Abraji registra 37 ataques à imprensa após o segundo turno

por Maria Esperidião, Paula Neiva e Rafaela Sinderski, em Abraji

A Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) e outras organizações que atuam na defesa das liberdades de imprensa e de expressão registraram, nos últimos dias, uma onda de ataques sem precedentes contra comunicadores, fotógrafos, cinegrafistas e repórteres. Após o resultado da votação do segundo turno destas eleições, apoiadores do presidente Jair Bolsonaro (PL) agrediram fisicamente e hostilizaram ao menos 37 equipes em todas as regiões do país, em atos golpistas nas capitais, cidades do interior e nos bloqueios das estradas.

A mobilização para atacar profissionais de imprensa por parte da base mais radical do presidente derrotado nas urnas saiu do campo digital e foi às ruas. Xingamentos, declarações racistas e até luta corporal foram classificados pelas organizações.

Dois episódios ilustram a virulência das abordagens. No feriado de finados (2.nov.2022), em Brasília, o locutor Alex Soares, vestido com uma camisa vermelha e com crachá da Rádio Metrópoles, teve seu carro cercado por um grupo que pedia intervenção militar perto do Quartel-General do Exército. Estudante de Jornalismo da Estácio, o radialista fazia um trabalho de fotojornalismo quando um homem mais velho o chamou de “macaco” e convocou seguidores a expulsá-lo do veículo. Os manifestantes ainda atiraram garrafas em direção ao carro e atingiram a mulher do locutor. “Só desci do carro e exigi respeito. Tomei uma pancada no ouvido e depois uma pancada mais forte na cabeça”, contou à Abraji.

Na mesma quarta-feira (2.nov.2022), em uma cobertura ao vivo para a Rádio Cidade, afiliada da Jovem Pan de Araxá (MG), disseminadores de conteúdos antidemocráticos e os que faziam bloqueios não se intimidaram e também cercaram o repórter Diogo Meira, que estava com equipamento (tripé e microfone). Neste vídeo, é possível ouvir gritos, ofensas, palavrões, acusações desconexas, e que o profissional “mentiu”, enquanto ele é obrigado a deixar o local. Mais tarde, em outras imagens que não contextualizam as circunstâncias do ataque, uma mulher grava a briga entre o repórter (já sem camisa) e um caminhoneiro. Até o momento, a Abraji não conseguiu falar com o radialista para saber o que aconteceu no final da confusão. A Associação da Imprensa Araxaense (AIA), outras organizações e redes de comunicação locais expressaram nota de pesar sobre a violência contra o jornalista em pleno exercício da profissão.

Ser tachado de petista e comunista por usar uma roupa vermelha se tornou um problema real para as equipes de televisão, as mais vulneráveis por geralmente entrarem ao vivo ou falarem o texto em voz alta com o público ao redor (práticas conhecidas como “passagens” e “stand-ups”) . O repórter mineiro vestia o uniforme da emissora: uma camisa vermelha com o logo das duas emissoras, ou seja, estava devidamente identificado. O de Brasília também. Em agosto, antes mesmo do segundo turno, o jornalista Ronaldo Galhardo, diretor do site de notícias SNews, de Sorocaba (SP), cobria uma manifestação com um celular vermelho e por isso foi atacado com tapas e gritos.

Outras ações violentas e constrangedoras apareceram em Mato Grosso, especificamente no bloqueio da rodovia BR-163 em Sinop, onde Bolsonaro teve mais de 77% dos votos. Usando o microfone, os organizadores do ato gritavam palavras de ordem como “TV que apoia comunismo não é bem-vinda”, “Vocês não são bem-vindos”. Uma equipe da TV Cidade Verde, que opera em canais UHF, foi ameaçada por pelo menos quatro homens e teve que deixar o local aos gritos de “Globo lixo”. Por ter gravado a expulsão, Rubens Valente, da Agência Pública, denunciou que também foi ameaçado por dois homens e teve que deixar a cobertura do bloqueio que pedia intervenção federal.

Na nota publicada pelo canal, a diretora Rebeka Vieira afirma que o veículo local tem compromisso com a democracia, é apartidário e que um grupo isolado, por maldade e oportunismo, utilizou palavras de baixo calão para expulsar o repórter e o cinegrafista.

intimidação contra equipes de reportagem da Band, da TV Record e do SBT por bolsonaristas no centro de Porto Alegre levou a Federação Nacional de Jornalistas (Fenaj), o Sindicato dos Jornalistas do Rio Grande do Sul, a Associação Riograndense de Imprensa (ARI) e as empresas que foram alvo das ofensas a divulgarem notas. As maiores organizações patronais, Abert (Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão), Aner (Associação Nacional de Editores de Revistas) e ANJ (Associação Nacional de Jornais), informaram também sobre os ataques sofridos pelas equipes da Rádio Gaúcha, Band, Record e SBT durante cobertura dos protestos nas rodovias.

O nível de violência dos apoiadores do presidente Bolsonaro chegou em um ponto tão extremista que um pequeno grupo que defendia atos inconstitucionais impediu uma entrada ao vivo da repórter que tinha passado a tarde em frente ao 33º Batalhão do Exército Motorizado, em Cascavel (Paraná). À Abraji, a repórter Déborah Evangelista, do grupo CATVE de Comunicação, contou que os militantes se sentiram incomodados por ter um número menor de manifestantes durante a noite.

Nas imagens, ela tenta se explicar que atualizaria a situação, como é praxe em todos os telejornais locais, quando homens empunharam bandeiras na frente da câmera, não a deixaram trabalhar e um outro encosta a mão na jornalista. “Fui desrespeitada, estou abalada e com medo de ser agredida”.

Apesar da diminuição dos bloqueios ilegais em rodovias em todo o país, nesta sexta-feira (4.nov.2022), uma equipe da Rede Amazônica, afiliada da Rede Globo na região Norte, foi atacada por cerca de dez homens na Estrada do Belmont, em Porto Velho (RO). Os agressores cercaram o carro da equipe, chutaram o veículo, empurraram os jornalistas e fizeram ameaça de morte. A agressão foi registrada na delegacia local, e os dois jornalistas fizeram exame de corpo delito no Instituto Médico Legal da cidade. O episódio foi gravado em vídeo.

Abraji identificou, ao longo de 2022, 487 episódios de violência contra jornalistas; 28% são casos de ameaças, intimidações, agressões físicas e/ou destruição de equipamentos. O número representa um aumento de 7,5% em relação a todo o ano passado, quando foram registrados 453 ataques. Os dados mostram que a violência contra profissionais da imprensa não só ficou mais frequente, como se tornou mais grave, já que os casos de ameaças e agressões físicas cresceram 73,4% entre 1º.jan.2022 e 4.nov.2022, em comparação com o mesmo período de 2021.

Na eleição de 2018, a Abraji já havia apontado aumento dos ataques a jornalistas após a eleição, com nove jornalistas alvo de hostilidades, a maioria por apoiadores do então presidente eleito Jair Bolsonaro.

Relatos para organizações internacionais

Nesta sexta-feira (4.nov.2022), a Abraji, que já havia emitido nota (inclusive em espanhol) sobre as agressões do feriado, usou suas redes internas para denunciar os casos às organizações internacionais, como a SIP (Sociedad Interamericana de Prensa), com sede na Flórida, e a Fundación para la Libertad de Prensa – FLIP, da Colômbia.

O International Freedom of Expression Exchange (IFEX), organização mundial de defesa da liberdade de expressão, também foi comunicado pela Abraji sobre o agravamento da violência contra os jornalistas brasileiros. “Um espaço cívico robusto e vibrante requer que as e os jornalistas possam realizar seu trabalho sem medo e em condições de segurança, especialmente agora, em um contexto de manifestações, quando a população precisa estar melhor informada”, comentou Elizabeth Rivera, Diretora de Comunicação da rede canadense.

“O que ocorre atualmente no Brasil é uma lembrança de como e por qual motivo devemos apoiar o trabalho de jornalistas de todo o mundo. Eles se encarregam de contestar a desinformação durante crises, mobilizações e eleições”, complementa Alejandro Delgado, presidente do Comitê Coordenador do IFEX na América Latina.

Para Maria Laura Canineu, diretora do escritório no Brasil da Human Rights Watch, são “inaceitáveis as ameaças e agressões contra jornalistas no contexto da cobertura dos atos antidemocráticos após a derrota do Presidente Jair Bolsonaro nas eleições presidenciais de 30 de outubro”. “Esses ataques não só colocam em perigo a segurança pessoal dos jornalistas, mas prejudicam a liberdade de imprensa, de expressão e a própria democracia no Brasil. As polícias civis deveriam investigar esses atos, e o Ministério Público apresentar denúncia contra todos os envolvidos em crimes contra a imprensa, para que sejam devidamente responsabilizados”, completa.

O Fórum de Jornalismo Argentino (Fopea) também foi avisado e expressou repúdio à violência imposta pelos manifestantes aos jornalistas brasileiros. A presidente Paula Moreno pontuou que os colegas argentinos estão solidários com o Brasil. “Pediremos que as autoridades enviem mensagens de paz e permitam que a imprensa possa realizar seu trabalho em liberdade”.

Anistia Internacional Brasil observou que as Eleições 2022 foram marcadas pela disseminação de notícias falsas, declarações do presidente Jair Bolsonaro e ações de outras autoridades públicas que geraram insegurança sobre a integridade das instituições do Estado e sobre o respeito ao curso legal das eleições. Episódios de violência política foram recorrentes, inclusive contra jornalistas.

“Recebemos com indignação as denúncias apontadas pela Abraji, que mostram a continuidade dessa violência no contexto eleitoral mesmo depois dos resultados. Este cenário aponta para desafios que ultrapassam o período eleitoral e representam riscos para os direitos humanos de cidadãs e cidadãos brasileiros. O presidente Jair Bolsonaro deve tomar providências urgentes para assegurar que jornalistas possam desempenhar suas funções em segurança, garantindo o direito constitucional à liberdade de imprensa. Essas medidas devem ser providenciadas em consonância com a Constituição Federal, as instituições do Estado de Direito e aos parâmetros internacionais de direitos humanos”, avalia a diretora da AIB, Jurema Werneck.

Para Arthur Romeu, diretor do escritório da Repórteres sem Fronteiras para a América Latina, o ambiente de hostilidade contra a imprensa que se consolidou nas redes sociais durante a campanha eleitoral contribui com um cenário de banalização de ataques contra jornalistas. “A multiplicação de agressões físicas contra jornalistas que estão cobrindo os protestos golpistas de apoiadores de Jair Bolsonaro é um dos reflexos diretos da banalização destes ataques. É fundamental que o Palácio do Planalto se pronuncie rapidamente sobre a violência que está se multiplicando nas ruas e que o presidente Bolsonaro repudie a postura de seus apoiadores”.

Pedro Kelson, coordenador de articulação do Pacto pela Democracia, rede da qual a Abraji faz parte, declarou que a organização vem acompanhando, com preocupação, a escalada da violência contra jornalistas e veículos de imprensa, que se acentou sobremaneira no contexto eleitoral e pós-eleitoral. “Liberdade e segurança do trabalho jornalístico é um pilar central de democracias sólidas, e devem ser garantidas pelo Estado e respeitadas e valorizadas pela população brasileira”.

ARTIGO 19, que também faz seu próprio monitoramento de violações relacionadas às eleições, lembra que a violação à expressão política aumentou exponencialmente nas últimas semanas, com muitos casos relacionados aos debates entre candidatos, aos dias do primeiro e do segundo turno e, agora, às coberturas dos bloqueios das rodovias.

Maria Tranjan, coordenadora do programa de Proteção e Participação Democrática, sublinha como os acontecimentos da semana refletem um contexto violento para comunicadores:

“Desde sexta-feira da semana passada (28.out.2022), já foram registrados ao menos 15 episódios de violência contra comunicadores no exercício da profissão – além dos casos em que o profissional não estava em cobertura, como na oportunidade em que a deputada Carla Zambelli (PL) atirou contra um jornalista por suas posições políticas.”

Outros episódios antes da votação do último domingo também foram lembrados por organizações do terceiro setor, como as ameaças sofridas pelo repórter Caco Barcellos, da Globo, ao flagrar assédio eleitoral em Coronel Sapucaia, Mato Grosso do Sul, na fronteira do Brasil com o Paraguai. Apesar de não estar trabalhando, causou comoção também a agressão sofrida pela jornalista Magalea Mazziotti, na região central de Curitiba, a três dias das eleições presidenciais. Ela usava um adesivo a favor do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e foi derrubada no chão e recebeu socos de um agressor.

Foto: reprodução da Internet com manifestantes de atos golpistas agredindo equipe de TV em Cascavel

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