas pesquisas. Isso porque os agroquímicos são uma mistura de ingredientes. Muitas vezes, os agricultores dizem aos pesquisadores que usam mais de 10 ou 15 tipos de pesticidas diferentes. “O uso de misturas na agricultura é uma prática bastante comum, sem regulamentação pelo Ministério da Agricultura, e com esta exposição concomitante a vários produtos – como o glifosato, o paraquat, o mancozebe – é difícil de se prever o efeito”, aponta a pesquisadora. “O  que se tem descrito são dados relacionados ao efeito tóxico dos agroquímicos de forma isolada”.

De acordo com o Instituto Nacional de Câncer (Inca), há pelo menos oito ingredientes autorizados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) cuja exposição está relacionada ao desenvolvimento de alguns tipos de câncer como linfomas, leucemias, pulmão e pâncreas.

No painel de monografias da Anvisa – ferramenta que permite acesso a informações atualizadas sobre os ingredientes ativos de agrotóxicos em uso no Brasil – é possível verificar que há 452 substâncias liberadas para uso em 154 culturas diferentes. Só na cultura do arroz, por exemplo, é permitido usar 98 ingredientes ativos; no feijão, 134; e no tomate, 123.

Embora exista uma recomendação para a medida correta de uso dos agrotóxicos e o tempo de espera para colheita após a pulverização, na prática essas orientações nem sempre são seguidas. A constatação é feita pelos próprios pesquisadores que, ao entrevistarem os produtores rurais, observam desinformação, não só com relação à aplicação dos pesticidas, mas também ao uso de equipamentos de proteção individual (EPIs).

TRABALHADORES DA LINHA DE FRENTE ESTÃO DESPROTEGIDOS

Além de analisar as consequências da exposição aos agrotóxicos, os pesquisadores brasileiros responsáveis pelos 51 artigos coletaram informações sobre as circunstâncias às quais os trabalhadores rurais são submetidos.

Um dos estudos, que identificou disfunção auditiva em fumicultores expostos a agrotóxicos no Paraná, registrou que eles trabalham, em média, 17 anos – sendo que apenas ao longo de dois anos usaram algum tipo de proteção. E eles começaram a trabalhar nos campos ainda na infância, em média aos 11 anos. A aplicação dos agrotóxicos durante todo esse tempo foi feita manualmente com pulverizadores costais. Os trabalhadores tiveram as vias centrais da audição afetadas, mesmo sem terem sido expostos a ruídos ou outros agentes que não fossem agrotóxicos.

O estudo, do tipo  transversal, foi feito com trabalhadores com e sem exposição a agrotóxicos. A coleta de dados ocorreu entre outubro de 2011 e agosto de 2012. O artigo foi publicado no International Journal of Audiology em novembro de 2016. Os pesquisadores são da Universidade Estadual do Paraná, Universidade Tuiuti do Paraná, Universidade Federal de São Paulo e Universidade de Montreal, no Canadá.

O professor da Universidade Federal da Bahia, Cleber Cremonese, que assina outro estudo transversal cujo resultado identificou possível relação entre os agrotóxicos e danos à saúde – neste caso, a perda de qualidade espermática em homens jovens –, destaca a falta de políticas públicas para a agricultura familiar como um fator problemático nesse cenário.

Esse estudo foi realizado no município de Farroupilha (RS) com 99 homens da área rural e 36 da área urbana, com idades entre 18 e 23 anos. As informações sobre o uso de agrotóxicos foram obtidas por meio de questionário e também foram coletadas amostras de soro e sêmen. Quando coletou os dados, entre 2012 e 2013, Cremonese conversou com os agricultores locais acompanhado de um profissional da segurança do trabalho, que repassou orientações sobre o uso de EPIs.

A proteção, afirma Cremonese, não pode ser restrita ao trabalhador que faz a aplicação do agrotóxico na lavoura, mas deve envolver toda a família. “Se a esposa vai lavar a roupa usada pelo agricultor, ela também tem que ter cuidados, pois vai correr o risco de se contaminar”, alerta.

Quando falou sobre a importância do uso de equipamentos de proteção, como máscaras e luvas, Cremonese se deparou com a dificuldade financeira dos agricultores em adquirir o material. “É muito fácil falar para o agricultor não usar agrotóxico. Mas se o agricultor tem 10 mil quilos de uva, só consegue colher mil quilos [sem agrotóxico]”, problematiza.

O orçamento do programa de Assistência Técnica e Extensão Rural (Ater) que deveria ajudar os agricultores familiares a aperfeiçoarem o sistema de produção e acessarem diferentes formas de renda, reduziu 89,6% em seis anos.

As pesquisadoras Tereza Rocha e Fabrícia de Oliveira, do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte e da Universidade Federal Rural do Semi-Árido, respectivamente, analisaram as condições de trabalho de produtores de banana no município de Ipanguaçu, no Rio Grande do Norte. O estudo de caso chegou à conclusão de que os agricultores não atendiam às recomendações de aplicação dos agrotóxicos e nem de uso de EPIs, colocando em risco tanto a vida deles quanto o meio ambiente.

Para fazer o estudo, as pesquisadoras identificaram 62 pequenas propriedades produtoras de banana a partir de um levantamento feito pela Ater do estado. Dos 62 imóveis, foram selecionados aleatoriamente 21. Um dos critérios era que os selecionados fizessem uso de algum tipo de agroquímico.

Segundo a pesquisa, fatores como a repetição de antigas práticas de cultivo, baixa escolaridade, falta de acompanhamento técnico e ausência de informação para o manejo dos produtos e descarte de embalagens aumentam os riscos de contaminação. A carência de políticas públicas tanto de suporte aos agricultores quanto de fiscalização é apontada como um agravante.

Pior ainda é a situação dos agricultores que vivem em comunidades sem o mínimo de infraestrutura. A orientação, na maioria das vezes, parte exclusivamente do ponto de venda dos agroquímicos. Outro obstáculo para o uso de EPIs, segundo o professor Ronald Feitosa Pinheiro, do Ceará, é o calor acentuado em lugares como o Nordeste.

Outro estudo feito por pesquisadores da Universidade Federal do Mato Grosso deu conta de mapear o uso de agrotóxicos em área plantada no estado e fazer uma correlação com indicadores de saúde. O estudo epidemiológico foi do tipo ecológico. Os pesquisadores fizeram a distribuição espacial de indicadores ambientais, cujos critérios foram a área plantada e o consumo de agrotóxicos, e a correlação com indicadores de saúde como intoxicação aguda, subaguda e crônica. O resultado apontou associação entre o aumento do consumo de agrotóxicos e agravos à saúde.

Imagem em destaque (Denise Matsumoto): cientista Mônica Lopes Ferreira é um dos múltiplos casos de perseguição a pesquisadores retratados na série Brasil Sem Veneno. 

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