Desprotegido e desvalorizado: vida de pesquisador no Brasil

“Você só estuda? Quando vai trabalhar de verdade?” Sem proteção trabalhista e mal remunerados, pesquisadores brasileiros enfrentam realidade desoladora, tendo que lidar com preconceito e até mesmo adoecendo.

Vinícius De Andrade, Deutsche Welle

“Eu nem sei o que faço primeiro em 2023, se vou ao dentista, ao oftalmologista – porque minha visão tem piorado bastante – ou ao psicoterapeuta/psiquiatra; se pago pela revisão textual de um artigo que traduzi para o inglês; ou ainda se custeio um evento muito importante na minha área que acontecerá em outro estado.”

É com essa preocupação que Thiago Mikael, doutorando em psicologia pela UFMG, começou o ano. “Até os 32 anos de idade, nunca havia experimentado ansiedade, mas agora, além dos seus sintomas, tenho desenvolvido os de síndrome do pânico. Parte do medo está profundamente relacionada com a pós-graduação, pois temo adoecer e não conseguir entregar meu trabalho ou não ter mais saúde para construir uma carreira num cenário tão competitivo”, acrescenta ele.

Assim como Thiago, muitos pesquisadores brasileiros estão, cada vez mais, adoecendo e apresentando quadro de ansiedade. Para entendermos a razão, é necessário ilustrar o que é ser pesquisador no Brasil. Tive a oportunidade de conversar com cerca de 20 pós-graduandos de diversos programas e regiões. Eu mesmo ainda não estive na pós. Portanto, esta coluna será composta majoritariamente pelas perspectivas e experiências deles.

De forma resumida: há um contraste entre o que é exigido e o que recebem em troca, tanto no sentido de valorização quanto na questão da remuneração: é requerida uma dedicação exclusiva e esperada uma grande produtividade, mas eles, diferentemente de profissionais contratados via CLT, não estão sob nenhuma proteção trabalhista ou previdenciária nem terão acesso a direitos básicos como o 13º salário e férias.

Trouxeram-me também uma questão que é pouco divulgada: há casos de pós-graduandos que se acidentam durante o trabalho e não encontram nenhum respaldo oficial dos órgãos de fomento. Não é exagero dizer que estão sob nenhuma proteção.

“Você só estuda?”

Além disso, a remuneração pelo trabalho é chamada de bolsa, quando na verdade se trata do salário. Nesse contexto, não é incomum um pós-graduando ser indagado, pelas mais diversas pessoas, sobre quando começará “um trabalho de verdade” ou ouvir aquela velha e infeliz frase: “Ah, você só estuda? Não trabalha?” Se isso já era ruim o bastante no ensino médio ou na graduação, imaginem na pós? Essa deslegitimação abre margem para que os produtores de ciência no país se sintam desvalorizados e desmotivados.

Para além da desvalorização, o período dedicado à pesquisa simplesmente não é coberto pela legislação previdenciária. Alberto Alonso Muñoz, por exemplo, dedicou uma década de sua vida à ciência, e esses anos não constam oficialmente como período trabalhado.

“Existe ainda uma visão bacharelesca e belletrista do trabalho de pesquisa, muito ligada às origens oligárquicas da universidade brasileira e muito conveniente até hoje. Você deve ser grato por receber algo para estudar, o que é uma visão equivocada do trabalho científico, que deve ser desinteressado”, opina ele, que hoje atua como juiz.

Dificuldades financeiras

Outro problema é a questão do valor da remuneração de nossos pesquisadores. Nos dois maiores órgãos de fomento, os valores são: R$ 1.500 para o mestrado e R$ 2.200 para o doutorado. Eles estão defasados há quase 10 anos, e com o nível de preços em nosso país subindo, especialmente nos últimos anos, o poder de compra dos cientistas está caindo.

Consequentemente, aqueles que decidem seguir a carreira no Brasil precisam, muitas vezes, abrir mão de muitas conquistas pessoais. Foi o que aconteceu com a Tathiana. Ela é graduada em história e adiou o sonho da pós por questões financeiras. O caminho foi tornar-se professora na Educação Básica e seguiu assim até recentemente, quando, em comum acordo com o marido, decidiu retornar à pesquisa.

Atualmente no doutorado, ela lamenta a situação financeira: “A bolsa é menos da metade do que eu ganhava dando aula, tive que fazer a aposta de que a minha formação me possibilitaria ser professora universitária e para isso teria que reduzir, e muito, as despesas em casa. Adiamos o projeto de comprar um carro, pagamos aluguel e as despesas com filhos, tudo para dar conta de viver com essas rendas. O programa permite conciliar com uma pequena carga horária em sala de aula, mas o próprio perfil inviabiliza fazer isso: são sete disciplinas ministradas durante a semana, durante o dia, fora as obrigações dos bolsistas, como número mínimo de publicações e participação em evento todos os semestres.”

O mesmo ato de coragem teve Maria de Melo, atualmente pesquisadora na USP: “Trabalhava no setor privado e decidi pedir demissão para fazer mestrado, já sabendo que minha vida financeira iria piorar. Eu tenho que me policiar pra não ficar me comparando com os meus amigos que já estão ganhando bem na minha idade. Você sente que as pessoas de fora falam com você sobre o assunto como se tivessem pena. Outra coisa que me incomoda é que muitas pessoas acham que eu não trabalho, mesmo eu ficando no laboratório das 8h até as 17h todos os dias.”

Antes que alguém diga “Ah, mas é só abrir mão da bolsa e trabalhar também em outro lugar”, sim, é possível, mas devido ao nível de produtividade e dedicação exigido, podemos interpretar essa opção quase como uma missão impossível, a começar pela escolha de orientador, visto que muitos não enxergam com bons olhos aqueles que trabalham em outro lugar.

Foi o que aconteceu com a Andressa, engenheira de formação e recém mestra pela UFRN. “Passei pelo processo seletivo, fui para a entrevista para decidir orientador, e de cara já ofereceram resistência ao fato de eu trabalhar”, conta.

Ela finalmente conseguiu um orientador, mas os desafios de conciliação ainda estavam por vir: “No entanto, nos três primeiros meses, ele mesmo começou a exigir várias pesquisas sem pé nem cabeça e fora do horário que combinamos. Eu moro no interior e passava três dias na capital para assistir às aulas. Até que chegou o ponto de fazer perguntas inconvenientes, do tipo: ‘Você pelo menos tem filho para ter que voltar para o interior? O mestrado tem que ser sua prioridade’.” Andressa teve crise de ansiedade e estava prestes a desistir quando, finalmente, conseguiu mudar de orientador e concluir o mestrado.

De forma geral, a vida dos pesquisadores brasileiros é repleta de incertezas e muitos fazem uma aposta, dedicando boa parte de suas vidas à atividade. Há alguns que, infelizmente, perdem ou não conseguem bolsa. Nesses casos não é incomum precisarem desistir.

Mercado não absorve profissionais qualificados

Outra questão comum é o fato da absorção desses profissionais ainda ser um desafio no Brasil, especialmente no setor privado. Giovanni, mestrando em psicologia pela UNESP, comenta: “O país não absorve os profissionais qualificados a nível de mestrado, doutorado ou pós doutorado, formando uma aporia do capitalismo tupiniquim: todas as empresas privadas querem profissionais extremamente qualificados, mas não querem pagar, na enorme maioria das vezes, um salário condizente com essa formação.”

Infelizmente, em algumas áreas a absorção é ainda mais incerta. Cecília Soares, filha de docentes universitários, dedicou boa parte de sua vida à pesquisa na área de Ciências Sociais. Durante o doutorado, decidiu engatar concomitantemente outra graduação, em Engenharia, e não demorou para notar grandes diferenças.

Sobre o sentimento de ser pesquisadora, ela comenta: “A gente se sente infantilizado e dependente. O que eu teria se não tivesse feito Engenharia? Muitos diplomas, potencial, mas nada concreto. Não sei se teria saúde mental para aguentar. Como podemos ser adultos assim? Se as pessoas ouvirem ‘mestrado’ ou ‘doutorado’, podem até achar interessante, mas não é isso que vai justificar a conquista da vaga. No trabalho enquanto engenheira me dá uma angústia ao ver funcionários de 23, 24 anos ganhando por mês o que eu nunca ganhei em 10 anos de formação, sabe? É impossível não pensar ‘cara, se eu tivesse um salário desse eu tinha resolvido não só parte da vida, como poupado minha saúde mental’. E fica uma coisa paradoxal na cabeça das pessoas, porque a gente consegue ir para o exterior pesquisar. Isso soa muito glamour, parece que está tudo dando certo. Mas você mesmo não tem lastro algum.”

Cenário desolador

Este texto é um daqueles que, para mim, é um grande desafio concluir com esperança e otimismo. Inclusive, confesso, o cenário é ainda mais complexo e pessimista do que eu havia imaginado e posso apenas imaginar o quanto é desolador para muitos fazerem ciência em nosso país.

Concluirei com uma reflexão do Alberto: “Qual a diferença entre esse trabalho e o de um químico que realiza a mesma coisa numa empresa, exceto com carteira assinada e os direitos previdenciários e trabalhistas? Entre um biólogo ou um agrônomo desenvolvendo um projeto de mestrado de produção de novas sementes na ESALQ e um outro, contratado, trabalhando numa multinacional, fazendo a mesma coisa? Essa visão romântica da pesquisa alimenta o preconceito e sustenta o interesse econômico de manter o trabalho de pesquisa com baixíssima remuneração, extremamente barato, e desprovido de qualquer proteção social. O que ocorre se um pesquisador não apresentar o relatório final com a tese defendida? As agências de fomento à pesquisa cobram judicialmente o valor investido. Se isso não é a prova de que o trabalho de pesquisa é trabalho e não ‘estudo’, não sei o que mais dizer, mesmo que do ponto de vista legal convenientemente não tenha essa natureza. Social e economicamente é trabalho e precarizado.”

Imagem: Foto: Instituto Mamirauá

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