Enigmas e crise da utopia democrática do PT no Governo Lula 3. Por Tarso Genro

Cabe ao PT retomar o rastro da sua utopia democrática e social para refundar os caminhos da igualdade muito além de políticas compensatórias

em Terapia Política

Na apresentação de Bartolomé Clavero (do livro de Nicola Matteucci, “Organización del Poder y Libertad”, Ed. Trotta, Madrid, 1988, pág.12) está uma aparentemente simplória definição da “utopia democrática”. Tal definição supostamente irrisória, todavia, é básica para diferenciar uma ditadura como imposição de um “sistema (material) de poderes”, de uma democracia como estrutura que visa assentar um “sistema (formal) de direitos”, correspondente a todos os cidadãos regidos por uma Constituição legítima. Eis a fórmula, em tradução livre: “sem direitos de liberdade e garantias de justiça não há poderes nem legislativos, nem governativos, nem parlamentares, nem representativos, que resultem – de verdade – em poderes constitucionais”. Clavero “crava”, com o seu enunciado, um programa político e jurídico que é o roteiro de uma utopia.

É a utopia democrática, que só pode ser configurada em um Estado Constitucional-Social “perfeito”, cuja importância humanística e histórica – na verdade – é sempre um “caminho”, estrada ascendente para a realização do impossível. A questão da utopia – como desejo de futuro – está na base tanto da revolução como do reformismo social e democrático. Trata-se de chegar a lugares imaginários, não alcançados e não alcançáveis no horizonte histórico visível, para promover um convívio humano “inteiramente outro”. Mas este este lugar não é um lugar “ético”. É apenas fruto de um desejo político de natureza histórica que quer ser material e concreto, momento verdadeiro de “procura”, como demonstra a experiência moderna, tanto na revolução – que é súbita e rupturista – como na reforma “evolucionista”, que é lenta e processual.

O bolsonarismo, cuja natureza fascista e ditatorial é inequívoca, tentou (e tenta) aqui no Brasil, uma “revolução” de direita. Quer romper com a democracia constitucional, através de uma contrarrevolução “preventiva”, que não se opõe a uma revolução, mas a uma utopia democrática que quer se configurar dentro do Estado de Direito. A única virtude histórica do fascismo é reconfigurar de forma clara, na sociedade, os campos sociais e políticos que se conformam na dialética golpista e totalitária: demonstrar qual é a base social e política do fascimo, qual o campo democrático com as suas aspirações políticas diferenciadas e qual o vasto campo, social e político, disponível para transações com um ou outro lado, na guerra de posição que o fascismo instala.

É natural que aproveitando o fracasso das experiências comunistas “reais”, tais como eram compreendidas no Século XX, este processo rupturista de extrema direita tenha adquirido uma forma imaginária de revolução “anticomunista”, que defenderia a sociedade de um perigo imaginário, que só existe como sociopatia e como ansiedade política provocada por uma democracia social que é lenta e dispersa, cujas respostas às demandas urgentes de uma situação capitalista periférica são cada vez menos esperadas. As formas de luta desta extrema direita, engendrada nas redes criminosas globais, que despertaram no inconsciente de uma grande parte da população os fantasmas da guerra fria, promoveram uma “política permanente”: uma “contrarrevolução permanente”, real e rupturista, contra um perigo irreal e fictício que, se fosse vencedora nas eleições, se instalaria por um longo tempo dentro e fora do Estado brasileiro.

Sempre que a democracia é posta em risco ou o regime democrático-parlamentar é assediado por movimentos fascistas ou neofascistas, como ocorre agora em todo o mundo, lembro-me de uma clássica sentença conservadora de Isaiah Berlin, que li nos anos 90: “as utopias são perigosas”. Esta visão sectária do conservadorismo democrático de Berlin poderia ser respondida num sentido inverso: “as utopias são tão perigosas como qualquer pragmatismo fundamentalista”; ou, “viver sem utopias é perigoso, porque assim as pessoas se rendem às objetividades escravizadoras”, ou ainda (e finalmente): as “utopias só são perigosas se tenderem para a submissão totalitária ao Estado”.

As utopias acompanham a História da Humanidade, como o calor e o uso da mão acompanham o surgimento dos humanos. Neste momento – entre os dirigentes partidários de esquerda em todo mundo – pouco se fala em restaurar a utopia do ideário social-democrata de esquerda (ou socialista) originário do século XX. É que a história imediata exige atenção especial à restauração de uma utopia mais próxima (concreta, como disse Ernst Bloch), da Democracia Política e da República Democrática. As utopias sociais do século passado se fragilizaram, tanto pelas mudanças na estrutura de classes da sociedade capitalista moderna, como pela transferência da subjetividade da política, para a objetividade do mercado, como fonte das decisões estratégicas para o futuro.

Deste contexto decorre que muitos regimes democráticos em vigência estão sendo submetidos a um duplo assédio, tanto do fascismo, reorganizado, principalmente nas redes, como do pragmatismo social democrata de rumo “liberal”, remodelado pelos Governos democráticos progressistas dos países ricos. A lentidão das soluções destinadas ao povo sofrido no âmbito da política democrática, neste processo conservador, leva – em países como o nosso – os “descartáveis” do capitalismo para uma situação de disponibilidade para o campo do fascismo, que se apressa em apresentar suas soluções imediatas e violentas: insegurança-grupos de extermínio; emprego-reforma trabalhista, são dois pares de exemplos do simplismo demagógico que o bolsonarismo conseguiu propagar com eficiência insólita.

O fascismo redivivo, de outra parte, tem sido soldado com uma parte significativa da burguesia global – seja ela rentista ou “produtiva” – quase sempre apoiado em esquadrões privados ou em grupos criminosos violentos do extremismo de direita. A crise dos partidos de esquerda de hoje, todavia – em escala global – vem de uma renúncia forçada da utopia social-democrata (aquela contratada entre as forças liberais da burguesia e o proletariado sindicalizado), cujos valores lastreados na igualdade se enfraqueceram pela ausência de um projeto alternativo realista, que incorpore o passado da utopia socialista democrática, ao tempo atual, dos novos grupos laborais dispersos: os “meia jornada”, precários, invisíveis, informais, terceirizados, intermitentes e falsos autônomos, que formam hoje a maioria do mundo do trabalho.

A alternativa de partidos como o PT, que se diziam – nas suas origens – partidos socialistas “novo tipo” comprometidos com a democracia como valor universal, está constrangida por margens muito estreitas de escolha, tanto determinadas pelos rumos políticos da Humanidade assediada pelo fascismo, como pelos rumos mercantis da economia global, que capturaram a totalidade da socialdemocracia europeia para o social-liberalismo, característico do bloco dos “países ricos. Se eles são solidários conosco na “questão democrática”, em virtude da grandeza política do presidente Lula como líder republicano de prestígio mundial – o que é extremamente importante para a defesa daquela utopia democrática – de outra parte não “darão” a linha para um novo projeto partidário pela esquerda, que aliás já demonstrou as suas limitações no Primeiro Ministério da Frente Única que formamos no país.

A questão da Defesa Nacional, de um projeto de Segurança Pública ousado ( de caráter Federativo Democrático e cidadão), os processos de participação direta na gestão pública do Orçamento – no que refere as suas incidências locais e regionais – uma política externa ousada em relação à unidade latino-americana, bem como a expansão da pluralidade na circulação da opinião nas concessões públicas e a sua moderação (contra o crime) nas redes, já colocam o nosso Governo numa moratória inicial. Aliás, ainda bem que isso está ocorrendo! Isso indica que a luta pela utopia democrática está num novo patamar: tanto nas estruturas internas do Estado, como no seio da sociedade civil, violentada pelo consórcio político-empresarial totalitário que pretendia se apropriar da nação.

Agora cabe ao PT e ao conjunto da esquerda defender com unhas e dentes – nas ruas e nas instituições da República – esse terceiro Governo Lula, que é uma grande vitória democrática do povo brasileiro e das próprias estruturas do Estado, que nunca se renderam completamente ao fascismo bolsonarista, embora as condições da pressão de natureza fascista e de uma disputa eleitoral de totalmente desigual, pelo brutal aparelhamento do fascismo infiltrado no aparato estatal e do crime organizado dentro do movimento bolsonarista.

Cabe ao Partido, agora – para não se perder no pragmatismo e na indiferença distópica – retomar o rastro da sua utopia democrática e social, para saber conjugar – de forma integrada – os verbos da democracia e da república: para refundar os caminhos da igualdade muito além das políticas compensatórias do social-liberalismo, gestos humanistas emergenciais que podem ser revertidos, por qualquer insano que chegue novamente ao poder no curso de uma crise. A reabilitação do presente não pode gerar uma acomodação em relação ao futuro. Aliás, é sempre mais perigoso desistir das utopias do que buscar os seus caminhos, para não perder os nexos com a história e com a coragem, para a busca de um futuro que é incerto, mas também pleno de humanismo e solidariedade com os humilhados, ofendidos e oprimidos, pela barbárie fascista neoliberal.”Maktub”. É o destino de quem resistiu ao fascismo pela democracia e pela dignidade humana por ele sempre destroçada. (Publicado no Sul 21 em 30-12-2022)

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