Em tramitação há 15 anos, projeto que tolhe o direito ao aborto legal pode ser votado nesta quarta. Proposta também impacta fertilização in vitro e pesquisas de células tronco. Deputadas e movimentos feministas tentam barrar retrocesso
Por Masra de Abreu, em Outras Palavras
Hoje, dia 14 de dezembro, será o último dia em que as Comissões da Câmara dos Deputados despacharão suas matérias na 56ª legislatura. Com o clima de final de ciclo, elas votarão projetos de leis consensuados, aprovar solenidades, entregar prêmios, mas isso para as 24, das 25 comissões permanentes da Câmara. Há uma delas que está apresentando um ritmo diferente das demais, a Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher.
Nesta quarta-feira, poderá ser votado na comissão um projeto nada amistoso para um fim de legislatura, o Estatuto do Nascituro ou PL 478/2007. O projeto original dispõe sobre a concepção de que o nascituro deve possuir personalidade jurídica, e que todo o aparato legal de leis, códigos penal e civil e normas técnicas precisam se readequar para garantir esse direito desde a concepção. Isso significa desestruturar o ordenamento jurídico vigente e inviabilizar o direito ao aborto legal garantido pelo Código Penal de 1940.
Durante esses 15 anos de tramitação, o projeto sempre está na lista dos preferidos da bancada conservadora, que cresceu com ele nesses anos. É fácil perceber como o Estatuto marca temporalmente a narrativa da bancada cristã com ares de fundamentalistas, e vem a cada legislatura atuando mais contra os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, principalmente na busca incessante de anular os permissivos de aborto legal no Brasil. São inúmeros projetos que apontam para essa tentativa de retroceder em mais de 80 anos de legislação. No Brasil, o aborto é crime, mas não é punido em casos de estupro, risco de vida da mulher e em casos de fetos anencéfalos, como determinou o STF, em 2012.
Atualmente a Comissão da Mulher é presidida pela policial Katia Sastre (PL/SP), que iniciou sua carreira política ao se tornar famosa por executar uma pessoa após uma tentativa de assalto. A deputada é da base do governo Bolsonaro, concorreu à reeleição, mas não obteve sucesso. Em seu último ato no Congresso, tenta emplacar junto com seus colegas da bancada cristã, lideradas por Diego Garcia (Republicanos/PR), Sóstenes Cavalcante (PL/RJ) e Chris Tonietto (PL/RJ), dentre outros o PL 478.
Há três semanas na pauta e faltando só mais um momento de deliberação da Comissão, o risco de votação e aprovação do projeto é alto, a comissão é tomada por conservadores que tentam ditar quais e como são os direitos das mulheres. Talvez pela articulação desses parlamentares ou por ingenuidade política, o atual relator do projeto, o deputado Emanuel Pinheiro (MDB/MT), persiste em sustentar seu parecer favorável a matéria. Para ele, em seu relatório, “o bebê anencéfalo, por certo nascerá” mesmo que por “segundos, minutos ou horas”, obrigando as mulheres a seguirem uma gestação até o fim de um feto que não terá vida extrauterina. Uma tortura. Para ele, é aceitável o sofrimento da mulher, e desconsidera a vida de milhares de meninas, mulheres e pessoas que gestam que podem ter seu direito ao aborto legal negado em caso de estupro e até mesmo em risco de vida: “o nascituro concebido em ato de violência sexual goza dos mesmos direitos que gozam todos os nascituros”. O relatório do deputado parece descolar a vida da mulher do embrião – e equipara a possibilidade futura de constituição de vida a uma vida plena de direitos e ciente de suas decisões. É uma desconsideração absoluta da vida das mulheres e das pessoas com capacidade de gestar.
Em suas redes, o deputado frisa que luta pelos direitos da mulher, no singular, mas oculta os direitos duramente conquistados nas últimas décadas. Com esse parecer, ele empurra mais ainda para ilegalidade as milhares de mulheres e meninas que anualmente recorrem ao aborto legal. Ele ignora também, em seu relatório, que anula as possibilidades de planejamento familiar para as mulheres e famílias que precisam fazer inseminação artificial. Ao equiparar o nascituro a uma vida plena de direitos, todo o avanço científico, inclusive com células troncos e fertilização in vitro correm risco de uma inviabilidade jurídica.
Contra o projeto estão as deputadas que atuam de forma conjunta para impedir que ele seja votado. Elas enfrentam nessas semanas uma verdadeira batalha na comissão que deveria ser para defender os direitos das mulheres. Buscaram utilizar de todos os mecanismos regimentais para atrasar a matéria, e discursivos para tentar mudar a opinião do relator e de outros parlamentares. Resistem e sofrem inúmeras violências políticas e ameaças de deputados que se dizem defensores da vida. Colocam seus corpos e suas histórias porque sabem o que é ser mulher, o que é ser mãe e o que é querer desejar e planejar sua vida reprodutiva, com plenos direitos. Falam em nome das milhares de meninas que foram mães. Elas estão lutando para garantir que o direito já existente dos casos de abortos legais no país não seja perdido. Somada a elas, dezenas de organizações e movimentos feministas fazem ações contra o projeto. A campanha Não ao Estatuto do Nascituro já possui 70 mil assinaturas.
Todos os recursos regimentais para atrasar a matéria foram utilizados. Na última semana, foi concedido um pedido de vista conjunta que vence nessa próxima sessão de quarta. A presidente da comissão tem utilizado de manobras para garantir que o projeto vá a votação de qualquer maneira. Na semana passada, antecipou o horário da sessão e garantiu ao projeto ser o único da pauta. Para esta quarta, o projeto terá sessão só para ele a partir das 13h30, tentando, assim, dar à bancada da bíblia uma vitória nessa legislatura que eles juravam que seria deles.
O Estatuto do Nascituro foi rebatizado na última sessão de Estatuto do Estuprador, o que revela bem a proposta de anular a vida das mulheres para prevalecer o controle dos corpos e perpetuar violências. As mulheres continuarão na resistência e não aceitaremos nenhum direito a menos. Queremos debater avanços na legislação para garantir políticas públicas de educação, assistência social, fortalecimento do SUS, fim dos todos os tipos de violência e direito total e irrestrito a autonomia dos nossos corpos.
Estatuto do Nascituro Não!