Por Lilian Caramelo, no openDemocracy/Diálogo Chino
Sua energia é conhecida por ser limpa, mas sua rápida expansão na região nordeste do Brasil não foi tão polida. No estado da Bahia, líder em geração eólica no país, as comunidades de pelo menos 11 municípios têm conflitos com empresas do setor, algumas delas em disputa há mais de uma década.
Cerca de 248 parques eólicos operam dia e noite na Bahia, gerando 32,98% da energia eólica do Brasil, com outras 196 usinas em construção ou planejadas no estado, segundo dados oficiais . Um deles, um projeto híbrido de energia eólica e solar com 405 turbinas, promete ser o maior do gênero no país.
Mas, à medida que os parques eólicos avançam pelo estado, eles cobiçam terras já ocupadas por povos agricultores, muitos deles desde os tempos coloniais, quando a pecuária se espalhou para a Caatinga, o bioma semiárido do nordeste do Brasil.
Muitas dessas comunidades praticam uma forma de agricultura familiar baseada no bem comum, conhecida como fundo de pasto, na qual a terra é compartilhada, sem limites ou cercas, e na qual as tradições de seus ancestrais são mantidas, geralmente sem títulos. formalidades.
Essas disputas acontecem principalmente nos “corredores de vento”, áreas do interior da Bahia onde a constância e a velocidade dos ventos garantem condições ideais para a geração de energia, mas onde populações castigadas pela pobreza, pelo clima semiárido e pela a precária governança da terra.
Em onze municípios do estado da Bahia existem atualmente comunidades com algum tipo de conflito ou reclamação contra grandes empreendimentos eólicos, segundo dados da Articulação Estadual de Fundo e Fecho de Pasto e Central das Associações de Fundo e Fecho de Pasto, duas organizações que representam essas comunidades de agricultores comunitários.
Enquanto algumas comunidades tradicionais entram em disputa diretamente com as empresas, principalmente por contratos, outras vivem conflitos internos, pois as famílias divergem sobre a instalação dos parques eólicos. A desordem política muitas vezes também prejudica seus esforços para obter títulos de terra e proteger suas áreas.
“É energia limpa com métodos sujos”, diz Marina Rocha, agente da Comissão Pastoral da Terra (CPT) de Juazeiro, município da Bahia. “Não conhecemos nenhuma empresa que tenha alcançado as comunidades de maneira razoavelmente honesta.”
Fundada na década de 1970, a CPT é uma das organizações mais atuantes na defesa dos direitos das comunidades rurais. Rocha diz que se deparou com contratos geralmente obscuros e linguagem jurídica que as comunidades rurais muitas vezes não entendem.
Acordos opacos com empresas eólicas
Campo Formoso, município localizado no norte do estado da Bahia, a cerca de 450 quilômetros de sua capital, Salvador, possui 22 fazendas de pastagens , algumas delas datadas do século XVII, segundo cartografia realizada pela Universidade Federal do Bahia (UFBA) em conjunto com o governo do estado.
A própria logomarca do município traz agora o desenho de turbinas no alto da Serra de Jacobina, serra da região. Mas as usinas não vieram sem impactos.
Em 2008, uma associação que representa os produtores de pastagens de uma comunidade chamada Fazenda Quina assinou um contrato com a multinacional CGN Brazil Energy, válido por 49 anos, para a instalação de três turbinas em um local onde vivem 12 famílias. A empresa é uma subsidiária da CGN Energy International, com sede em Shenzhen, China.
Naquela época, a CGN Brasil Energía estava começando a instalar o que viria a ser o Complexo Eólico Morrinhos, um complexo eólico formado por seis parques eólicos com capacidade instalada de 180 megawatts.
“Como os empresários do setor não costumam possuir terras nas áreas rurais do Brasil, os arrendamentos de longo prazo são a forma mais comum de acesso a terras para a instalação de turbinas. Acontece que na maioria das áreas com potencial no Nordeste há camponeses, muitos deles com modos de vida tradicionais”, explica Carolina Ribeiro, professora da Universidade Federal do Delta do Parnaíba (UFDPar), no Piauí, que estudou os conflitos vividos pelas comunidades de Brotas de Macaúbas, também no estado da Bahia.
Aunque admite que el pago mensual que recibe la comunidad – una media de 4.500 reales (840 dólares) – ayuda a la mejora de las infraestructuras comunitarias, José Salvo, presidente de la asociación Fazenda Quina, se queja de la falta de transparencia por parte de a empresa. O pagamento mensal acordado é de 1,5% da geração de energia das turbinas, mas a comunidade não sabe como é feito o cálculo, se é com base no valor bruto ou líquido da produção de energia, por exemplo.
“Quando ligamos para esclarecer, eles nos dizem que essa informação não é divulgada. Não sabemos quanto eles produzem e como comercializam a energia”, reclama Salvo.
O escritório brasileiro da CGN Brasil Energía disse ao Diálogo Chino que tem um contato de WhatsApp para os lojistas se comunicarem e que está trabalhando em uma ferramenta para disponibilizar seus dados de geração eólica. A empresa não deu entrevista e comentou que não comenta publicamente questões comerciais relacionadas aos contratos que firma com pessoas físicas, em respeito às políticas de compliance e confidencialidade do grupo.
Comunidades reconhecidas por lei
Reconhecidas por leis constitucionais, as comunidades têm como característica principal a ocupação e uso de áreas comunais. Em alguns casos, são titulares de terras ocupadas por descendentes de comunidades negras e indígenas e formam assentamentos agrícolas em áreas sem cercas, as chamadas terras soltas que se estendem atrás de suas casas.
Essa estratégia garante a sobrevivência dos animais na Caatinga seca, onde as chuvas são naturalmente irregulares e a vazão dos rios intermitente. As comunidades aprenderam a dar mais espaço para os animais pastarem em busca de comida e água em áreas mais verdes, recentemente irrigadas pela estação chuvosa.
O mapeamento da UFBA identificou 585 associações de pastoreio e 1.092 comunidades vinculadas a elas na Bahia. “Esse número não representa todas as comunidades, mas apenas aquelas que conseguimos identificar”, diz Guiomar Germani, uma das coordenadoras do estudo. Ele acha que o número pode ser muito maior.
Das 1.092 comunidades, 107 possuem títulos de propriedade comunal. Nenhum título de propriedade foi emitido para essas comunidades por 15 anos.
“Com a chegada massiva de parques eólicos, fica mais evidente que o Estado não está agindo para atender a uma demanda histórica [de titulação], mas sim para atender aos interesses da iniciativa privada”, critica Germani.
Germani alerta sobre a introdução de uma norma legal que favorece as empresas de energia, assinada pelo governo do estado e pela Procuradoria Geral do Estado em 2020. “Essa norma é entregar de bandeja o patrimônio de terras públicas para a gestão de parques eólicos”, afirmou estados.
Uma avaliação da Associação dos Trabalhadores Rurais da Bahia (AATR) cita pontos polêmicos da sentença, como o fato de a eólica poder selecionar a área de interesse e negociar diretamente com o Estado, ignorando o direito das comunidades à consulta prévia, garantida pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, da qual o Brasil é signatário. Além disso, a norma legal não define os critérios de proteção ambiental da Caatinga ou do patrimônio cultural que as empresas devem observar na instalação de complexos eólicos.
Assédio de parques eólicos
Em Campo Formoso e na vizinha Fazenda Quina, a comunidade Borda da Mata não assinou nenhum contrato, apesar do assédio das empresas eólicas sobre seu território desde 2011. O presidente da associação, Rubem Cruz, conta que na época levou o documento proposto pela empresa Casa dos Ventos para ser avaliado pelo sindicato rural local, e seu advogado constatou que 40% das cláusulas ameaçavam os direitos da comunidade. Estão neste momento a reescrever o texto, que pretendem apresentar caso os parques eólicos voltem a bater à sua porta.
Cruz diz que não é contra o desenvolvimento de uma matriz energética mais limpa. “O que somos contra”, diz o agricultor, “é a forma enganosa com que os parques eólicos chegam às comunidades, vendendo ilusões e falando apenas em dinheiro sem esclarecer o contrato”.
Na Borda da Mata, 30 famílias vivem da produção agroecológica de hortaliças, flores, farinha de mandioca e milho. A zona “solta” é conservada como reserva da vegetação natural da Caatinga, onde os típicos cactos florescem nas trovoadas (estação chuvosa), e os arbustos espinhosos impedem a passagem pela mata.
“Sim, queremos energia limpa, mas uma energia que nos inclua. Como está acontecendo hoje, muitas empresas estão se apropriando da terra e prejudicando nosso povo”, diz Cruz. “Se sairmos daqui, para onde vamos?”
A Associação Brasileira de Energia Eólica (Abeeólica), que representa 120 empresas do setor, reconhece que o setor está crescendo muito rápido e precisa acelerar o desenvolvimento de padrões sustentáveis.
“Detectamos algumas lacunas na regulamentação, mas estamos empenhados em mitigar os impactos com a criação de um guia de boas práticas, além de um selo de sustentabilidade”, disse ao Diálogo Chino a presidente da associação, Elbia Gannoum. No entanto, a adesão aos padrões socioambientais para certificação será voluntária.
O presidente afirma que o repasse de 1,5% da renda da geração foi aceito pelas comunidades, reiterando que é o mesmo percentual que é pago pelos royalties do petróleo nos municípios brasileiros. “Em média, a indústria paga 2.000 reais [US$ 375] por turbina por mês, então não acho que esse seja o problema”, diz Gannoum. “Aparentemente, as reclamações referem-se à transparência das contas de geração. Temos que considerar esse ponto.”
Segundo os responsáveis pela fazenda de capim Campo Formoso, o valor mensal pago por turbina gira em torno de 1.500 reais (280 dólares). Os valores e formas de pagamento costumam variar de um município para outro.
Parque abandonado gera violência em Casa Nova
Um ano após o primeiro leilão do governo federal para contratação exclusiva de energia eólica, em 2009, a Companhia Hidrelétrica do São Francisco (Chesf), subsidiária da Eletrobrás, maior geradora de energia elétrica do Brasil, iniciou a construção de seu primeiro parque eólico na baía. A usina Casa Nova I foi anunciada como a maior do país na época e marcou a entrada da Chesf no setor de energia renovável.
Porém, quatro anos depois, a crise financeira da fabricante argentina de aerogeradores IMPSA, que era a líder do consórcio, fez com que as obras parassem. Até hoje, 30 turbinas inacabadas permanecem abandonadas no local. Algumas, com hélices, ficam girando com a força dos ventos, mas não produzem energia. Outros, negligenciados, foram saqueados. O roubo dos cabos de cobre das estruturas trouxe violência para a região, segundo moradores.
Na comunidade rural de Malvão, 22 famílias vivem entre esses passivos ambientais. As portas que bloqueiam o acesso às turbinas, embora hoje estejam destrancadas, não foram retiradas da área e continuam obstruindo os caminhos entre as comunidades e o pasto dos animais.
“Eles não vinham mais e quando fechava a porteira não dava para entrar. Se fosse hoje não teríamos aceitado o trabalho”, diz o agricultor Jessé de Souza Alves.
Souza recebe 500 reais (US$ 94) por mês da Chesf para alugar o terreno e reclama da devastação causada pela movimentação de terra no local. Ele estima que a Casa Nova I demoliu cerca de 50 dos 300 hectares de vegetação nativa da comunidade. Foram cortadas espécies centenárias, como o umbuzeiro. A área afetada nunca foi restaurada.
“Sabemos que a geração eólica é boa, mas eles [empresas] não fizeram direito quando chegaram aqui”, lamenta o agricultor. “Recebemos essa miséria e toda a bagunça foi deixada lá.” A Chesf não respondeu às perguntas sobre responsabilidade ambiental.
Casa Nova é um município baiano onde 86% da população é vulnerável à pobreza e que tem um histórico de violentos conflitos rurais. Em 1978, as famílias dos pastos da comunidade Areia Grande se armaram e enfrentaram a Camaragibe, empresa agroindustrial acusada de grilagem de terras. Os posseiros expulsaram os pistoleiros da empresa, que acabou falida, e, vitoriosos, permaneceram no local.
A agricultora Vaneide dos Santos, presidente da associação das comunidades Garapa e Baraúna, era menina e morava em Areia Grande na época do conflito. Ainda criança, sua família foi deslocada à força para a construção da barragem de Sobradinho, que desalojou 72 mil pessoas de suas casas e inundou sete municípios, incluindo Casa Nova. Ela tem traumas causados por essas grandes empresas de energia.
“As empresas não vêm para trazer lucro, mas para tirar a paz”, diz o agricultor, que vive da criação de cabras, porcos e galinhas. “Estou tranquilo desde que saí de Areia Grande. Agora chegaram os aerogeradores.”
Hoje ele mora na várzea de Garapa, a oito quilômetros de uma das obras do parque eólico da Oitis. Ao subir no topo do pasto, você pode ver as turbinas sendo testadas. Na região, que faz fronteira com o Piauí, a multinacional espanhola Iberdrola está instalando dois dos 12 parques eólicos que começaram a operar este ano.
Com financiamento do Banco Europeu de Investimento, a geração de energia das 12 usinas será conectada à rede nacional. A empresa terá como foco a comercialização da produção no mercado livre de energia, ao qual as famílias brasileiras – e grande parte das empresas – ainda não têm acesso.
Os parques eólicos Oitis 21 e 22, que Vaneide vê de seu quintal, não trarão nenhuma segurança energética para suas terras e muito menos energia mais barata para a comunidade de Garapa.
A eletricidade chegou lá há apenas um ano, e Santos ainda tenta aderir à tarifa social de energia, voltada para famílias de baixa renda, enquanto luta para pagar contas mensais de 200 reais (US$ 37). Antes, ele usava painéis solares, mas a energia era escassa e suficiente apenas para tarefas essenciais, como manter a geladeira funcionando.
Algumas das turbinas mais modernas do mundo chegaram à Casa Nova, enquanto as famílias vizinhas continuam enfrentando a insegurança energética. Questionado sobre seu projeto, o grupo Iberdrola afirmou que a Neoenergia, braço brasileiro do grupo, “cumpre todos os procedimentos previstos na legislação e regulamentação ambiental brasileira, o que demonstra seu compromisso com o desenvolvimento sustentável e o respeito à sociedade”.
A família de Vaneide Santos é uma das cinco da associação que se opõem ao projeto. Outro grupo maior, de dez famílias, é a favor. “As famílias que concordam não têm muitas informações sobre como as empresas operam no Brasil”, diz Santos.
Ninguém em sua comunidade, Garapa, tem título de propriedade. Eles não têm título de propriedade sobre as áreas comunais de pastagem, nem sobre as áreas individuais e privadas de cada família.
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Jessé Alves na área da comunidade Malvão onde seria construído o parque eólico Casa Nova I. O projeto cortou 50 hectares de vegetação, mas foi abandonado. Foto: Camilo Lobo / Diálogo Chino