ES: ‘Sob minha responsabilidade está apenas o julgamento da questão dos trilhos’

No 40º dia de mobilização, juiz federal de Linhares visita ocupação indígena com advogados da Vale

Por Fernanda Couzemenco, Século Diário

Aos 40 dias de ocupação de um trecho da ferrovia que atravessa a Terra Indígena de Comboios, em Aracruz, norte do Estado, completados nesta segunda-feira (10), o juiz federal da Seção Judiciária de Linhares, Gustavo Moulin Ribeiro, visitou o local, acompanhado de três advogados da Vale. A inspeção judicial conta na agenda deliberada na semana passada com ambas as partes, como atividade prévia à audiência de conciliação marcada para esta terça-feira (11), em Linhares.

A “quarentena” Tupinikim tem mobilizado centenas de famílias de pelo menos cinco aldeias, que buscam a revisão do acordo de compensação e reparação dos danos causados pela Vale e a BHP Billiton, proprietárias da Samarco, quando do rompimento da barragem de Fundão, em Mariana, em novembro de 2015, considerado o maior crime ambiental do país e da mineração mundial.

O acordo foi assinado há um ano com a Fundação Renova e, segundo os indígenas, não atende às necessidades das comunidades, tendo sido imposto pela entidade, sem respeitar a organização social tradicional indígena, tampouco a consulta prévia, livre, informada e de boa-fé, determinada pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

A ineficiência do acordo, bem como de todo o processo anterior de reparação e compensação, foi reconhecida na última quinta-feira (6) pelo perito judicial Frei Philip Neves Machado, responsável por auxiliar o juízo da 12ª Vara Federal, em Belo Horizonte, Michael Procópio Ribeiro Alves Avelar, por meio de laudos técnicos relativos ao eixo socioeconômico do caso. “O processo socioeconômico desenvolvido até o momento não é o que atende a vocês. Isso será levado à Justiça”, afirmou o perito em visita à ocupação.

A revisão do acordo é reivindicada pelos indígenas diretamente à Vale, visto que a Fundação Renova perdeu sua legitimidade de negociação e diálogo não só com as aldeias, mas com vários outros grupos de atingidos, em diversos momentos, no último ano ou mais. A princípio resistente em declinar da Renova, ao longo da ocupação da ferrovia, as mineradoras aceitaram a condição e passaram a tratar diretamente do assunto com os indígenas. A inflexibilidade em abrir mão de seus próprios interesses em prol do atendimento dos direitos das vítimas de seu crime, no entanto, não mudou.

Passados 40 dias, a gigante mundial da mineração se nega a aceitar as pautas das comunidades e chegou a impetrar pedido de reintegração de posse, na justiça estadual, que resultou em liminar exigindo desocupação imediata, sob pena de multa de R$ 5 mil por pessoa, por minuto de descumprimento. O próprio juiz estadual, dias depois, reconheceu que a competência para julgar o caso é da Justiça Federal e suspendeu os efeitos de sua liminar.

Já o juiz federal Gustavo Moulin Ribeiro, em sua entrada no caso, demonstrou, até o momento, pré-disposição em ceder aos interesses da empresa e não das aldeias. A percepção é dos próprios indígenas, mediante as palavras do magistrado ao final da visita desta segunda-feira, em que ele invoca uma separação de competências não reconhecida pelas comunidades, onde a ocupação da ferrovia estaria descolada da luta pelos seus direitos como atingidos pelo crime ambiental da mineradora, o maior já registrado no país e na mineração mundial.

“Não sou eu quem vai ensinar vocês a defenderem o seu território, sua ancestralidade, tudo isso que está sendo discutido. Agora, em nome da Justiça, o que eu posso dizer é que essa questão judicializada não está sob a minha responsabilidade, está sob a do colega de Minas Gerais, na 12ª Vara, ou atual 4ª Vara da Seção Judiciária de Belo Horizonte. Sob a minha responsabilidade está apenas o julgamento da questão dos trilhos. Só isso”, disse o juiz aos manifestantes presentes.

Em outros dois momentos, Gustavo Moulin Ribeiro chega mesmo a pedir que os indígenas desocupem a ferrovia, mesmo reconhecendo que sua presença ali deveria estar limitada à escuta e observação. “Fiz questão de vir aqui por iniciativa própria antes da audiência de conciliação que vai acontecer na justiça. Aqui não é meu lugar de fala, é meu lugar de escuta e de observação. Meu lugar de fala é na justiça amanhã. Gostaria de falar para vocês que não é um caso fácil de ser julgado, mas precisa ser tomada uma decisão em relação à liberação desse trilho. Um dos motivos que me trouxe aqui é fazer um apelo a vocês, que deliberem isso como comunidade (…) Gostaria que vocês realmente deliberassem e pudessem chegar à conclusão de que, nesse momento, a melhor saída é a desocupação da ferrovia”.

Truculência jurídica

Desde o dia primeiro de setembro, homens, mulheres, crianças, jovens e idosos, às centenas, se alternam na ocupação dos trilhos, produzindo suas refeições, acampando, realizando assembleias e também celebrações, rodas de música e dança com a tradicional banda de congo de Caieiras Velha e outras aldeias.

Nesse tempo, a truculência jurídica e econômica das mineradoras – BHP Billiton e Vale são as maiores do mundo – conseguiram sufocar mesmo os esforços de revisão de acordo liderados pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) na chamada “repactuação”. No dia seis de setembro, após 14 meses e mais de 250 reuniões e audiências públicas, um comunicado conjunto informou o fim, sem sucesso, da repactuação.

No documento, os Ministérios e Defensorias Públicas, bem como dos governos do Espírito Santo e Minas Gerais, lamentaram verificar que “Vale, Samarco e BHP não têm responsabilidade ambiental” e afirmam que “a execução de medidas reparatórias e compensatórias restou totalmente inviabilizada, em face dos dilatados prazos de desembolso [propostos pelas mineradoras], uma vez que a aceitação de tais prazos significaria transferir o ônus da mora àqueles que mais necessitam das medidas. É evidente, portanto, que houve o desvirtuamento, por parte das poluidoras, das premissas de celeridade e de definitividade, firmadas na Carta de Premissas de 22 de junho de 2021”.

A repactuação e, até o momento, a ocupação indígena da ferrovia, se somam a uma série de outros acordos extrajudiciais firmados pelas mineradoras com comunidades ou instituições de justiça, na tentativa de reparar e compensar os danos provocados pelo lançamento de 50 milhões de metros cúbicos de rejeitos de mineração ao longo de mais de 600 km do Rio Doce.

O crime matou 19 pessoas, destruiu comunidades inteiras, inúmeras lavouras, pesqueiros tradicionais, destruiu a coesão social de dezenas ou centenas de comunidades tradicionais, ribeirinhas e costeiras, impediu milhares de trabalhadores de exercerem suas profissões, causando dificuldades financeiras, problemas de saúde física e mental.

Todas as águas atingidas pelos rejeitos continuam contaminadas, conforme laudo do perito oficial do juízo da 12ª Vara Federal de Belo Horizonte (atual 4ª Vara, ligada ao novo TRF-6), trazendo insegurança ao consumo do pescado oriundo tanto de ambientes dulcícolas (rios), estuarinos (foz do Rio Doce) e marinho, o que levou a Justiça Federal a determinar medidas urgentes de proteção da saúde de consumidores e pescadores.

Desacreditada como entidade capaz de pacificar a situação, mediante medidas justas de reparação e compensação, a Renova tem sido seguidamente esvaziada da função e sofrido decisões judiciais de segunda instância que a obrigam a reverter diversas medidas ilegais, como as suspensões injustificadas de auxílios emergenciais, estornar aos atingidos os valores descontados das indenizações a título de pagamento de honorários advocatícios e a quitação geral de danos, imposta como cláusula nos contratos de indenização firmados via sistema Novel, hospedado em seu site.

Simultaneamente, contra as mineradoras criminosas, foi retomada a Ação Civil Pública de R$ 155 bilhões impetrada pelo Ministério Público Federal (MPF) em 2016, para a qual o governo do Espírito Santo peticionou ser incluído como polo ativo.

“Já se passaram sete anos do desastre e o que se percebe é que as empresas pouco ou quase nada fizeram. Não é admissível que empresas do porte da Vale e BHP, que distribuem lucros de aproximadamente R$ 100 bilhões anualmente a seus acionistas, se neguem a prover reparação do mal que causaram”, salientou o procurador-geral do Estado, Jasson Hibner Amaral, ao comentar sobre as recentes medidas judiciais tomadas pela PGE referentes ao caso, que incluem, além do pedido de integrar o polo ativo da ACP de 155 bi, também a petição do bloqueio de R$ 10 bilhões das contas da Vale e da BHP Billiton, para garantir a implementação de medidas de reparação e compensação de danos no litoral norte capixaba.

O Estado também estuda a possibilidade de recorrer à Justiça britânica contra a BHP Billiton, beneficiando-se de uma decisão recente da Corte de Apelação do Reino Unido, que rejeitou recurso da mineradora e aceitou julgar a ação impetrada em 2018 pelo escritório Pogust Goodhead, em favor de 200 mil atingidos no Espírito Santo e Minas Gerais.

Imagem: Redes Sociais

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