Como fortalecer a Democracia frente à ditadura do Mercado? Por Candido Grzybowski

Sentidos e Rumos

Com determinação, mas muita dificuldade, a esperança democrática venceu a ameaça fascista aberta. Apesar da vitória política estratégica, sabemos que o fascismo demonstrou força e sustentação no seio da sociedade civil. A vitória foi eleitoral, mas a luta vai continuar especialmente em termos ideológicos e culturais de visões, princípios e valores. A presença de um ideário mobilizador e de propostas fascistas define um modo de ver e agir que vai estar entre nós,  em nosso cotidiano e nos espaços que circulamos. A reconstrução democrática que apontamos com o voto tem desafios, tensões e trapaças pelo caminho que nem temos condições de dimensionar neste momento. Não podemos deixar tal tarefa ser conduzida somente pelo poder estatal, pois ele é expressão da própria fissura, na medida em que deve ser um governo voltado para toda a cidadania. A hora das cidadanias ativas chegou e não vai dar para poupar forças em todas as frentes.

Além do ideário fascista e forças que o sustentam na sociedade, precisamos ter presente uma outra grande ameaça, mais de ordem estrutural, representada pela “ditadura do mercado”. Sim, é mesmo de ditadura capitalista que se trata!  E ela já demonstrou o seu poder diante de uma simples fala de Lula, em Brasília. De um modo claro, simples e de grande empatia de alguém que se fez o que é em memoráveis lutas por direitos iguais e, em nome deles, engajado do lado dos mais fracos, Lula disse simplesmente que não pode ser admissível fazer políticas públicas somente tendo a lei férrea de respeito a regras de teto de gastos governamentais determinadas em lei, tendo o mercado financeiro como referência, sem uma equivalente lei que estabeleça prioridade absoluta do governo no combate à fome e miséria, que  afetam milhões de brasileiras e brasileiros. O “mercado”, através de seus operadores visíveis, reagiu no ato, provocando queda da bolsa e desvalorização de nossa moeda. Este é o começo, apenas!

Isto diz muito das contradições presentes  para tornar a democracia uma possibilidade real de acesso a direitos e de uma sociedade brasileira ao menos desigual e destrutiva. Trata-se do poder real dos controladores das grandes corporações econômicas e financeiras globalizadas, que nos estão levando a esta situação de bem limitadas possibilidades de reconstrução. Aliás, basta olhar pelo mundo para perceber as grandes responsabilidades deste capitalismo financeiro neoliberal na emergência de governos de extrema direita por toda parte, em versões remodeladas de fascismo. Mas, sabemos, se trata de um pequeníssimo grupo com poder de veto acima de democracias e instituições, que não se  importa com a “saúde e bem estar dos povos e do planeta”, pois seu único e exclusivo valor e critério é a liberdade de acumular capitais sem limites. Aí temos os tais 1% com poder absoluto, com poder real de veto sobre sociedades e governos, não importando a catástrofe a que estão levando o planeta e a humanidade inteira.

Não adianta tapar o sol com a peneira, esta é a realidade nua e crua. O melhor é encarar os seus desafios do que fugir dela. Aqui estamos falando de duas ordens e grandezas de problemas a enfrentar democraticamente e realizar conquistas possíveis. Não podemos abandonar o horizonte estratégico, de longo prazo, de implantar democracia ecossocial transformadora, de bem viver para todas e todos, na igualdade cidadã com diversidade, no maior respeito à integridade da natureza que nos dá a vida, com cuidado, convivência e compartilhamento. Mas o longo prazo se faz abrindo caminhos desde aqui e agora, de lutas que se fazem desde o cotidiano por um viver mais saboroso de viver.

Assim, antes de tudo, precisamos fortalecer o imaginário mobilizador que demonstramos com a eleição e a vitória. Sim, somos hoje uma frente ampla e diversa, mas temos os nossos pilares no chão da sociedade. Basta entender a cartografia da cidadania desenhada pelo voto: a maioria pobre e excluída demonstrou força a partir de seus territórios e periferias. Um tal começo já nos dá mais certeza do caminho, sem as bases pobres mobilizadas e exercendo a sua cidadania é a própria democracia que não tem sentido vivo e transformador.

As forças do mercado e do fascismo  só estão à espreita de nossos vacilos para entrar em cena com as suas propostas concentradoras de riqueza e destruidoras dos bens comuns para o viver juntos. Somos nós que devemos, como cidadania, demonstrar força e determinação na busca de mais democracia viva para que o Governo Lula possa ousar nas políticas emergentes necessárias. Podemos discutir e agir para que tais políticas sejam virtuosas em transformações das causas e capazes de afirmar direitos. Não poderemos sonhar mais alto no momento se para uma grande parte de nossos conterrâneos o sonho é um simples prato cheio de boa comida no dia a dia e ter um teto para o direito de se sentir bem em sua casa, comunidade, território, ter trabalho e renda, saúde e educação, sem medo de sua escolhas de ser morto por ser pobre, preto, indígena, mulher e por suas preferências religiosos ou sexuais.

Nossa revolução democrática pode ser tão simples e radical ao mesmo tempo, recomeçando aí e arrancado daí o sentido maior para enfrentar o que é necessário nesta conjuntura. De um lado, a destruição e os retrocessos provocados pelo governo fascista derrotado, com a sua ameaça ainda pairando em todas partes. De outro, mas igualmente estratégico, demonstrando o poder regulador do mercado que cabe ao Estado fazer pelo mandato que lhe delegamos. Aí o embate é ordem estatal, dos três poderes e dos diferentes níveis, até os territórios em que vivemos. Sabemos que o “senhor mercado” se sente senhor acima de tudo e capaz de sobreviver  a governos, desde que o estrutural de suas fontes não tenha a lógica alterada fundamentalmente, mesmo sendo obrigado a condicionalidades regulatórias e, sobretudo, contribuir muito mais para o coletivo com impostos sobre seus lucros e riqueza acumulada. Isto podemos querer e sonhar que desta vez o Governo Lula terá que liderar as propostas e obter conquistas, sob risco de nem podermos almejar dias mais justos para o conjunto da cidadania deste país.

Esta parada o Governo Lula poderá enfrentar com sucesso se nós tomarmos tal tarefa imediata como nossa também, das cidadanias ativas. Afinal, não podemos conviver com o “terraplanismo” dos especialistas do mercado quando enfrentamos com uma vitória o “terraplanismo” ambiental e da pandemia do inominável, como bem define tal desafio o Paulo Kliass.[i] Enfim, o modo de democracias conseguirem ser efetivas reside na disputa incansável por direitos e não na espera de soluções milagrosas do Estado, pois estas não existem.

[i] Kliass, Paulo. “Por trás do engodo do ‘Brasil Quebrado’”. Combate Racismo Ambiental. 09/11/2022.

Imagem: Salvador Dali, O Sonho Americano

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