Setenta e duas horas. Por Julio Pompeu

No Terapia Política

Mesmo sob granizo, Olavo permanecia firme. De pé. Braços abertos como que crucificado. Era o momento de sua paixão. Recebia doloridas bolotadas de gelo com o êxtase de quem se santifica pelo martírio. Um foi certeiro no olho. O esquerdo. Outro sinal, pensou. Era sua dor de esquerda. Permitiu-se sair dali apenas para comemorar a prisão do ministro. Gritou, pulou, chorou de joelhos em agradecimento. Pouco depois descobriu que era mentira.

Não se abateu. Olavo sempre foi aguerrido. Teimoso como um jumento, diz sua ex-esposa. Semântica à parte, tem certamente a garra de um patriota de parabrisas de caminhão. Não seria uma frustraçãozinha como essa que haveria de abater aquele guerreiro. Além do mais, pensou, é preciso resistir apenas por mais setenta e duas horas. “Só setenta e duas. Está perto!”, Pensou. “Algo grande vai acontecer em 72 horas”. Ele sabe. Ele sente.

Setenta e duas horas depois aconteceu mais chuva. E vento. E uma nova notícia de outras setenta e duas horas de resistência patriótica. Chegou a pensar no porquê de setenta e duas. Como se tudo precisasse ser pensado e preparado em intervalos fixos de três dias. Lembrou-se de Jolimar, o pedreiro. Ele sempre dizia que terminaria a obra em três dias. Viveu uma eternidade contada em intervalos de setenta e duas horas. No final, já não acreditava mais nos prazos do Jolimar, mas nos prazos para o golpe acredita. Aquela era só a reforma do banheiro da suíte, agora, trata-se de mudar um país inteiro. É muito mais complicado.

Enquanto aliviava seus intestinos acocorado sobre uma valeta guarnecida por uma moita de Dama da Noite, leu pelo celular que algo grande iria acontecer. Havia muitos sinais. O presidente iria a um quartel. “Finalmente!”, pensou duplamente aliviado. Áudios e mensagens mal escritas davam conta de que o momento estava chegando. “Há sinais. Os sinais!”. Viu dois caminhões enormes parados ao final da ladeira que dá acesso ao quartel. Um azul e outro vermelho. Um deles com uma grande lona marrom por sobre a carroceria escrito num preto encardido: “Guerra”. Era um caminhão de guerra, em código. Disfarçado porque os militares são muito inteligentes. Assim como o presidente. Era verdade. Desta vez era. Agora, via com seus próprios olhos a ação em curso.

O presidente foi ao quartel como se não tivesse ido. Nada disse. Nada fez. Nadinha de nada. Olavo, preparado para a convocação bélica. Contentou-se, no dia seguinte, em guerrear apenas contra um pão de queijo duro. “Algo aconteceu”, pensou. “Os comunistas armaram alguma coisa. Foi isso.”. E mais setenta e duas horas. “Sim. Três dias e o presidente resolve o problema. Aí esses comunistas vão se ver com a gente”.

Mais três dias e nada, novamente. Tomando chuva, Olavo viu pela tv a imagem de um dos filhos do presidente curtindo a copa no Catar. Claro que só podia ser uma montagem. “Quem acredita em coisas da internet?”, pensou. Os comunistas não enganariam fácil o esperto Olavo.

Sentiu uma ponta de tristeza quando seu filho pediu para voltar para casa. “Está ridículo, pai”. Olavo não volta. Lamenta que os professores comunistas tenham feito a cabeça do filho. O garoto não é um patriota. Não acredita que tortura e derramamento de sangue tornem este país cristão. Os comunistas lhe roubaram o filho. Pena. “Mas eles vão se ver comigo. Daqui a setenta e duas horas. Só mais setenta e duas horas”.

Imagem: Christopher Ulrich, O Tolo

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