Sem rever o passado escravocrata, não haverá justiça climática no Brasil. Por Tatiane Matheus

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Cada vez mais o racismo ambiental entra na agenda socioambiental das empresas que buscam como adotar o ESG (sigla em inglês para Governança Ambiental, Social e Corporativa), e também na cobertura da imprensa sobre a emergência climática. Numa semana em que temos as reflexões do Dia da Amazônia e do Bicentenário da Proclamação da Independência do Brasil é preciso enxergar como a questão tem a ver com essas duas efemérides. A forma como a sociedade e as instituições brasileiras se relacionam com a floresta e com os demais territórios é reflexo de seu passado colonial e escravista.

Segundo os dados do Mapa da Nova Pobreza, da  Fundação Getúlio Vargas (FGV) Social, 29,62% da população do país é pobre. As regiões Norte e Nordeste estão acima da média brasileira. Mais da metade dos maranhenses, 57,90%, tem uma renda per capita de R$ 497 por mês. No Amazonas, são 51,42%; em Alagoas, 50,36%; em Pernambuco, 50,32%; e no Sergipe, 48,17%.

As mulheres negras e pardas são o maior grupo entre os pobres, 38,1% do total, e 39,8% extremamente pobres, mesmo sendo 28,7% da população total – de acordo com a pesquisa Sínteses dos Indicadores Sociais (SIS), do IBGE, baseada em dados de 2019. O estudo também mostra que, entre os brasileiros abaixo da linha da pobreza no Brasil, mais de 70% são negros ou pardos. O diagnóstico do problema já é notório. Nada avançará se o país não olhar para as suas feridas recalcadas.

Imagine que uma pessoa descobre que seus sintomas são resultado do recalque (forma de negação de ideias, emoções, memórias fora da consciência) de ser descendente de uma mulher estuprada e de um homem estuprador, que muitos parentes se suicidaram ou foram assassinados, além de viverem sob tortura. Mas que acredita que basta resolver seus problemas financeiros, e a doença desaparecerá. Crê que não existem diferenças entre os membros de sua família disfuncional. Se esta pessoa fosse um país, seu nome seria Brasil. 

De acordo com a pesquisa de genoma realizada no país, o projeto Mapa do DNA do Brasil, divulgada em 2020, 70% das mães que deram origem à população brasileira são africanas e indígenas, e 75% dos pais são europeus. O genocídio indígena, sobretudo o extermínio de homens, é comprovado pela sua representação de apenas 0,5% do genoma na população. Não apenas por doenças e maus tratos que muitos africanos não chegavam ao Brasil dos navios negreiros, muitos se suicidavam.

Será que o “banzo”, pejorativamente chamado da “doença dos negros” – com o qual pessoas enlouqueciam e/ou acabavam com suas próprias vidas – não seria o resultado do trauma psicológico de quem foi arrancado de sua casa, escravizado com pessoas de etnias diferentes a ponto de não conseguir se comunicar, já que muitos tinham idiomas distintos, além da constante tortura física e psicológica? “O trauma volta como uma reação, e não como uma memória”, como explica o psiquiatra contemporâneo especializado em trauma, Bessel Van der Kolk.

No Brasil, o trauma esteve e está no meio de todos nós. Em busca de um país “moderno”, alguns dirigentes e intelectuais, no século XIX (e XX também), entre monarquistas e republicanos, acreditavam no “darwinismo social”. Os programas de imigração europeia eram a forma de contrabalancear a quantidade de não-brancos em um projeto de “branqueamento” para a “modernização” do país. No processo de construção da identidade nacional, o passado colonial foi recusado e elaborado o mito de uma “democracia racial”.

O quadro que ilustra esta matéria,  “A redenção de Cam”, de 1895, do espanhol naturalizado brasileiro, Modesto Brocos, é o retrato deste ideal: a miscigenação iria “clarear a população” brasileira em três gerações e trazer a expiação da “maldição de Cam”. O título da obra remete à justificativa religiosa utilizada na escravização das pessoas não-brancas “por estar escrito na Bíblia”. Citando o livro de Gênesis, o filho de Noé, Cam, expôs a nudez de seu pai embriagado. O patriarca, quando acordou, amaldiçoou Canaã, filho de Cam, como “servo dos servos”.

Os números que mostram onde estão os mais afetados pela emergência climática coincidem com a base demográfica que foi estabelecida no século XX. As populações brancas de mão-de-obra estrangeira se concentraram em São Paulo, nos estados do Sul e do Rio de Janeiro, tirando do mercado os negros e mestiços – que,  pela reserva de mercado para o trabalhador brasileiro a partir dos anos 1930, começaram a migrar, sobretudo, do Nordeste para o Rio e São Paulo. Os preconceitos regionais refletem o racismo recalcado e mascarado nas estruturas do país.

O racista e o machista no Brasil é sempre o outro. Como demonstra uma pesquisa da Universidade de São Paulo (USP), realizada há alguns anos, 97% dos entrevistados afirmaram não ter preconceito racial, mas 98% conhecem pessoas que, de algum modo, manifestaram discriminação racial. A justiça climática começará a existir a partir do reconhecimento do racismo e do machismo estrutural que se refletem em todos os setores do país.

Não basta demonstrar qual é a cor e o gênero das pessoas mais vulneráveis às consequências das mudanças climáticas ou trazer seus problemas como “objetos de estudo”. Mas, sim, perguntar qual é a cor e o gênero da maioria daqueles que estão criando as políticas públicas, articulando as ações da sociedade civil, decidindo planos estratégicos de ESG nas empresas e até de quem está cobrindo as notícias sobre as mudanças climáticas na imprensa.

Para uma sociedade de baixo carbono, com justiça social e cumprimento do ODS 10 de redução da desigualdade, é urgente incluir a maioria excluída – levando em conta as interseccionalidades existentes – para o debate e os planos de solução. Seguramente, haverá resultados reais.

(*) Tatiane Matheus é jornalista e pesquisadora em Justiça, Equidade, Diversidade e Inclusão no Instituto ClimaInfo

Foto: Thomas Mendel / Greenpeace

 

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