Poderia ser “apenas” uma ironia que, no mesmo dia em que a Constituição Cidadã comemora 34 anos, o governo bloqueie R$ 2,4 bilhões destinados às universidades e institutos federais.
Mas não é ironia, é projeto.
O bloqueio decretado nesta quarta-feira (05/10) coloca em risco a continuidade das atividades nas instituições federais de ensino superior. É importante lembrar que, nos últimos quatro anos, essas mesmas instituições viveram uma escalada na precarização de suas condições de funcionamento.
Trata-se de uma escolha política deliberada do atual governo, cujas justificativas vão da necessidade do corte de gastos até a insistência imoral em criar fake news sobre essas instituições – que muitas vezes aparecem em grupos de WhatsApp como espaços de promiscuidade, o que, nem de longe, condiz com a realidade.
Fazendo um breve retrospecto das políticas públicas destinadas à educação nos últimos anos, veremos que esse bloqueio faz parte de uma agenda política muito bem delineada, que tem o desmantelamento da educação como um objetivo claro.
Isso mesmo: asfixiar a educação é um projeto de governo, que vem sendo executado com significativo êxito.
Elites contra poder transformador da educação
O incentivo às escolas cívico-militares é inversamente proporcional às medidas que o MEC desenvolveu para socorrer e viabilizar o funcionamento das escolas públicas durante os momentos mais agudos da pandemia de covid-19 – que, vale dizer, foram praticamente nulas.
Como se isso não bastasse, é importante lembrar que, em meio à inflação galopante, o governo vetou o reajuste da merenda escolar – cujo repasse para os estados e municípios mantém valores diários miseráveis, que variam de R$ 0,53 a R$ 1,07, a depender do segmento educacional em questão.
O mesmo governo que acha possível alimentar crianças e jovens com alguns centavos prevê um corte de 95% no Programa Nacional de Transporte e de 97% na infraestrutura das escolas públicas. A inviabilidade material da experiência educacional vai ao encontro de importante agenda política: regulamentar e ampliar o ensino domiciliar. A educação pública, gratuita (e de qualidade) vai deixando de ser um dever do Estado.
A ironia de esse corte de R$ 2,4 bilhões ter ocorrido no mesmo dia da promulgação da Constituição de 1988, que nos rege, está no fato de um dos grandes feitos dessa Constituição ter sido justamente reconhecer a educação pública como um direito de todo cidadão brasileiro.
Podemos naturalizar esse fato, mas se fizermos um sobrevoo sobre a experiência republicana no Brasil, veremos que ela pode ser, em grande medida, traduzida pela insistência sistemática das elites conservadoras do país em comandarem governos que não oferecem educação pública à população, ou então a oferecem da maneira mais precarizada possível.
E não é por desconhecimento que tais oligarquias agem assim. Essas elites sabem melhor do que ninguém que a educação é o principal, ou o mais efetivo, caminho para o desenvolvimento da consciência crítica dos cidadãos e, consequentemente, para sua ascensão econômica e o progresso social do país. Por isso mesmo, o acesso ao ensino (tanto o básico, como o superior) deve ficar restrito a poucos, os mesmos de sempre.
As conquistas da Constituição de 1988 foram consequências do diálogo entre políticos progressistas e as lutas históricas de movimentos sociais que, assim como boa parte da elite brasileira, reconhecem o poder transformador da educação. Só que, ao contrário de boa parte daqueles que exerceram o poder no Brasil, essa ala progressista aposta nesse poder transformador e o defende.
Darcy Ribeiro, um dos grandes intelectuais brasileiros, tem uma frase que ajuda muito a compreender o Brasil: “A crise na educação não é uma crise, é um projeto.”
Talvez isso nunca tenha ficado tão explícito como nos últimos anos.
*Ynaê Lopes dos Santos, Mestre e doutora em História Social pela USP, Ynaê Lopes dos Santos é professora de História das Américas na UFF. É autora dos livros Além da Senzala. Arranjos Escravos de Moradia no Rio de Janeiro (Hucitec 2010), História da África e do Brasil Afrodescendente (Pallas, 2017) e Juliano Moreira: médico negro na fundação da psiquiatria do Brasil (EDUFF, 2020).
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Imagem: Foto: Fábio Rodrigues Pozzebom