Aos 94 anos, o famoso pensador estadunidense analisa com rara lucidez as questões políticas, de segurança e ecológicas do conflito na Ucrânia. Uma aula coletiva de geopolítica sem jargões nem demagogias.
por Anne Guion, em La Vie, com tradução do Cepat, em IHU
Ele é um dos maiores intelectuais do mundo. Um dos poucos cujo nome está indissoluvelmente associado à sua disciplina, a linguística, da qual é uma figura de destaque. Mas ele é mais conhecido por seu compromisso político. Nascido em 1928 na Filadélfia, no seio de uma família de imigrantes judeus, de pai de origem ucraniana e mãe belarussa, Noam Chomsky é também um ativista, “anarquista socialista”, como ele mesmo se descreve. À esquerda da esquerda americana.
Ícone em seu país, admirado nos países do Sul, surpreendentemente menos conhecido na França, ele é um grande crítico da política externa estadunidense. Já em 1967, ele se opôs à Guerra do Vietnã com a publicação do artigo “As responsabilidades dos intelectuais”, onde se dedicou a revelar as fontes ocultas da política externa das grandes potências. Ele também denuncia as intervenções de seu país na América Latina e no Oriente Médio.
Assim como o grande filósofo alemão Jürgen Habermas, 93 anos, que escreveu uma coluna em 22 de fevereiro de 2023, Noam Chomsky, 94 anos, pede a abertura urgente de negociações para acabar com a guerra na Ucrânia, para acabar com o massacre e evitar uma conflagração geral. E, acima de tudo, permitir que o mundo finalmente se concentre na extraordinária crise climática que deve enfrentar. Antes que seja tarde demais.
De barba branca, sentado em frente a uma enorme biblioteca, Noam Chomsky responde às perguntas de La Vie de sua casa no Arizona, Estados Unidos. Animado e determinado, sempre com a mesma radicalidade.
Eis a entrevista.
A Rússia invadiu a Ucrânia há um ano. Qual é a sua análise geral deste conflito?
A invasão da Ucrânia foi um ato de agressão criminosa, semelhante à invasão americana e britânica do Iraque, à invasão da Polônia por Hitler ou a outros crimes semelhantes. Uma agressão desse tipo só pode ser resolvida de duas maneiras: ou um dos beligerantes destrói o outro, ou com a intervenção de um acordo diplomático negociado. Os Estados Unidos, agora uma parte importante do conflito, decidiram que a guerra deve continuar para enfraquecer severamente a Rússia. O que significa que eles não querem um acordo diplomático.
Como resultado, praticamente todas as discussões, tanto nos Estados Unidos como na Europa, são sobre quais medidas tomar para intensificar a guerra. Quanto mais o conflito se alongar, mais devastada a Ucrânia ficará. A guerra tem efeitos colaterais em todo o mundo, e há uma ameaça crescente de guerra nuclear. Acima de tudo, e não falamos muito sobre isso, a guerra anulou os esforços, ainda que limitados, que haviam sido empreendidos para resolver a extraordinária crise do aquecimento global. Estamos inclusive regredindo!
Agora, novas jazidas de combustíveis fósseis estão sendo exploradas. Eles estarão em produção por várias décadas. Na verdade, é uma sentença de morte para a espécie humana. Nós temos, portanto, uma escolha: continuar a intensificar a guerra ou buscar um acordo diplomático. Devo dizer que, entre as grandes personalidades do mundo, Emmanuel Macron foi quase o único a assumir o que me parece ser a posição mais racional: avançar para as negociações. É também o caso, nos Estados Unidos, do general Mark Milley, chefe do Estado-Maior Conjunto dos Estados Unidos, principal líder militar. Isso é muito raro nas classes políticas dos dois lados do Atlântico.
Como explica a reação unânime e determinada da União Europeia após a invasão?
Quando Vladimir Putin cometeu a agressão criminosa contra a Ucrânia, ele também cometeu um ato estúpido. Emmanuel Macron manteve contato regular com ele alguns dias antes da invasão. O presidente francês apresentou várias propostas para evitar a guerra. Mas Putin não deu atenção a isso. Ele até acabou rejeitando as propostas com total desprezo, dizendo que queria ir jogar hóquei no gelo…
O que conseguiu foi dar aos Estados Unidos o seu maior presente: deu-lhes a Europa numa bandeja de prata. Durante a Guerra Fria, houve um sério questionamento sobre o estatuto da Europa: seguiria ela um caminho independente, tornando-se o que se convencionou chamar de terceira força, ou se subordinaria aos Estados Unidos no quadro da OTAN? Charles de Gaulle era o líder da primeira opção. Willy Brandt, com sua Ostpolitik, assumiu a mesma posição.
A questão ganhou destaque quando a União Soviética entrou em colapso. Mikhail Gorbachev propôs então o que chamou de “casa comum europeia”, de Lisboa a Vladivostok. Para a Europa, a Rússia é o parceiro comercial mais natural. A Rússia é rica e tem recursos de que os europeus precisam desesperadamente: minerais, gás, petróleo, etc. Então é uma relação muito natural. Os Estados Unidos se opõem veementemente.
Mas esta nova subordinação a Washington coloca agora os europeus em grave perigo, porque não se trata apenas da Europa: os Estados Unidos estão praticamente em guerra com a China. Eles querem impedir que Pequim tenha acesso a tecnologias de ponta – principalmente semicondutores, que são usados para desenvolver chips de computador, cujos principais produtores são os Países Baixos. Os Estados Unidos, portanto, querem forçar a Holanda a parar de fornecer à China essas tecnologias avançadas e, assim, perder seu principal mercado. Eles também estão tentando fazer o mesmo com a Coreia do Sul…
A Europa e partes da Ásia terão que tomar uma decisão: queremos declinar também porque os Estados Unidos estão fazendo de tudo para manter seu império decadente? Ou vamos seguir um caminho independente para nós mesmos? Até agora, as elites europeias disseram: vamos colapsar e nos subordinar ao senhor… O destino da Europa será muito atormentado.
Por que Putin deu esse presente aos Estados Unidos?
Por estupidez! Foi um ato ainda mais estúpido porque não devemos esquecer que a espécie humana como um todo vive uma crise muito grave. Se não enfrentarmos a crise ambiental, logo nada mais importará. Estamos caminhando para um ponto de não retorno. A partir daí, o futuro só pode ser desastroso.
Há também a grave ameaça de uma guerra nuclear. Diante desses perigos, as grandes potências – Estados Unidos, China, Rússia, Índia – terão que trabalhar juntas. Quando Emmanuel Macron diz que a Rússia deve ser integrada a um sistema maior, incluindo a Europa, ele é criticado, quando tem toda a razão. Isso não é apenas o que deve ser feito, é uma necessidade hoje! Se nenhum compromisso for encontrado, sucumbiremos todos juntos.
A quantidade de ajuda militar dos EUA é enorme – cerca de US$ 60 bilhões. Como explica isso?
Essa é uma maneira ruim de ver as coisas. Como vários analistas apontaram, essa quantia é um pecadilho para os Estados Unidos. Com uma fração muito pequena do seu colossal orçamento militar (858 mil milhões de euros para 2023, um aumento de 8% em relação a 2022, nota do editor), os Estados Unidos são capazes de desgastar e destruir uma parte substancial da força militar do seu adversário. Por que eles estão gastando esse dinheiro? Conheça uma grande potência que não tentou vencer uma guerra…
Como acabar com esta guerra? Moscou e Kiev ainda podem negociar?
Até março de 2022, houve negociações. Não sabemos exatamente quais, já que o governo dos Estados Unidos se opôs às negociações. Boris Johnson, que ainda era o primeiro-ministro britânico, viajou a Kiev para informar aos ucranianos que os Estados Unidos e a Grã-Bretanha não eram a favor. Ele foi seguido por Lloyd Austin, o secretário de Defesa dos Estados Unidos. Não sabemos exatamente o que ele disse, mas provavelmente transmitiu sua mensagem habitual de que a guerra deve continuar para enfraquecer a Rússia, o que é muito bom para os Estados Unidos. As negociações fracassaram e a guerra prosseguiu.
Naturalmente, quanto mais o conflito se estende, mais as posições de ambos os lados se endurecem… No entanto, ainda podem haver oportunidades. Na edição de janeiro de 2023 do Le Monde Diplomatique, há um artigo de dois analistas finlandeses, Tapio Kanninen e Keiki Patomäki, que sugerem ações a serem tomadas. Estes são pequenos passos para estabelecer uma base de compromisso que pode levar a um novo acordo político. É possível? Só há uma maneira de descobrir, e é tentando. Mas a posição das elites americana e europeia é justamente a de que não devemos tentar.
Alguns acordos de paz às vezes contêm as sementes de futuros conflitos… O que seria uma “boa paz” para você?
Todos os acordos deixam em aberto a possibilidade de um futuro conflito, a menos que uma das partes seja totalmente destruída! Um acordo de paz é imperfeito por definição; baseia-se no que cada parte está disposta a aceitar. Esta é a natureza da diplomacia. Se você não quer isso, então faça a guerra e destruam-se mutuamente! A diplomacia pode conseguir qualquer coisa.
Em Versalhes, o adversário derrotado, a Alemanha, foi esmagado. Alguns anos depois tivemos o nazismo e uma guerra mundial. Vale a pena poupar a Rússia de uma forma ou de outra, seguindo o exemplo dos estadistas do Concerto da Europa. Se, ao contrário, as elites ocidentais quiserem adotar a posição de Versalhes, sabemos o que vai acontecer, e será ainda pior: será uma catástrofe global por não conseguir lidar com problemas avassaladores que não podem ser colocados de lado. Porque o aquecimento global não vai esperar…
Não punir a Rússia? Isso não seria uma forma de injustiça?
Os Estados Unidos foram punidos por invadir o Iraque, por invadir a Síria, por destruir a Indochina? A Marinha dos EUA acaba de encomendar seu mais recente navio de assalto anfíbio, chamado USS Fallujah. Fallujah (1) foi um dos crimes mais atrozes cometidos pelos Estados Unidos no Iraque. Os jornalistas iraquianos estão gritando nos telhados, mas quem vai ouvi-los? Então, acabamos de nomear este navio em memória de um dos piores e mais monstruosos crimes no Iraque.
Vou lhe dar outro exemplo. A Universidade Harvard, a mais popular do mundo, acaba de realizar um debate sobre se a invasão do Iraque – eles a chamam de intervenção – foi uma intervenção humanitária. Você pode imaginar um debate na Universidade de Moscou sobre se a invasão russa da Ucrânia é uma intervenção humanitária? Como reagiríamos? Quando acontece em Harvard, nós elogiamos!
Existe o risco de uma conflagração generalizada?
Na verdade, o Ocidente está fazendo uma aposta perigosa com o futuro da Ucrânia. Sua posição é a seguinte: vamos continuar a guerra, mas de forma controlada. Não vamos escalar muito rapidamente para a Rússia recorrer a armas nucleares, mas vamos apenas dar à Ucrânia ajuda suficiente para expulsar os russos do território ucraniano. Talvez consigam este objetivo, mas é improvável…
Os ocidentais também parecem apostar que, se a Rússia for derrotada, Vladimir Putin fará as malas e fugirá discretamente… Mas ele pode facilmente usar todas as armas convencionais à sua disposição para devastar a Ucrânia, da mesma forma que os Estados Unidos e a Grã-Bretanha destruíram o Iraque, da mesma forma que atacaram a Sérvia e assim por diante.
Para os ucranianos, esta aposta é devastadora porque são eles que mais sofrem com a guerra. A Rússia, os países do Sul, a Europa também estão sofrendo. Mas não os Estados Unidos, que são o país vencedor: os lucros de suas empresas de combustíveis fósseis estão disparando e os da indústria militar estão aumentando vertiginosamente!
Você acha que isso é algum tipo de choque de “civilização” contra os valores do Ocidente?
Quando os ocidentais evocam os “valores ocidentais”, eles se tornam ridículos aos olhos de outros países ao redor do mundo. Os valores do Ocidente foram claramente expressos há 250 anos pelo ícone fundador do capitalismo moderno, Adam Smith, que condenou amargamente o que chamou de “a injustiça selvagem dos europeus”. Isso é exatamente o que são os “valores ocidentais” para quase todos no mundo. Talvez esse discurso sobre “valores ocidentais” possa passar entre os intelectuais europeus, mas não para o resto do mundo.
Em janeiro de 2023, comemoramos o 50º aniversário dos Acordos de Paris, prelúdio do fim da Guerra do Vietnã. Você estava muito empenhado contra esta guerra. Você vê paralelos entre esses dois conflitos?
A Guerra do Vietnã foi incomparavelmente pior. Mas, ao longo dos últimos 50 anos, nos Estados Unidos, ela não foi alvo de nenhuma crítica, nem nos comentários do mainstream, nem na imprensa… A crítica mais dura que se ouve é: “Foi um erro”. Portanto, os Estados Unidos teriam feito esforços desastrados para fazer o bem, mas estavam errados!
Na verdade, toda a natureza da Guerra do Vietnã foi reescrita para fazê-la parecer uma guerra defensiva: os Estados Unidos teriam defendido o Vietnã do Sul, vítima da agressão do Norte. Isso é obviamente uma mentira total. Foi uma guerra de invasão travada contra os camponeses sul-vietnamitas, a esmagadora maioria da população. O Norte foi atacado para impedi-lo de apoiar a resistência sul-vietnamita à invasão estadunidense.
Curiosamente, a Guerra do Iraque também foi completamente reescrita, apresentada como uma espécie de missão misericordiosa para defender os sofridos iraquianos do jugo de um ditador perverso. Saddam Hussein era de fato um personagem muito mau. Mas então tratava-se principalmente de apagar o fato de que praticamente todos os seus crimes, incluindo os piores, foram fortemente apoiados pelos Estados Unidos. Foi praticamente uma história de amor. Um romance tão forte que quando o presidente George H. W. Bush, o primeiro dos Bush, chegou ao poder, convidou engenheiros nucleares iraquianos aos Estados Unidos para treinamento avançado na produção de armas nucleares.
E de repente, os Estados Unidos protegem o povo do Iraque do ditador perverso que os Estados Unidos apoiaram apaixonadamente durante seus piores crimes! Essas duas guerras foram reescritas para fazer parecer que os Estados Unidos estão sempre do lado certo e da justiça. Em seu discurso de recebimento do Prêmio Nobel em 2005, o escritor britânico Harold Pinter fez alguns comentários muito bons sobre isso. Ele disse que os Estados Unidos usam um sistema doutrinário tão poderoso que quando as coisas acontecem, de fato, não acontecem…
Você está com 94 anos; você já pensou que veria um conflito dessa magnitude novamente em solo europeu?
Francamente, não pensei que nós, humanos, sobreviveríamos tanto tempo. Tenho idade suficiente para me lembrar do 6 de agosto de 1945 (bombardeio atômico sobre Hiroshima) com muita clareza. Muito claramente… Meu sentimento na época era que era uma sentença de morte para a espécie humana. Alguns anos depois, em 1952, quando os Estados Unidos e depois a União Soviética detonaram armas termonucleares, alcançamos a capacidade tecnológica de destruir tudo. Desde então, estamos por um fio, em tempo emprestado. Já chegamos muito perto da destruição total. Muitas vezes fomos salvos quase por acidente.
Mas os milagres não podem acontecer sempre. Nós nem percebemos que uma nova era geológica, o Antropoceno, em que as atividades humanas devastam o meio ambiente, estava começando. Em 24 de janeiro de 2023, o Bulletin of the Atomic Scientists publicou a última configuração do relógio do Juízo Final: estamos a 90 segundos da meia-noite, do fim. Penso que ainda podemos chegar um pouco mais perto do abismo. E depois… Isso é o que toda pessoa racional espera desde 1945.
Nota do Instituto Humanitas Unisinos – IHU
1.- Em artigo de Tariq Ali, em artigo publicado no London Review of Books e reproduzido aqui, 02-09-2013, escreve: “No Iraque, sabemos que foram os EUA a utilizar “fósforo branco” em Fallujah, em 2004 (não havia “linhas-limites” exceto aquelas traçadas no chão por sangue iraquiano)”.