O último Tanaru sofre violações da Funai até no sepultamento

O corpo do “índio do buraco” ficou fora de seu território por 71 dias entre a perícia em Brasília (DF) e a espera do enterro num depósito da PF em Rondônia. Nesse intervalo, fazendeiros já procuraram o órgão federal para reivindicar a terra, que não é demarcada

Por Josi Gonçalves e Kátia Brasil, na Amazônia Real

Porto Velho (RO) O indígena isolado Tanaru, encontrado morto em 23 de agosto, foi sepultado pela Fundação Nacional do Índio (Funai) por determinação da Justiça Federal, na sexta-feira (4 de novembro). Depois de 71 dias em que o corpo ficou fora do território, o sepultamento ocorreu sem as homenagens que os povos indígenas brasileiros, indigenistas e defensores dos direitos humanos planejavam fazer. O “índio do buraco”, como era conhecido, resistiu sozinho por 26 anos cercado de ameaças de fazendeiros, no sul de Rondônia, que não cessaram nem mesmo depois de sua morte.

“O ‘índio do buraco’ foi, em vida, vítima das mais graves violações de direitos pelas quais um ser humano pode passar e não pode ser tolerável que agora, morto, continue a ser vítima de desrespeito de um dos mais fundamentais direitos de qualquer ser humano, que é o respeito ao seu cadáver e à sua memória”, destacou o Ministério Público Federal (MPF) em ação civil pública. O  juiz federal Samuel Parente Albuquerque concedeu uma liminar, em 3 de novembro, obrigando a Funai a sepultar o corpo do indígena no prazo de cinco dias sob pena de pagamento de multa diária de 1 mil reais.

O sepultamento do último Tanaru encerrou mais um capítulo da longa história de violações de direitos de seu povo contra os indígenas, acirradas no governo de Jair Bolsonaro (PL). Foi por temer o extermínio que o ‘índio do buraco’ passou as últimas três décadas sem ter contato com a chamada sociedade, embrenhado no meio da mata, mudando constantemente de local, deixando sempre um buraco aberto na terra. Morreu sem que ninguém soubesse a cultura de sua etnia e sua língua. Uma marca do genocídio no Brasil.

O sepultamento, que era previsto para acontecer entre 7 e 14 de outubro, chegou a ser suspenso por ordem do presidente da Funai Marcelo Xavier, que pediu à Justiça “a  ausência da obrigação legal em promover o sepultamento do índio Tanaru”. Nesse período, a Funai recebeu pedidos de fazendeiros para revogar a portaria de uso da terra indígena. Eles querem tomar posse do território, que não é demarcado e sofre constantes invasões de madeireiros. Xavier não se pronunciou sobre o caso.

As demarcações de territórios no país  foram paralisadas no governo de Jair Bolsonaro (PL) desde sua posse, em 2019. O presidente encerrará seu mandato cumprindo a promessa de não demarcar “um centímetro” de terra para os povos originários. Esta situação será revista no governo eleito de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que prometeu as demarcações aos povos indígenas e quilombolas.

“O sepultamento de Tanaru foi realizado [em 4 de novembro] dentro da choupana (palhoça) em que ele viveu, de acordo com as tradições e na presença de indígenas [e] de servidores da Funai que tinham relação com o ‘índio do buraco’”, informou o MPF, que ingressou com uma ação civil pública, no dia 25 de outubro.

“Queríamos homenagear e quando vimos foi na TV que saiu a notícia do sepultamento”, disse à Amazônia Real, Ivaneide Bandeira, a Neidinha Suruí, que participou do estudo de reconhecimento da terra Tanaru nos anos 1990. “Para mim isto foi para evitar que houvesse cerimônia com a presença de defensores dos direitos humanos e porque queriam entregar a terra para os fazendeiros. Aquela terra tem que ser mantida como área protegida para pagar o tributo devido ao povo que foi dizimado e a luta do indígena do Tanaru que mesmo sozinho resistiu até o fim ao assédio dos não indígenas. É um símbolo de resistência e da preservação da memória de um povo.” A TV Globo foi o único veículo de imprensa que recebeu as fotografias do ritual.

Foto: Acervo Funai

Último sobrevivente

O indígena que vivia em isolamento voluntário foi visto pela primeira vez em 1996 pela equipe do sertanista Altair José Algayer na Terra Indígena Tanaru, que tem 8.070 hectares. O “índio do buraco” já não tinha mais parentes, pois foram mortos em uma sequência de massacres de invasores, principalmente fazendeiros, diz a fundação.

“No cenário de violência e graves violações de direitos, todo o povo do ‘índio do buraco’ foi morto e desapareceu em decorrência de genocídio, nunca apurado, cujos traumas foram, possivelmente, as causas das recusas peremptórias e permanentes de contato ou qualquer outro auxílio direto de qualquer pessoa nos quase trinta anos que viveu em isolamento na sua terra”, afirma o MPF na ação.

Em 1998, a Funai classificou o território Tanaru como de Restrição de Uso e Ingresso, através da Portaria nº 1040, de 27/10/2015, por um prazo de dez anos, com validade até 2025. A área, que é alvo de ações judiciais de fazendeiros, fica entre os municípios de Chupinguaia, Corumbiara, Parecis e Pimenteiras do Oeste, região conhecida como Cone Sul. Por não ser demarcado, o território vive sob ameaça de ataques e desmatamentos.

No dia 23 de agosto, o sertanista Altair José Algayer e sua equipe encontraram o indígena morto. À Amazônia Real, o indigenista Marcelo dos Santos disse que a equipe fazia o monitoramento territorial. “Ele foi encontrado na rede e coberto de penas de arara (…). Ele estava esperando a morte, não tinha sinais de violência. O Altair fazia visitas, quatro ou cinco vezes por ano. Mas é preciso investigar se houve alguma doença ou contaminação”, contou.  

Manobras da Funai

Cabana do “Índio do Buraco”, na terra indígena Tanaru, em Rondônia. Foto: Survival

Em 27 de agosto, a Funai divulgou uma nota informando que a Polícia Federal realizou perícia no corpo do indígena com apoio de legistas do Instituto Nacional de Criminalística (INC),em Brasília, e peritos de Rondônia, que indicava que “morte [de Tanaru] se deu por causas naturais, o que será confirmado por laudo de médico legista da PFl”.

Na ação civil pública, que pediu o sepultamento do indígena, o MPF afirma que “quando encontrado no local [morto], tudo indica que o índio tenha passado mal ou se machucado acidentalmente e deitou-se ali para morrer”.

O corpo de Tanaru ficou por 45 dias no INC para realização de perícia sobre a causa da morte e análise antropológica sobre a etnia desconhecida, e nas últimas três semanas na sede da PF, em Vilhena (RO). Os laudos não foram divulgados até o momento pela Funai.

Pressionada a enterrar o indígena Tanaru, a Funai chegou a pedir na ação civil pública “o indeferimento do pleito liminar por ausência de obrigação legal em promover o sepultamento do índio Tanaru, bem como por ausência de mora da Fundação no referido sepultamento, uma vez que vem adotando todas as medidas necessárias, e ao seu alcance, para que o índio Tanaru tenha sua dignidade preservada”. Nesse intervalo de tempo, fazendeiros assediaram o órgão federal.

O procurador Daniel Luis Dalberto, que integra o Grupo de Trabalho de Comunidades Tradicionais da 6ª Câmara do MPF, disse à reportagem que a Funai também alegou que os laudos sobre a identificação da etnia de Tanaru ainda não estavam concluídos. O MPF expediu ofício à PF, segundo o procurador, para que indicasse se todas as amostras necessárias para a confecção do laudo foram realizadas. “Em sua resposta, a autoridade policial, Dr. Márcio Lopes, respaldada em informação do Núcleo Técnico-Científico da Polícia Federal, indicou que não necessita mais dos restos mortais de Tanaru, pois todas as amostras foram retiradas”, disse Dalberto.

No dia 28 de outubro, a Funai relatou ao MPF que três fazendeiros pediram ao órgão que retirasse o território Tanaru da classificação  de restrição de uso para que eles tenham direito sobre área de 8.070  hectares, pois alegam que adquiriram a terra em um leilão público em 1975. Segundo os fazendeiros, “a afetação [restrição] da área ocorreu unicamente pela presença do índio isolado, de acordo com a lei. Logo, a sua morte faz desaparecer o usufruto e a afetação da área, devendo a posse retomar para os particulares titulares da posse ou domínio”.

O  MPF afirma que a Funai não informou os nomes dos fazendeiros que reivindicam o uso da Terra Indígena Tanaru e destacou os riscos permanentes de invasão da área. “O território indígena abrange a área de floresta de cinco fazendas, cercadas por desmatamentos para atividades de criação de gado e lavoura mecanizada, predominantemente em Corumbiara”, diz o órgão.

Em sua decisão, o juiz Samuel Albuquerque classificou como excessiva a demora da Funai no sepultamento e destacou ainda “a comoção dos povos indígenas próximos, com o desrespeito dispensado ao ‘índio do buraco’. “Tem-se ainda a probabilidade de repercussão internacional da omissão do Estado Brasileiro, o qual é signatário de Convenções Internacionais que assegurem direitos à dignidade dos povos indígenas, a exemplo da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho.” 

A memória

Foto: Acervo Funai

Sobre a preservação da TI Tanaru, o MPF disse que a terra pertence à União, conforme previsto no artigo 231 da  Constituição Federal, que reconhece os direitos originários dos indígenas sobre as terras que tradicionalmente ocupam.

O órgão recomendou formalmente à Funai  “à criação de um repositório, em sítio eletrônico oficial, mantido pela fundação, em memória ao ‘índio do buraco’, e também que sejam mantidos a restrição de uso da TI Tanaru e os trabalhos de monitoramento da Frente de Proteção Etnoambiental Guaporé, considerando a necessidade de preservação da área”, disse o procurador  Daniel Luis Dalberto.

O MPF deu prazo até 21 de outubro para que a Funai respondesse à recomendação. O prazo foi ampliado. “A Funai não respondeu até esse momento se acatará a recomendação”, disse o procurador.

Neste sábado (5), a reportagem recebeu informações da Coordenação da Frente de Proteção Etnoambiental Guaporé e da Base Omerê, em Rondônia, sobre detalhes do sepultamento. Participaram do ritual fúnebre do “índio do buraco” 16 pessoas, entre servidores da Funai, indígenas e uma equipe de agentes da Polícia Federal. Foram usadas folhas de bananeira para cobrir o corpo, que ficou dentro do buraco na palhoça, e os pertences do “índio do buraco” foram queimados, como é a tradição. “Tanaru teve o privilégio de ter a FPE Guaporé e o Altair sendo um de seus protetores e ao longo dos anos ter cuidado e respeito nessa jornada que ele passou aqui na terra. Fizemos de tudo para ser [o sepultamento] de forma mais tradicional possível. Puraá, um indígena Akunsu, fez a cerimônia. Esperamos que agora, na sua terra, ele descanse em paz e encontre seus ancestrais e possa cantar e dançar com eles nessa passagem”, disse um indígena, que pediu para não ter o nome revelado devido ao acirramento do clima com fazendeiros na região do Guaporé.

Na imagem o indígena Puraá, da etnia Akunsu, fez a cerimônia fúnebre. Foto de reprodução da TV Globo e divulgação da CFPE Guaporé – 4/11/2022

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