Povos originários são ameaçados há 522 anos: contudo, há resistência, luta, razão e esperança

A reflexão fez parte da XXXIX Assembleia Cimi Regional Leste realizada entre os dias 9 e 11, em Ibiraçu; o evento também foi alento para a luta dos povos indígenas no Espírito Santo

POR RICARDO HERMETO E CIMI REGIONAL LESTE*

À primeira vista, a afirmação insinua um lugar comum de dor na jornada da civilização brasileira em relação aos povos originários. Só que no meio desse caminho histórico existe consciência, trabalho e bandeiras que teimam em abrir cenários diferentes de resistência em defesa e direito dos indígenas. E não é de hoje que essa rede de apoio e proteção se coloca a serviço da vida dos povos indígenas contra os mais distintos e covardes ataques do sistema como um todo, utilizando até da ignorância popular para patrocinar atrocidades.

Este debate ganhou forma em Ibiraçu, Espirito Santo, onde o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) reuniu seus membros para reforçar o trabalho missionário de respeito à cultura e à causa indígena em 50 anos de empenho no Brasil e 44 anos da Regional Leste, entre os dias entre os 9 e 11 de agosto, deste ano. O Regional une a ação nos estados de Minas Gerais, Bahia e Espírito Santo.

“A missão do Cimi é animar e articular a presença missionária junto aos povos originários”

Um organismo importante ligado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), que soube resistir aos ataques e incompreensão por incomodar a muita gente. Vivo, o Cimi se mostra engajado e faz revelar um interesse maior pelos povos indígenas. A missão do Cimi é animar e articular a presença missionária junto aos povos originários. Mas, em se tratando de um país que se move num conjunto de crises – política, social e econômica -, o panorama do trabalho pastoral indigenista tem sido uma luta de “Davi contra Golias”.

Em Ibiraçu, o secretário executivo do Cimi Antônio Eduardo Cerqueira de Oliveira fez um breve relato do cenário político indigenista no Brasil de 2021-2022. “Enquanto a Covid-19 já vitimou mais de 680 mil vidas de brasileiros, entre os mortos foram mais de 1.300 indígenas, sendo mais de 72 mil índios infectados. No período aumentou a fome e a miséria nas áreas indígenas”, disse.

“Permanece o agravamento das violações de direitos humanos dos povos indígenas, principalmente no que se refere à regularização dos seus territórios”

Antonio Eduardo ressaltou ainda a grave crise política, econômica e social do Brasil. “São mais de 12 milhões de desempregados, retorno do país ao Mapa da Fome da ONU [Organização das Nações Unidas], mais de 33 milhões de pessoas sem ter o que comer, 58,7% de toda população brasileira convive com insegurança alimentar em algum grau, levando o Brasil a uma regressão ao patamar equivalente ao da década de 1990”, dados com base na pesquisa da Rede Pensson, junho de 2022.

Quanto ao cenário político indigenista, no mesmo período, o secretário do Cimi apontou a desestruturação do Estado e das Políticas Públicas. “Permanece o agravamento das violações de direitos humanos dos povos indígenas, principalmente no que se refere à regularização dos seus territórios, mediante alianças do governo com o ‘centrão’, agronegócio, políticos, empresários de mineração e outros interessados nos territórios indígenas”. Lembrou ainda dos ataques constantes de setores anti-indígenas aliados nos três poderes do Estado brasileiro, o avanço das legislações anti-indígenas, desmonte das políticas públicas, dos orçamentos e dos órgãos de fiscalização e proteção aos territórios indígenas e ao meio ambiente, como a omissão, a desassistência e a falta de diálogo do atual governo.

“A violência contra povos indígenas, se intensificada ainda mais em 2021 e 2022 via expropriações de terras, forjadas na invasão, na grilagem, no loteamento, de forma rápida e agressiva contra os povos originários em todo território nacional”

Denunciou a violência contra povos indígenas, sendo intensificada ainda mais em 2021 e 2022 via expropriações de terras, forjadas na invasão, na grilagem, no loteamento, de forma rápida e agressiva contra os povos originários em todo território nacional. “Verificam-se graves situações de violações em territórios já regularizados, principalmente: Yanomami, Vale do Javari, Munduruku, kayapó, Xavante, Guarani-Kaiowá, Guajajara, Uru-Eu-Wau-Wau e Karipuna”.

E justificou: “o presidente da República junto com seus ministros e aliados de plantão, permanece unido aos setores do garimpo e do agronegócio para apoiar as invasões e articular ações do Executivo e medidas legislativas contra os povos indígenas. Aliados do ‘centrão’ e com ataques frequentes ao Judiciário, em especial ao Supremo Tribunal Federal (STF). Bolsonaro avança com seus projetos de morte e retrocesso civilizacional”.

Antonio Eduardo citou o Projeto de Lei (PL) 191/2020, que visa regulamentar a pesquisa e a exploração de recursos naturais, o garimpo, a extração de hidrocarbonetos e o aproveitamento de recursos hídricos para geração de energia elétrica em terras indígenas; a PEC 215/2000 e o PL 490/2007, que visam mudar totalmente os artigos constitucionais que concebem os direitos dos povos indígenas no Brasil; a Fundação Nacional do Índio (Funai), completamente desconfigurada de sua missão institucional de defesa dos povos indígenas e seus territórios, com desempenho repugnante e antagônico do seu papel (Instruções Normativas e Resoluções); e ainda, no Judiciário, onde tramita o Recurso Extraordinário 1.017.365, que julga a tese do marco temporal, uma tese maléfica aos comunidades, contrária aos direitos originários que garante os territórios indígenas.

“O presidente da República junto com seus ministros e aliados de plantão, permanece unido aos setores do garimpo e do agronegócio para apoiar as invasões e articular ações do Executivo”

Espírito Santo reforça a esperança

A XXXIX Assembleia do Cimi Regional Leste, em Ibiraçu, foi um grande alento para a luta dos povos indígenas Tupiniquim e Guarani, que no Espírito Santo compõem 12 aldeias, no município de Aracruz. A presença do bispo Dom Lauro Sérgio Versiani Barbosa, da Diocese de Colatina, foi vista como a força necessária a se somar ao protagonismo, o respeito e a mística missionária que norteia o diálogo intercultural, inter-religioso e ecumênico, que são princípios fundamentais da ação do Cimi.

Dom Lauro Versiani, ao longo dos três dias de trabalho, na obra do Instituto Social do Espírito Santo, conquistou os presentes com uma novidade: a criação da Pastoral Indigenista, coordenada pelo Padre Suderlan Tozo Binda. “Muita alegria em acolher a Assembleia do Cimi. Desde minha posse, em 2 de fevereiro deste ano, agradeci a todos pela presença, mas elegi os povos indígenas e beijei os pés de uma liderança indígena, num gesto de Jesus Cristo, que repercutiu aqui e no mundo, gesto coerente com a liturgia e a homilia. Reafirmei que o direito indígena precede o Estado brasileiro e lembrei de São José de Anchieta, apóstolo do Brasil, em sua luta pelos povos originários”.

“Na Assembleia, anunciou-se a criação da Comissão de Justiça e Paz da Diocese de Colatina”

Feliz com o momento, anunciou na Assembleia a criação da Comissão de Justiça e Paz da Diocese de Colatina/ES. Depois, embasou a decisão do surgimento da preferência pelos povos no marco da vida da Igreja Católica: o Concílio Vaticano II, convocado em 1961, pelo Papa João XXIII. Na esteira do Concílio, Dom Versiani, destacou as Conferências Episcopais de Medelín, Puebla e Santo Domingo, na América Latina, e a Conferência de Aparecida, que considera uma benção. De lá para cá, a Igreja atuou para evangelização e promoção humana e da juventude, de se colocar como a casa dos pobres, ser missionária, e com perspectiva sistêmica de se dirigir à todas as pessoas de boa vontade.

Assim, Dom Lauro ligou o Concilio Vaticano II à renovação eclesial patrocinada até aqui, o que considera um processo importante. “A Igreja Católica não está fora do mundo, vive suas contradições. A Igreja caminha numa direção boa, basta olhar a sequência de papas: João XXIII, Paulo VI, João Paulo I, João Paulo II, Bento XVI e Papa Francisco. Não podemos perder a oportunidade de continuar caminhando, afinal a luta não é fácil”.

“A Igreja Católica não está fora do mundo, vive suas contradições. A Igreja caminha numa direção boa, basta olhar a sequência de papas”

A XXXIX Assembleia teve como tema: “Cimi: 50 anos em defesa dos povos originários”, e o lema: “Cimi Regional Leste: “semear esperança com os povos originários a partir de territórios soberanos nos próximos 50” (Mt 13, 8). A Assembleia, teve por objetivo celebrar e monitor as atividades do Regional, para isso contou com a presença de todos os seus membros.

O coordenador Regional Leste, Haroldo Heleno, destacou que: “nestes tempos de incertezas e desesperança somos convidados e convidadas a semear sementes de esperança e de resistência. É com este espírito que estamos realizando esta nossa XXXIX Assembleia Regional, neste sentido convocamos a todos os presentes missionários, convidados, lideranças indígenas a continuarmos nesta semeadura e nos prepararmos para o Congresso dos 50 anos. Continuamos celebrando a nossa caminhada dos 50 anos do Cimi junto aos povos Indígenas, mantivemos o tema da nossa XXXVIII Assembleia por entender que ainda estamos neste clima, mas o nosso lema nos remete aos próximos desafios e construções coletivas. Sigamos em frente na luta e na esperança”.

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*Ricardo Hermeto é jornalista, colaborador voluntário da Pastoral Indigenista da Diocese de Colatina/ES

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