O ultraimperialismo em tempos dantescos. Por Luis Eustáquio Soares

Ele opera sob um Estado racista, patriarcalista e colonial. Impõe um mundo onde o sol não luz, como diria Dante Alighieri. Promove círculo de angústia a partir de três formas de alienação, inseparáveis do capitalismo. É preciso entendê-las

Outras Palavras

Título original: O ultraimperialismo estadunidense e A Divina Comédia de Dante Alighieri.

“O homem, em realidade, não é, como afirma a lírica aparência da sociedade capitalista, um ser isolado, mas um ser social, cuja vida está ligada por milhares de fios aos outros homens e ao conjunto do processo social.” György Lukács, Crítica, p.361.

Onde o sol não luz

Qual é a lei geral da história? Marx a formulou assim: “O ser social determina a consciência humana” (MARX, 2008, p. 58). E o que é o ser social hoje? É o modo de produção capitalista mundialmente estabelecido como imagem e semelhança do Pentágono, espelhado em cada ato de compra e venda dolarizado, que amalgama e molda o mundo realmente existente, entrelaçando instituições, crenças, modos de ser, estar e viver, com base na militarização geral das relações sociais.

Em relação ao planeta do dólar nas alturas, o poema-livro, clássico da literatura mundial, A Divina Comédia de Dante Alighieri, se atualizado, pode ser bastante sugestivo para o entendimento do sistema cultural, político e econômico do ser social contemporâneo, agitado por guerras, golpes, divisões e alienações dolarizadas – um verdadeiro inferno planetarizado. Refiro-me ao seguinte verso do Canto I, de “O Inferno”, que assim se diz: “tal que aconteceu que a fera inquieta,/ vindo contra mim a pouco e pouco,/ me empurrava para onde o sol não luz” (ALIGHIERI, 1979, p.11).

A voz lírica, nos versos citados, alude a uma loba faminta, insaciável, que impulsiona o poeta para onde “o sol não luz”, isto é, para o inferno. Mais adiante, no mesmo Canto I, o poeta Virgílio, guia de Alighieri, assim descreveu a loba faminta: “porque essa loba por cuja causa tu gritas/ não deixa passar pessoa alguma por seu caminho,/ mas a impede, a fim de a devorar;/ e tem natureza tão má e cruel,/ que nunca sacia a fome que a abrasa,/ e depois de ter comido tem mais fome que antes./ Muitos são os animais com quem se ajunta,/ e mais seriam ainda, até que venha o Veltro,/ que fará morrer a loba com dor” (ALIGHIERI, 1979, p. 15).

Comparo a loba faminta de Dante ao ultraimperialismo estadunidense, porque, como este, além da natureza má e cruel, se alia a outras feras, vale dizer: a oligarcas de todas as estirpes, latifundiários, juízes, procuradores, fundamentalistas das diversas religiões, fascistas, nazistas, lúmpens, pastores, influencers, identitaristas e ,ao fim e ao cabo, a todos e todas que acatam conscientes ou inscientes seu veredito: o inferno para a humanidade genérica, condenada a um mundo onde “o sol não luz”.

E esse mundo “onde o sol não luz” deve ser analisado em conformidade ao método do materialismo histórico, que deve assumir a seguinte perspectiva (desde que os EUA lançaram duas bombas atômicas em duas cidades japonesas, impondo-se como o soberano que passou a decidir o estado de exceção do capital em escala planetária): o mundo realmente existente, seu ser social, é o do capitalismo à imagem e semelhança do ultraimperialismo estadunidense.

Ora, isso diz tudo e não diz nada, criticarão, porque não explica a situação da América Latina, da África, da Ásia e tampouco questões mais imediatas e nem por isso menos importantes como a violência de gênero, o racismo. Trata-se de uma crítica procedente, sendo por isso que o método do materialismo histórico primeiro deve objetivar a totalidade do ser social realmente existente, porque estamos todos dentro dela e todos somos determinados por ela, uma vez que somos seres de relações sociais e estas são sim as do modo de produção capitalista dolarizado e militarizado.

Entretanto, é preciso ao mesmo tempo investigar as particularidades regionais, assim como as que dizem respeito à violência de gênero e persistência estrutural do racismo; e, para tal, é necessário dialeticamente analisar cada formação econômico-social, considerando sua história específica, a fim de entender, por exemplo, como a América Latina, a África, a Ásia ocupam a posição que ocupam em um mundo sobredeterminado pelo faroeste ianque.

De qualquer forma, uma coisa é certa: a escrita cuneiforme encontrada em placas no Iraque tem mais a dizer sobre a nossa realidade específica que a programação da TV Globo, quintessência da alienação.

As três formas inseparáveis de alienação do capitalismo

Se o ser social é o que precede a consciência, então não há nada a fazer? A consciência humana estará sempre refém da realidade que a determina? É evidente que não, embora outra premissa se imponha de modo irrecusável, qual seja: para mudar o mundo é preciso objetivá-lo, conhecê-lo em seus múltiplos aspectos, econômicos, políticos, militares, culturais, tendo em vista a realidade tal como é e não como se suponha que seja; a realidade do modo de produção capitalista, na era do complexo industrial-militar-cultural dolarizado do ultraimperialismo estadunidense.

Antes de analisá-lo, o ultraimperialismo ianque, é preciso fazer a pergunta básica: o que é o capitalismo? É o modo de produção mundial de alienação, em tempo real, também chamado de sistema integrado de fetichismo da mercadoria. E o que é a alienação? É sempre, em qualquer caso, o aviltamento do trabalho e não existe nada mais aviltado e humilhado que o trabalho alienado, porque confirma a sua própria condição de extorquido, desumanizado.

Existem três formas inseparáveis e objetivas de alienação no modo de produção capitalista: a alienação que diz respeito à relação estrutural e antagônica entre o capital e o trabalho, a alienação mercantil e a alienação relativa à divisão social desigual do trabalho.

São alienações intercambiáveis e imanentes à civilização burguesa, pois, como evidenciou Marx na segunda edição alemã de O capital, o capitalismo é um sistema que funciona de cabeça para baixo porque nele o capital, que não produz nada, é o dono de tudo; e o trabalho, que produz tudo, não é dono de nada.

A primeira forma de alienação do capitalismo é a que diz respeito, assim, às relações sociais antagônicas e interdependentes entre os donos dos meios de produção, os burgueses; e aqueles que só têm a sua força de trabalho, as suas vidas, para sobreviver, entregando-as aos donos do mundo – a classe operária.

A alienação em primeiro grau no sistema do capital é a do trabalho, da classe operária, por estar ao mesmo tempo alienada dos produtos de seu trabalho, das mercadorias que produz, e de si mesma, por gastar o tempo de seu trabalho para outrem – para os burgueses, que também são alienados, mas de uma forma distinta, de segundo grau, por não serem efetivamente os produtores de suas riquezas, o que os transforma em alienados em relação aos trabalhadores que os enriquecem.

A primeira forma de alienação da civilização burguesa evidencia, como salientaram Marx e Engels em A sagrada família, que no capitalismo a alienação é a regra, embora essa regra sempre beneficie os burgueses, sendo a condição objetiva da desumanização da classe operária.

Os primeiros se enriquecem com a alienação, tornando-se semideuses; e os segundos, diferentemente, tornam-se miseráveis no interior de um sistema que os extorque, condenando-os a serem os produtores de um mundo que sempre se voltará contra eles, inexoravelmente.

Esse é o motivo pelo qual fundamentalmente são os trabalhadores que estão na obrigação de se desalienarem, razão por que não existe nada mais importante na vida, sob qualquer ponto de vista, que o trabalho desalienado, chamado por Marx e Engels de trabalho revolucionário, no Manifesto comunista.

Se o capitalismo é um sistema de dupla alienação, a do burguês e do operário, tudo o mais que advém nele e dele é alienação. Uma delas, a segunda forma, diz respeito às relações mercantis, cuja fórmula, projetada por Marx em O capital, é esta: M-D-M (D, dinheiro; M, mercadoria) e, ato contínuo, D-M-D, dinheiro, mercadoria, dinheiro. A civilização burguesa é um sistema universal de relações entre mercadorias e dinheiro, essa mercadoria das mercadorias, razão por que se constitui antes de tudo como uma civilização em que tudo tende a se tornar mercadoria – e tudo é tudo mesmo!

Ora, se a relação entre capital e trabalho, como primeira e dupla forma de alienação do modo de produção capitalista, está na base de um sistema de relações alienadas, a mercantil, essa segunda forma, consagra no cotidiano a primeira, universalizando relações alienadas entre mercadorias e ao mesmo tempo impulsionando e ratificando a terceira, qual seja: a da divisão desigual internacional do trabalho – vale dizer, para ser redundante, do trabalho alienado atomizado em nome da produtividade do capital.

Como demonstraram Marx e Engels em A ideologia alemã, a divisão do trabalho pôs em campos desiguais e muitas vezes opostos a cidade em relação ao do campo, assim como o trabalho intelectual e o manual, separando indústria, comércio e agricultura, ao mesmo tempo em que conformou formas de pensar, valores e estilos de vida coextensivos aos pontos de vista separados alienadamente um do outro; e desigualmente posicionados no que diz respeito aos ramos da indústria, do comércio e da agricultura.

O patriarcalismo inaugurou a divisão entre trabalho masculino e feminino, ao mesmo tempo em que substituiu uma formação econômico-social matrilinear por outra, patrilinear. O modo de produção escravista impôs a divisão entre trabalho livre e o trabalho escravizado, assim como o modelo medieval ratificou relações sociais de produção divididas por estamentos piramidais, separando nobres de plebeus. O mercantilismo, no período de expansão colonial europeia, dividiu o mundo entre colonizadores e colonizados, assim como o modo de produção capitalista se estruturou e se estrutura pela divisão antagônica entre as classes, a burguesa e a operária.

A divisão social do trabalho é um efeito do desenvolvimento das forças produtivas. No interior do modo de produção capitalista, Marx, sempre Marx, identificou a sua lei, ao mesmo tempo o seu calcanhar de Aquiles: a tendência de queda da taxa de lucro, tornando a civilização burguesa historicamente condenada a se findar. Por quê? Porque a formação orgânica do capital, sob a forma de capital constante (meios de produção e matérias-primas) torna os custos da produção cada vez mais caros, diminuindo tendencialmente os custos do trabalho.

O burguês e o trabalhador são classes antagônicas. Entretanto, em um sistema em que a alienação é a regra, são também classes alienadamente interdependentes. Ao acumular riquezas, o capital lança cada vez mais o mundo do trabalho para a miséria, esse inferno dantesco. Isso torna os custos do capital cada vez mais altos, acirrando a concorrência entre capitalistas e gerando a superprodução de mercadorias.

Tudo funciona como se a segunda forma de alienação, a das relações mercantis, entrasse em curto-circuito porque o capitalista não produz mais-valor por geração espontânea e tampouco pelo avanço da tecnologia e, assim, do plus-valor ou mais-valor relativo. A interdependência alienada entre o capital e o trabalho está fadada à crise por culpa da própria alienação do capitalista que, como dono dos meios de produção, só conhece a lógica da acumulação de capital.

E, é bom que se diga, essa não é uma questão moral. Não depende de o capitalista frear sua voracidade de acumular. É uma questão de alienação. A consciência de classe do capitalista é necessariamente alienada porque, de outro modo, deixará de ser capitalista e assumirá, como fez Engels, um filho de capitalista, a posição do trabalho contra o próprio capital.

A consciência de classe para os donos dos meios de produção é inevitavelmente alienada porque o capital é a quintessência da alienação e não existe sem esta. Somente a classe trabalhadora está na obrigação de adquirir consciência de classe, o que significa necessariamente deixar de ser alienada e tomar para si o mundo que efetivamente é seu.

O sistema burocrático integrado do ultraimperialismo estadunidense

E então por que o capitalismo ainda não acabou? Precisamente por causa da emergência de uma burocracia que se desenvolveu com o objetivo de salvar o capitalismo de si mesmo, gerenciando-o por meio da manipulação da terceira forma de alienação da civilização burguesa, a da divisão social internacional do trabalho alienado. Lênin, em Imperialismo: etapa final do capitalismo, analisou de forma consequente o perfil dessa burocracia, associando-a à emergência do capital monopólico – é a burocracia imperialista.

E o que é o capital monopólico? Antes de tudo, antes de ser o capital privado dos grandes trustes, antes de ser o capital bancário inseparável do capital industrial, é o capital do Estado monopólico imperialista ou do Estado, com sua superestrutura jurídica, militar, administrativa, dedicado a salvar o capitalismo de si mesmo, explorando a divisão internacional desigual do trabalho, a fim de saquear as matérias-primas e o trabalho dos povos.

Entretanto, na era do capitalismo liberal, dominado pela Inglaterra, o Estado pré-monopólio britânico tinha como parâmetro a Companha Britânica das Índias Orientais, fundada em 1600, tendo persistido até 1874, data que inaugurou não apenas o começo do surgimento do capital monopólico e assim a emergência do imperialismo, mas também a crise do sistema colonial capitalista e liberal inglês, que teve como grande êxito a derrota da China entre 1839 e 1860, usando como subterfúgio, para derrotar e humilhar o Império Celeste, duas guerras do ópio e a guerra religiosa, a de Taiping.

A partir de 1874, duas burocracias monopólicas, disciplinadas para manipular a divisão internacional do trabalho em escala planetária, iniciaram não apenas uma colaboração nos bastidores, mas também uma concorrência sem tréguas. Refiro-me à burocracia monopólica alemã e à norte-americana, vanguardas, no período, da administração de seus respectivos Estados monopólicos, com a vantagem da burocracia do Estado monopólico estadunidense.

E por quê? A primeira vantagem está relacionada, em diálogo com Michel Foucault de Nascimento da biopolítica, com fato de que a burocracia do Estado monopólico alemã ser ordoliberal e a estadunidense ser anarcoliberal. No primeiro caso, existia uma separação entre o Estado monopólico e os monopólios privados em formação. No segundo, por sua vez, já não há diferença alguma entre as duas instâncias, porque tudo se torna uma porta-giratória, não fazendo mais sentido sequer falar em capitalismo, em termos clássicos, com o protagonismo dos donos dos meios de produção, porque tudo é ao mesmo tempo superestrutura estatal e iniciativa privada.

A figura do filantropo, a começar pelas gerações dos Rockfeller, é exemplar nesse contexto. Afinal de contas, o que são um Bill Gates, um Jeff Bezos, Zuckerberg, Elon Musk? São empresários, donos de meios de produção? Sem a chuva de dólares do Federal Reserve, existiriam? Que função ocupam esses burocratas como agentes do ultraimperialismo estadunidense? E o que é afinal este último? É a prova cabal de que a lei do fim histórico e estrutural do capitalismo, o da tendência da queda da taxa de lucro, simplesmente é cientificamente verdadeira.

O capitalismo não funciona sem um Estado racista, de perspectiva colonial ou imperialista. Rosa Luxemburgo deu um passo adiante de Marx, a propósito. Em A acumulação do capital retomou o tema da crise estrutural do capital, esse alienado ao quadrado, para argumentar acertadamente que a civilização burguesa não duraria um dia sequer, se tivesse que depender apenas da extorsão do tempo de trabalho do operário para extrair o mais-valor e, por tabela, o lucro.

Para a espartaquista, a acumulação primitiva do capital não o antecede apenas, como asseverou Marx, porque a rigor é sua regra geral, transversalmente. Sem o sangue dos povos e o saqueio da natureza o capitalismo simplesmente, alienadamente sólido, desmancharia no ar. É por isso que a civilização burguesa, em seu período de dominação europeia, nunca dependeu apenas de si, tendo conseguido desenvolver suas forças produtivas à custa do sistema colonial europeu e, portanto, da África, da América Latina, da Ásia, Oceania.

As duas guerras mundiais do passado século foram o resultado trágico do último suspiro do capitalismo, gerenciado pela burocracia europeia, inapta para garantir a acumulação ampliada do capital porque se concentrou em gastar energia para conter as lutas de classe que ocorreram no interior da Europa. EUA, por sua vez, não conheceram lutas de classes internas (a não ser episodicamente), pois a anteciparam, controlando-as com antecedência.

Para analisar esse último argumento, o diálogo com o filósofo das modernidades europeia, estadunidense e latino-americana, Bolívar Echeverría, é imprescindível. Em seu livro Crítica de la modernidad capitalista, o teórico equatoriano descreveu a modernidade estadunidense como uma espécie de metamodernidade ou modernidade da modernidade europeia, pois se desenvolveu ocupando sempre uma posição de observadora privilegiada de tudo que ocorria na Europa, com dois objetivos entrelaçados:

1. Evitar que a agitação das lutas de classe europeias, como a Revolução Francesa de 1789, as revoltas populares de 1848, a Comuna de Paris de 1871, dentre outras, ocorressem ou influenciassem a classe operária norte-americana;

2. Manipular as contradições e conflitos interclasses da Europa para superá-la no âmbito da concorrência capitalista, assumindo, assim, a hegemonia da gestão anarcoliberal do capital mundialmente estabelecido, o que efetivamente tornou-se possível após o fim da Segunda Guerra Mundial.

O ultraimperialismo estadunidense, sendo a metamodernidade, é também o metaimperialismo europeu. Emergiu e se tornou hegemônico salvando o capitalismo de si mesmo, ao se transformar em metacapitalismo, posição alcançada por meio de superestrutura burocrática, ao mesmo tempo militar, econômica, política, cultural, acadêmica.

As duas guerras do ópio, assim como a guerra religiosa de Taiping, por meio das quais a Inglaterra conseguiu submeter a milenar China, no século XIX, são as duas inspirações fundamentais dos EUA para submeter a humanidade, expandindo-as de tal modo que tudo, qualquer coisa, tenda a se transformar em cavalo de Troia de ópio (logo, de alienação) e de guerra santa, manipulando e editando sem cessar religiões, seitas, crenças, valores, identidades.

As duas guerras mundiais do passado século foram um grande negócio para os EUA, garantindo-lhes a reprodução ampliada de seu Estado monopólico, para, antes do final da Segunda, com o Acordo de Bretton Woods de junho de 1944, tornarem-se de fato o centro do sistema financeiro mundial, tendo o dólar como moeda de referência, ao mesmo tempo de troca e de reserva.

Com isso, apenas com isso, com o dólar como moeda de troca e de reserva, puderam finalmente comprar o trabalho dos povos, impondo o seu próprio modelo de capitalismo, à sua imagem e semelhança: o capitalismo estilo Pentágono, devotado a impor a reprodução ampliada de seu capital por meio de golpes, guerras, saqueios, acumulação por despossessâo, sempre sorrindo para a foto, como se fora o justo, o civilizado, o democrático, o correto, o ético, o herói de seu sistema integral de publicidade e, assim, de mentiras.

E não bastasse isso, moldou instituições ditas internacionais como cavalos de Troia de sua hegemonia, como tem sido o cavalo de Troia ONU, OMC, FMI, BM, OEA, OMS, União Europeia, OTAN, Tribunal de Haia, FEM, Bancos Centrais, espelhando-as nos fluxos sem fim e sem teto do dólar nas alturas, ao mesmo tempo opiáceo e religião da humanidade, ancorado no “I am” de sua indústria cultural, igualmente “sem teto” para mentir, tergiversar, editar, reeditar, transformando-se no centro mundial de produção de fetichismos e, assim, de alienações.

Se nem tudo que reluz é ouro, por outro lado, tudo que a superestrutura burocrática do anarcoliberalismo ianque toca torna-se inevitavelmente cavalos de Troia, como são seus cavalos de Troia identitários, esses novos marines fetichizados como militantes negros, homoafeticos, femininos. Sem contar os cavalos de Troia teóricos, como multiculturalismo, estudos culturais, pós-colonialismo, decolonialismo, ancestralidadade, usados como referências inclusive e até sobretudo para estabelecer intercâmbios acadêmicos de sul para o sul.

Por exemplo, não é incomum, no contemporâneo, que o campo teórico designado como ancestralidade seja a referência epistemológica para o intercâmbio acadêmico entre o Brasil e a África, sem, supostamente, a presença estadunidense. Afinal, a função dessa superestrutura mundial do ultraimperialismo, estilo cavalo de Troia, inclusive teórica, não é outra senão esta: sugerir que tudo parta da gente, como ato de vontade própria, como se não fosse made in USA, embora, em um campo teórico como o citado domine as seguintes palavras de ordem do sistema de alienação estadunidense: fuga da história e, assim, da luta de classes, sobretudo a da soberania nacional, a soberania dos povos, em nome de uma fetichista terra prometida romantizada, ancorada em um passado remoto anterior ao sistema colonial europeu.

E o sistema colonial, capitalista e ultraimperialista estadunidense, não vem ao caso? Sim, vem, empurrando-nos, de modo sub-reptício, para a terra prometida ancestral, no contexto em que o inimigo passa a ser a China, por trazer consigo um processo de industrialização que deve ser combatido em nome do respeito à natureza. Conveniente, não? Stay-behind – e nessa posição tudo se torna conveniente!

Esse sistema cavalo de Troia integral do ultraimperialismo ianque funciona como uma “sociedade cavalo de Troia” ocupando lugar da sociedade real, historicamente situada, dos povos. Se o que está em jogo, com a emergência do imperialismo, é a manipulação da divisão social desigual e internacional do trabalho, para empurrar a reprodução ampliada do capital para frente, como funciona a tecnologia de poder do ultraimperialismo ianque no interior dessa terceira forma de alienação do capitalismo?

Funciona retomando a divisão do trabalho que separou as cidades dos campos. Há no sistema de cavalo de Troia integral ianque os cavalos de Troia do tipo urbano, criados no interior do Partido Democrata e das instituições globalistas, como a Comissão Europeia e o Fórum Econômico Mundial; e os cavalos de Troia do Partido Republicano, de reedição sem teto do faroeste como cavalo de Troia dos neonazistas ucranianos, dos bolsonaristas no Brasil, do Estado Islâmico na Eurásia, da extrema direita e do fundamentalismo religioso por todo o planeta, incluindo o neopentacostalismo, em que cada igreja funciona igualmente como cavalo de Troia dedicada à guerra santa de expulsar o demônio da soberania nacional plena.

E como a divisão social do trabalho está relacionada com as forças produtivas e, assim, também, com o avanço da ciência e das tecnologias, na época da automação, da digitalização, da nanotecnologia, da biotecnologia novos cavalos de Troia estão se conformando, no front de batalha contra a humanidade, inaugurando a era da colonização genética de todos os seres vivos do planeta.

Não podemos subestimar esse novo cenário. A atual pandemia é também o seu atual teatro de guerra e, se o mundo realmente existente é este do ultraimperialismo ianque, o da produção planetária de fetichismos urbanos e camponeses, respectivamente opiáceos bélicos e guerras santas, não nos resta alternativa, retomando Dante Alighieri, agora do Canto III de “Inferno”, senão esta: “Deixai toda a esperança vós que entrais” (ALIGHIERI, 1979, p. 27).

Parece que nesse quesito a Rússia, novamente, é a vanguarda, mais que a China, razão por que a seguinte frase de Putin significa o começo do fim de toda e qualquer esperança nos cavalos de Troia do Ocidente: “O barco já partiu e não há mais retorno”.

Como líder do mundo multipolar, que é e deve ser cada vez mais, aprenda isso, Lula: abandone toda a esperança no Ocidente, estendendo esse abandono total da esperança aos líderes europeus, pois são os “pecadores” do oitavo círculo de A divina Comédia de Dante; os dos falsários, hipócritas e corrompidos, estando a serviço do sistema burocrático do nono círculo: o do ultraimperialismo estadunidense, o mesmo que acaba de condenar Cristina Kirchner a 6 anos de cadeia, tornando-a inelegível para sempre, assim como o mesmo que acaba de destituir Pedro Castillo no Peru, mantendo-o no cárcere.

E tudo funciona em tempo real, com a internet como cavalo de Troia, não sendo por acaso que assim Wikipédia descreva o líder popular peruano: “José Pedro Castillo é um professor, líder sindical e político peruano que serviu como presidente do Peru de 2021 a 2022”.

Sim, “tudo escrito e prescrito”, para lembrar uns versos de Drummond, “em nebuloso estatuto” de um mundo regido por regras.

Quais?


Referências:

ALIGHIERI, Dante. A divina comédia. Rio de Janeiro: Otto Pierre Editores, 1979.

ECHEVERRÍA, Bolívar. Crítica de la modernidad capitalista. La Paz, 2011.

ENGELS, Friedric; MARX, Karl. A ideologia alemã. Trad. Rubens En­derle, Nelio Schneider, Luciano Cavini Martorano. São Paulo: Boitempo, 2007.

_____. A sagrada família. Trad. Marcelo Backes. São Paulo: Boitempo, 2003;

FOUCAULT, Michel. Nascimento da biopolítica. Tradução: Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

LENIN, Vladimir Ilytch. Imperialismo, etapa superior do capitalismo. São Paulo: Global, 1979.

LUXEMBURO, Rosa. La acumulación del capital, Ciudad del Mexico: Editorial Grijalbo, 1967.

MARX, Karl. KARL, Marx. O 18 de Brumário e Cartas a Kugelmann. Trad. Leandro Konder e Renato Guimarães. 4.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.

______. Contribuição à crítica da economia políticaTrad. Florestan Fernandes. São Paulo: Expressão Popular, 2008.

———. Pósfácio à 2º EdidiçãoIn.: O capital. Livro I. Trad. Rubens En­derle. São Paulo: Boitempo, 2017, p.91.

______. O capital. Livro III. Trad. Rubens Enderle. São Paulo: Boitem­po, 2017.

SOARES, Luis Eustáquio. A sociedade do controle integrado: Franz Kafka e Guimarães Rosa. Vitória: Edufes, 2014.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto comunista. Tradução Álvaro Pina e Ivana Jinkings. São Paulo: Boitempo, 2010.

Imagem: O Abismo do Inferno (1480), de Sandro Botticelli

LUIS EUSTÁQUIO SOARES

É poeta, escritor, ensaísta e Professor da Universidade Federal do Espírito Santo; autor, dentre outros de “A sociedade do controle integrado: Franz Kafka e Guimarães Rosa”, “O ultraimperialismo americano e a antropofagia matriarcal da literatura brasileira”, “Sete ensaios sobre os imperialismos, em coautoria com Luis Carlos Muñoz”, “O evangelho segundo satanás” (romance). Coordena o Projeto de Extensão Teatro dos Desoprimidos.

 

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