Nacionalismo ou domesticação pelo capital?

Envoltos em simulações de defesa do interesse nacional, projetos neoliberais nas áreas de direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais mascaram medidas antissociais e entreguistas. Por trás delas estão os verdadeiros interesses em jogo

Por Marie Madeleine Hutyra de Paula Lima, no Outras Palavras

Auguste-Maurice Barrès (1862-1923), escritor e político, pai do nacionalismo francês ligado às raízes e às tradições locais das antigas províncias francesas, definia o nacionalismo como “o reconhecimento do peso do passado, das grandes vozes da terra e dos mortos”.

Paulo Nogueira Batista Jr. cita uma outra frase de Barrès, “Os verdadeiros indivíduos são raros nesses tempos de domesticação universal”, como destaque inicial ao capítulo “Brizola em 1961” de seu livro O Brasil não cabe no quintal de ninguém: bastidores da vida de um economista brasileiro no FMI e nos BRICS e outros textos sobre nacionalismo e nosso complexo de vira-lata (SP, LEYA, 2019).

Instigante é a última frase citada, como também a figura, analisada no texto, do político Leonel Brizola, determinado em suas convicções e em ações que as traduzia com fidelidade.

Nogueira Batista emenda que “a política brasileira é um deserto só comparável ao do Saara. Poucos se salvam. O que prevalece é o despreparo, o oportunismo, o carreirismo”, concluindo que, salvo honrosas exceções, “falar em interesse nacional com essa gente é fazer papel de Quixote”. Por causa de sua sinceridade de propósitos e a superioridade de Leonel em relação aos políticos comuns, foi ele boicotado em sua vida, pela “ameaça permanente à coligação de mediocridades que domina a política e a economia neste país.” Seu diferencial era a fibra, e sua arma, as palavras e ações!

Um fato. Diante da renúncia de Jânio Quadros, houve a tentativa de impedir a posse do vice-presidente João Goulart, de parte da junta formada pelos ministros militares e com o apoio de forças civis. Na qualidade de governador do estado do Rio Grande do Sul, Brizola assumiu a liderança da reação, formando a Rede da Legalidade. Assim, em 28 de agosto de 1961, emitiu do Palácio Piratini o seu famoso pronunciamento, transmitido por meio da rádio Guaíba em Porto Alegre, conclamando o povo a ir perante o Palácio do Governo para demonstrar seu protesto contra essa ilegalidade. Em resposta fulminante, dezenas de milhares de pessoas se aglomeraram na praça, em atitude de solidariedade ao governador. De forma surpreendente, até dirigentes de dois times de futebol antagônicos, do Grêmio e do Internacional, assinaram um manifesto conjunto de apoio a Brizola! Assim, sua intervenção na História conseguiu adiar os fatos que ocorreriam três anos após, com o golpe empresário-militar de 1964.

Saudosa figura e saudosos esses tempos em que o nacionalismo, o interesse político e a coerência convergiam e se alinhavam. De lá para cá, as atitudes e as personalidades políticas vêm mudando. Uma forma diferente de força está prevalecendo sobre o interesse público: o interesse econômico do capital financeiro mundializado. As decisões políticas em todos os níveis são encobertas pela penumbra do segredo dos gabinetes travestidos em justificativas e discursos, entre agressivos e diplomáticos, porém contrários ao interesse da população, que chega a conhecer apenas as consequências.

Os projetos neoliberais na área dos direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais são envoltos em linguagem distorcida para mascarar a gravidade das medidas antissociais, acompanhadas de discursos em que termos como cidadania, progresso, economia de verbas são constantes, mas desvinculados da realidade dos interesses subjacentes. As áreas da saúde/SUS, educação pública, moradia, transporte público, meio ambiente e biodiversidade, segurança pública, geração de empregos, espaços de lazer, a proteção à maternidade e à infância e segurança alimentar, entre outras, estão perdendo verbas nos orçamentos e efetivação nas políticas públicas, em escancarado retrocesso, vedado por normas constitucionais e convencionais.

É preciso fazer a análise da somatória das decisões dos governos neoliberais para entender a gravidade das suas consequências. De forma isolada, uma aparente ação discricionária, em princípio legal, representa, de fato, a figura do cavalo de Troia para concretizar ações que fortemente contrariam o interesse público a longo prazo, para se transformarem em resultados que ferem os direitos sociais, econômicos, culturais e ambientais, incluindo desestatização de patrimônio público ou concessão de terras e parques públicos por uma geração.

A técnica da “passagem da boiada” tem inúmeras versões e a cartilha do neoliberalismo possui uma linguagem muito convincente. Os desafios são diários, assim como as pressões. Enfrentar e permanecer com coerência exige uma fibra diversa nos dias atuais em comparação com aquela da época de Brizola. Existem várias formas de convencimento das mentes criativas e palpitantes, seja por vaidade, seja para galgar posições de destaque.

Até membros da academia vêm sendo atraídos por estes novos ares com promessas de promover o progresso, a sustentabilidade e o desenvolvimento sustentável… Muitos trabalhos acadêmicos, em teoria, defendem essas ideias com fundamentos, mas, algumas vezes, os titulares, quando guindados a postos públicos, passam a apoiar a onda neoliberal do governo de plantão a que se submetem. Os sonhos poéticos de realizações se desfazem abortados na prática…

Teria a mentira “oficial” encontrado formas sutis para envolver a mente de pessoas esclarecidas, intelectuais, criando adesão a alianças antes impensadas e impensáveis, visto tratarem-se de posições contraditórias a suas próprias ideias? Ou será que as ideias contidas em papel servem apenas para os outros, segundo o conselho: “faça o que eu digo, não o que eu faço”? Destaque-se o registro de valiosos exemplos de coerência como fio condutor de uma vida inteira de personalidades políticas ou mesmo de ocupantes de cargos públicos.

A frase “dê o poder a um homem, e o conhecerá” serve para refletir a fragilidade do ser humano no autocontrole do uso do poder e o seu servilismo ao poderoso maior, dando as costas ao interesse público. O grau de coerência de ação e o nível de compromisso direcionados para o interesse público poderiam ser testados. As louváveis intenções teóricas, manifestadas em obras, discursos, debates, são neutralizadas se a pessoa não souber agir respeitando os limites e os princípios que antes defendera.

O contexto da realidade deveria pautar a prática, apoiada nas teorias científicas das várias áreas.

Independente dos merecidos louvores conquistados por qualquer pessoa, quando em postos públicos, a verdadeira manifestação da cidadania e de respeito aos valores da democracia é demonstrada apenas por sua ação política coerente e verdadeiramente compromissada com o interesse público.

Manifestante vestido com as cores do Brasil e dos EUA posa na Avenida Paulista na concentração antes do protesto em São Paulo (Foto: Nacho Doce/Reuters)

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