A batalha pelo ministério da Saúde: o SUS ou o Centrão

Arthur Lira chantageia Lula, de olho na pasta e no orçamento secreto. Mas o compromisso do presidente eleito deve ser com a população que reconhece a imensa importância do SUS – representada, hoje, na possível indicação de Nísia Trindade. Cederá?

Por Gabriel Brito, em Outra Saúde

Caiu como uma bomba a notícia de que Arthur Lira estaria empenhado em levar o ministério da Saúde para seu grupo político. A suposta oferta de 150 votos pela aprovação da PEC da Transição (que garantiria o Bolsa Família fora do teto de gastos) representou um importante tensionamento político. Enquanto o golpismo neofascista segue nas ruas, a batalha pelo controle do próximo governo toma a frente do debate. Na grande mídia, foi dada como certa a nomeação da sanitarista e presidente da Fiocruz Nísia Trindade de Lima. Mas, aparentemente, a resposta de Lula à chantagem de Lira é suspender qualquer nomeação até a aprovação da PEC.

Nas entidades técnicas, científicas, grupos de defesa do SUS e categorias organizadas, a indignação é forte. A Frente pela Vida publicou pela manhã nota na qual afirma que “para cumprir esta missão, o cargo de gestor(a) nacional do SUS deve ser ocupado por uma pessoa com tradição no SUS, conhecedora do sistema público de saúde, comprometida com os avanços necessários à superação das deficiências atuais do SUS e sem conflito de interesses, ou seja, capaz de evitar qualquer barganha política com posições no ministério da Saúde”.

Outra importante manifestação veio de uma nota assinada por 42 entidades relacionadas ao setor, entre elas o Conselho Federal de Enfermagem e a Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade. “A equipe de transição já manifestou a destruição em que se encontra o ministério da Saúde e os grandes prejuízos ao SUS, patrimônio do povo brasileiro, e que refletiu a completa inação durante a pandemia. Cabe destacar que mesmo com todos os ataques, desmontes e retrocessos, só o SUS, com suas/seus trabalhadoras(es), salvou a população de uma tragédia ainda maior, que ainda teve como resultado a interrupção da vida de quase 700 mil pessoas. Com o país de volta ao Mapa da Fome, é inadmissível que esteja sendo barganhada a PEC que viabilizará o Bolsa-Família. Não aceitaremos chantagens!”.

Na opinião daqueles que compreendem não só as necessidades da saúde pública como também a dinâmica de disputas políticas, Lira visa matar dois coelhos com uma cajadada só. De um lado, garante para sua base de apoio o ministério que terá o maior orçamento de 2023; de outro, que o passado de desmandos e corrupção siga oculto.

“O PP, de Arthur Lira, teve nas mãos o ministério da Saúde no período de Temer, após o golpe de 2016. Foi quando o engenheiro e deputado federal Ricardo Barros (PP-PR) foi o ministro. Vem daquela época o início do desmonte de órgãos como o Departamento Nacional de Auditoria do SUS (DENASUS), ações de auditoria e a CartaSUS. Vale lembrar também que a CPI da Covid demonstrou esquemas dentro do ministério da Saúde, supostamente envolvendo pessoas relacionadas ao ex-ministro Barros e ao PP”, afirmou Luis Carlos Bolzan, ex-diretor do DENASUS, em entrevista à jornalista Conceição Lemes, do Viomundo, nesta quarta.

Se a reeleição ao comando da Câmara de um político fisiológico pode ser inevitável, entregar o controle do SUS, num contexto de enorme demanda reprimida, a quem garantiu a continuidade de uma política sanitária irresponsável que matou tanta gente é uma desmoralização grande demais para um governo que representa a esperança na retomada de alguma normalidade institucional e social.

“O Lula sabe que para governar precisa ter os apoios da sociedade civil organizada que acredita nele. E trair esse compromisso assumido com a área de saúde seria desastroso. Não dá pra buscar uma governança entre partidos, o executivo e o legislativo às custas da governabilidade democrática, ou seja, dos compromissos sociais e políticos que ele assumiu”, disse Sônia Fleury, pesquisadora da Fiocruz e cientista política, ao Outra Saúde.

Isto é, negociar com um legislativo hostil aos interesses populares é uma coisa. Colocar o SUS, talvez principal instrumento de uma política pública restauradora no próximo ano, na mão de quem elevou a inépcia administrativa ao inimaginável é outra. O comentário de Geraldo Alckmin sobre a dificuldade do grupo de transição é ilustrativo da herança de destruição e sabotagem do Estado deixada por Bolsonaro. E blindada por Lira.

“Há documentos desaparecidos, há apagões de dados que sempre existiram em governos anteriores e há rombos financeiros inexplicáveis”. Simplesmente não existe registro de nada. Os dados dão a entender que o governo Bolsonaro aconteceu na Idade da Pedra, em que não havia palavras ou números. Há sistemas governamentais que não são abastecidos desde 2020 e ninguém tem explicação. A verdade é que o governo Lula não tem como saber o que precisa ser feito com base nos indicadores porque eles não existem. A política pública terá que ser criada do zero”.

Não é pouca coisa. Com a ajuda da mídia corporativa, que navega entre editoriais pró-austeridade e balões de ensaio, o país acordou diante da pressão de um grupo responsável ou conivente com: escândalos na tentativa de se comprar uma vacina não aprovada; sabotagem deliberada da campanha de vacinação mesmo após a compra dos imunizantes; militância presidencial contra a vacinação; esquemas de corrupção com verbas que deveriam ser destinadas ao SUS por meio do orçamento secreto; leniência na vacinação infantil.

“Tem muitos interesses, como o submundo do Ricardo Barros, que são interesses de corrupção, mas disso já sabemos e a mídia até repercute. No entanto, a ideia deste setor, inclusive da mídia empresarial, é evitar a nomeação de alguém do grupo sanitarista para o ministério, o que corresponde ao interesse dos grupos privados de saúde, que lhe pagam publicidade. Não é que Folha e Estadão defendem corrupção, mas têm interesses particulares que levam a isso”, explicou Sônia.

Servidora do ministério da Saúde no Rio de Janeiro, capítulo à parte dos jogos de poder pelo orçamento do setor, como mostrou Outra Saúde, Lúcia Pádua viu de perto a dobradinha da corrupção com a precarização do serviço. “Lira não aceita apenas comandar o orçamento secreto pela câmara, quer colocar seus tentáculos no executivo também, principalmente na saúde, para onde vai a maioria das emendas de relator. No caso de algum embaraço, seus agentes no ministério estarão a postos para liberar os empenhos. É sobre isso, é sobre dinheiro e poder. Não é sobre reconstruir a saúde”, criticou.

Dessa forma, Sônia Fleury considera que não há a mínima condição de ceder. “Penso que o país ficaria ingovernável porque a população estaria muito insatisfeita. Muitos recursos ou vão ser desviados pela corrupção ou canalizados para a área privada sem a melhoria da qualidade e da atenção à saúde da população. Seria um desastre. Lula conta com todos os sanitaristas e precisa contar com a população, que se não for bem atendida irá desacreditá-lo”, sintetizou.

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