Separatismo cabe ao neofascismo. Por Rogério Puerta

Nordeste dos feios, desdentados, pobres que vivem de migalhas

No Brasil 247

Chauvinismo, um termo pouco usado hoje em dia, mas muito se ouvia nos anos 70 e 80. Numa das novelas da Globo do horário nobre muitos se lembram do “Seu porco chauvinista!”, proferido por uma das protagonistas estrelares da tal novela global. Alguns confundiam, achavam que queria dizer “Seu machista!” ou algo assim. Outros associavam o chafurdar dos porcos com o chauvinismo, ambas interpretações bastante equivocadas.

Dizia-se nos anos 70 e 80, chauvinismo, obviamente um fruto direto do “Brasil: ame-o ou deixe-o” da ditadura militar tacanha e grotesca brasileira. Mais fácil seria dizer patriotismo, e nem precisaria salientar que seria uma vertente do patriotismo exacerbado. Haverá patriotismo moderado, neofascismo, sadismo, separatismo moderados?

Albert Einstein proferiu excelente frase sobre o conceito de patriotismo, em uma rara colocação sua algo emotiva: “Heroísmo no comando, violência descabida e toda a repugnante falta de sentido que se denomina patriotismo. O quão apaixonadamente eu odeio isto!”.

Patriotismo: algo próximo a desconhecer um primo seu, parente direto de seu pai e mãe, que porventura tenha nascido na outra margem do Rio Abunã, entre colocações de seringueiros situados ao que se convencionou chamar de terras brasileiras no Acre e terras bolivianas. Um muro, cerca, curso de água, linha geográfica retilínea imaginária que seja, uma divisória capaz de, absurdamente, separar consciências humanas, caracteres, cidadanias.

A bandeira do Brasil, um dos símbolos nacionais. Professam que a amemos, a bandeira que representa em estrelas do firmamento um estado revoltoso isolado dos outros, a conturbada e sangrenta história do estado do Pará no século XIX, defenestrado e combatido, afinal contrário à ordem nacional.

Imagine-se um separatismo que eleja estado pária que destoa do restante do País, então se separa daquela porção que destoa em dados, que é bem mais pobre, baixos índices sociais, que manda migrantes aos outros estados mais abastados e, tal porção do País empobrecida, traz a miséria para onde não há. Chauvinistas assim diriam.

Chauvinistas dos anos 70 e 80 e também os atuais autodenominados “Deus, pátria e família” fomentariam um separatismo ao contrário. Ao invés de nos separarmos, diriam eles, nós é que separamos o que há de sujo, expulsamos, jogamos ao lixo o estado miserável de gente preta, índia e pobre.

Separar, dividir, o foco claro é o incrementar dados sociais e econômicos ditos positivos por meio de uma não consideração de outros dados que tragam a média aritmética para baixo. Se o seu estado amado tem sozinho uma nota nove, o PIB que seja, não pode arcar com o rebaixamento para uma nota média cinco considerando todos os outros estados do País. Assim pensa o chauvinista, que nem sabe, nem tem consciência de sua postura, mas age nitidamente tal qual um puro neofascista.

O pleito eleitoral final de 2022, presidência da República em disputa, mostrou um fato gritante que, no entanto, não era novidade, já se sabia. A região Nordeste do Brasil destoou ainda mais flagrantemente de todas as outras, foi o Nordeste o responsável maior pela eleição de Lula e pela derrota momentânea do neofascismo brasileiro.

Neofascismo, ultranacionalismo, patriotismo, daí o chauvinismo. “Que viva nosso Brasil, pátria amada, nossa bandeira!”. Você deve ter ouvido isto inúmeras vezes de brasileiros e brasileiras nacionalistas, os tais que carregam a bandeira nacional a todo lado, incoerentemente também junto a símbolos exógenos outros, estátuas da liberdade, brasões ucranianos neonazistas, uma semiótica conspiratória global QAnon e coisas do tipo.

Você aposta com uma chance de nove em dez que, após o resultado final destas últimas eleições presidenciais, os derrotados nas regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste, ainda alguns raivosos dispersos da região Norte do Brasil, todos estes desejem no âmago, confessável ou não, bem desejem a simples e taxativa separação do Nordeste imundo, pobre, etc, etc, do restante do amado e glorioso, varonil, branco caucasiano, Brasil de Deus que o guia acima de tudo e todos.

Inconfessáveis, assim provavelmente desejam hoje mesmo, novembro de 2022, os ditos “Deus, pátria e família”, que para não dar tanto na cara, não serem tão explícitos, inventaram um subterfúgio, o “Deus, pátria, família e liberdade”.

Assim, imaginam, não seriam eles uma cópia plagiada do fascismo originário europeu do período entreguerras. Fascismo original que, por aqui em Terra Brasilis, encantou e embasbacou naquela época os integralistas camisas verdes simpáticos a Hitler e Mussolini. O rumo certeiro ao abismo.

“Deus, pátria e família”: Mussolini haveria mesmo de amar tal máxima. O Vaticano ao seu lado, poderia ir lá a pé tomar um chá se quisesse. Lema conservador católico-apostólico-romano, o mesmo catolicismo que fez vistas grossas à perseguição dos rivais judeus antes e durante a Segunda Guerra, povos hebreus não reconhecedores de Jesus Cristo como único filho do Senhor. Uma blasfêmia, pecado mortal imperdoável, punível com a danação agonizante eterna em círculos profundos infernais povoados por horrendos demônios. Assim diriam.

Você bem se lembra, outras ocorrências houve, porém bem se lembra que, lá nos anos 80, em São Paulo, certa vez você pegou ônibus coletivo e, numa das paradas, entraram de uma só vez uns dez nordestinos e umas duas nordestinas, todos com forte sotaque e expressões regionais repetitivas e enfáticas.

O grupo animado e vigoroso, em boa e amistosa prosa, uma prosa de colegas de trabalho, de labuta diária, muitos sorrisos sinceros, provavelmente saindo do horário de trabalho árduo de um canteiro de obras civis qualquer. Bem se lembra.

Você bem se lembra de, naquela época você um jovem adulto, vinte e poucos anos, lembra-se de sentir um profundo estranhamento, incômodo, com tais sotaques fortes e expressões regionais nordestinas. O grupo conversava animado, dentro do ônibus coletivo, era certamente um grupo entrosado, gente que convivia no dia a dia de labuta, em uma mesma empresa que os contratou.

Mas você se incomodou, falavam com sotaque muito carregado, muitas expressões regionais desconhecidas dos paulistas, você se incomodou com o ânimo do grupo, e foi aí que notou, você notou que o desconforto seu era com o contentamento do grupo, sua jovialidade, saúde, algo bem próximo de uma felicidade terrena momentânea. Diga-se: você invejou profundamente aquela felicidade alheia.

O sotaque nordestino incomoda aos paulistas, o sotaque paulista incomoda aos cariocas? Algo que se construiu, ou se destruiu, aos poucos. São Paulo, arranha-céus da região central e várias outras, só estão de pé hoje pois nordestinos suaram, sangraram, se esfolaram e caíram de andaimes e madeirames precários a cinquenta metros de altura nos anos 70 e 80. Eles, nordestinos, deram o sangue para o erguimento físico da infraestrutura de boa parte do Brasil.

“Baiano”, termo pejorativo saído da boca dos paulistas, “paraíba” da boca dos cariocas. Odeia-se quem carregue sotaque nordestino, historicamente, pois eles e elas foram mais fortes que nós, paulistas, pois têm uma fibra e resiliência ímpares, e são contentes, se aprazem com pouco, demonstram e não se envergonham quando se veem próximos à felicidade terrena. Inveja, ciúme. Por que não consigo encarar a vida tal qual eles e elas fazem? Pergunta-se o branco caucasiano chauvinista.

O Rio Grande do Sul, de histórico movimento separatista, a região Sul inteira, também São Paulo que seja, não se separarão do restante mais empobrecido do Brasil. Nem a região Nordeste será expulsa. Não mais. Talvez movimentos assim tivessem força e resolução em momentos históricos pretéritos da independência, proclamação da República, não mais.

Algo amadureceu, formou-se um grupo de pessoas dentro da Nação que claramente reconhece a riqueza da miscigenação, diferentes etnias, climas, geografias, culturas diversas, um caldo orgânico em enorme caldeirão quase mágico e inédito.

Muitas vezes ocorre de brasileiros não notarem, mas quando estrangeiros aqui chegam logo notam. Fato é que há diferentes etnias mescladas em qualquer país do mundo, mas, tal qual Darcy Ribeiro dizia, só acá a amálgama multidiversa se fez em perfeita proporção, uma sutil pitada, bem dosada, bem temperada, equilíbrio de aromas e sabores, só acá no Brasil a diversidade étnica, geográfica, cultural se fez tão abençoada.

O Deus dos neofascistas, aquele mesmo, deve mesmo ter olhado com mais cuidado para o Brasil. Ou não, ou resolveu Ele botar acá um grupo de fundamentalistas-religiosos dignos de tribos primitivas do Antigo Testamento ou de plena obscurantista Idade Média europeia. Tristeza ao constatar mais esta possibilidade.

Lula em Sergipe. Foto: Ricardo Stuckert

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